Quando o único projeto para a Amazônia é matar

Quando o único projeto para a Amazônia é matar
Indigena da etnia Matis, durante concentração para um protesto pelo desaparecimento do jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira, na cidade de Atalaia do Norte, Vale do Javari, estado do Amazonas, Brasil, segunda-feira, 13 de Junho de 2022, a Polícia Federal confirmou que foram encontrados objetos pessoais das vítimas.
Ao incentivar deliberadamente formas brutais de expansão capitalista, Estado permite arranjo violento de relações criminosas

Poderia ser eu, poderia ser você ou qualquer um que se colocasse no caminho do necrocapitalismo sustentado por um cortejo fúnebre que chamamos de Estado, comandado por um presidente insano no Brasil! Mas os possíveis alvos, dessa vez, foram o indigenista Bruno Araújo e o jornalista Dom Phillips, no exercício da ação mais digna do nosso tempo: a defesa dos povos amazônicos!

A guerra capitalista contra a vida na Amazônia ganha contornos dramáticos. A morte, infelizmente, sempre foi uma realidade próxima para todos que se colocam no caminho dos interesses daqueles que drenam matéria e energia na Amazônia, por meio da agropecuária, da mineração, dos monocultivos… E o pior, no espelho colonial que se chamou Brasil, num paradoxo perverso, a morte sempre foi a única forma de sensibilização para a vida em profusão que é a Amazônia.

No lugar onde se desmata e se mata, onde sempre se registrou os mais elevados índices de assassinatos no campo, onde a morte sempre fez parte do repertório capitalista, ainda assim, o ato de matar historicamente esteve relativamente restrito a alguns atores sociais específicos. O governo Bolsonaro, entretanto, destampou mais um bueiro dessa máquina de moer mundos, que sempre foi a expansão capitalista na Amazônia.

Ao incentivar deliberadamente formas brutais de expansão capitalista, como os garimpos ilegais, a grilagem, a pesca predatória, a extração ilegal de madeira, ao deslegitimar todos os órgãos de fiscalização e controle ambiental, ao desmobilizar todos os órgãos e entidades de defesa dos povos amazônicos, ao, por fim, incentivar uma lógica bélica de defesa da propriedade e da riqueza privada, um arranjo violento de relações criminosas vai se expandindo de forma avassaladora.

Os rápidos ganhos que a drenagem de matéria e energia geram continuam sendo o motor da expansão capitalista na Amazônia. Entretanto, além dos grandes bancos, grandes corretoras e grandes corporações e seus velhos arranjos com frações da burguesia e do latifúndio local e regional, tornam-se atores cada vez mais comuns em tais negócios organizações criminosas, redes do narcotráfico, milícias armadas e novos investidores capazes de tudo para obter lucro rápido.

Essa engrenagem funciona basicamente transformando bens comuns em mercadoria por meio da violência extrema, ou seja, transformando terras indígenas em garimpo, territórios quilombolas em um novo projeto de mineração, territórios camponeses em mais pasto. Mas a possibilidade de ganhos rápidos que passa por atores tradicionalmente violentos, como latifundiários dispostos, nessa conjuntura, a investir em garimpo, passa, também, por muita gente desesperada por não ter o que comer.

Os donos da terra, os donos do dinheiro e, agora, os donos das drogas, além de uma rede complexa de pessoas compradas com dinheiro, terra e drogas, passam a ser os agentes da morte. Nesse cenário, qualquer um pode ser o alvo e qualquer um pode puxar o gatilho. Vidas humanas e vidas não humanas não importam mais diante desse necrocapitalismo; elas são apenas obstáculos no caminho de uma forma de produção de riqueza que mata e desmata para drenar as energias vitais amazônicas, que são as forças comunais dos povos amazônicos, seus senti-pensares distintos, construídos por ligações cósmicas entre a vida humana e a floresta, os rios, as montanhas, o solo, o subsolo…

Para essa engrenagem necrocapitalista funcionar, todas as ameaças devem ser eliminadas, sejam estas ameaças indígenas, quilombolas, camponeses, funcionários da Funai, intelectuais, jornalistas. Qualquer um que se coloca no caminho desses ganhos rápidos recebe um alvo nas costas. Literalmente qualquer um. Não importa se é cidadão brasileiro ou britânico. A violência se irradia por todos aqueles conectados a essa engrenagem e o ato de matar, antes relativamente restrito aos profissionais da morte, começa a ser praticado por quem estiver em condições de eliminar os alvos.

Essa engrenagem, logicamente, sempre existiu por essas bandas esquecidas do que se representou ao longo da história por Brasil. Mas o governo Bolsonaro transformou-a em regra de geração de riqueza na Amazônia.

A demora na procura de Bruno e Dom, a fatídica nota do Comando Militar da Amazônia — que se pronunciou pronto para as buscas, mas no aguardo de acionamento superior (que demorou) —, as falas de Bolsonaro chamando o trabalho do indigenista e do jornalista de aventura, e todo o descaso com as informações sobre o caso, mostram-nos que o Estado não é apenas um aparato de forças empresariais e militares, hoje associadas em formas autoritárias de superacumulação. Ele também é uma racionalidade necropolítica que atravessa todos os atores dessa engrenagem de morte que, como diria David Kopenawa e Ailton Krenak, está preparada para comer o mundo.

Foto de uma barco da polícia em um rio na beirada da floresta

Bombeiros, no rio Itaquaí, durante operação de buscas pelo desaparecimento do Jornalista Dom Phillips e o Indigenista Bruno Pereira, no Vale do Javari, município de Atalaia do Norte, estado do Amazonas, Brasil, em 10 de Junho de 2022.

Sempre defini o capitalismo na Amazônia como uma guerra aos povos, uma vez que gerar riqueza por aqui historicamente passou por uma ação sistemática e brutal contra aqueles que ainda produzem vida e comunidades em torno de bens comuns. Essa guerra teve muitos adjetivos ao longo da história. Foi chamada de guerra justa, contra os indígenas não convertidos à fé católica, no período colonial. Foi chamada de correria, também contra os indígenas que se colocassem nos caminhos dos seringais, durante o apogeu da economia da goma elástica na Amazônia. Já foi até chamada de desenvolvimento por governos empresariais-militares e mesmo por governos ditos democráticos, que conseguiram apelidar o ocaso da construção de grandes hidrelétricas e o saque neocolonial de minérios, de progresso.

Mas essa longa duração da guerra, aguçada por essa generalização da morte como estratégia de obtenção de lucro, permite-nos dizer que estamos diante de uma Guerra Capitalista Contra a Vida. Nessa guerra, alguns são alvos, outros têm as mãos sujas de sangue, e alguns, distantes dos “campos de batalha”, continuam ostentando seu engano, imaginando-se fora da guerra.

Mas quando dizemos que estamos diante de uma guerra capitalista contra a vida, o que estamos querendo dizer é que a drenagem de matéria e energia e a expropriação das energias vitais da Amazônia interferem decisivamente nos rumos de todo o planeta. Somos uma espécie colocando em risco todas as espécies.

Por isso, todos estamos em guerra, pois estamos matando aquilo que sempre foi o principal responsável por manter a floresta como reguladora do metabolismo do planeta inteiro: os povos amazônicos e sua ancestralidade comunitária. Estamos matando a capacidade de imaginação de outros mundos possíveis tão presente nas cosmologias desses povos que hoje têm um alvo nas costas. Sem os povos amazônicos, não há Amazônia. E sem Amazônia, não há planeta.

Bruno e Dom sabiam disso. E, por essa razão, provavelmente foram mortos. Um sentimento de impotência e revolta toma todos aqueles que estão implicados nas lutas protagonizadas pelos dois. A possibilidade da perda chega a nos colocar em desespero, a induzir excessos e angústias. Mas para fazer jus à grandeza da luta de Bruno e Dom, talvez nos seja necessário, agora, a paciência ativa do luto, tão cara aos povos indígenas, para que consigamos fazer viva todas as vidas que se dedicaram e continuam a se dedicar à defesa de uma Amazônia com suas gentes.

Para isso, é preciso que a dignidade da luta em defesa dos povos amazônicos seja posta em toda sua potência transformadora. Só assim saímos do assombro e caminhamos para uma luta coletiva em defesa de outros horizontes de sentido para a vida no planeta.

A luta de Bruno e Dom é uma luta pela capacidade de pensarmos um mundo comum, além da propriedade privada, um mundo imaginado por complementaridades, reciprocidades e cuidados, não como um supermercado. Essa é uma luta pela restituição da capacidade decisória dos povos amazônicos sobre seus destinos, pelo reconhecimento dos saberes milenares ancestrais amazônicos como saberes capazes de nos indicar outros caminhos e horizontes para a vida.

Essa é uma luta para colocar os mundos dos povos amazônicos no centro do mundo! Essa é uma luta em defesa dos povos que nos legaram a possibilidade de vida no planeta ao coevoluírem com a Amazônia.

Justiça por Bruno e Dom!!!

Bruno Malheiro é doutor em Geografia e professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Coordena o Laboratório de Estudos em Território, Interculturalidade e R-existência na Amazônia (LaTierra- Unifesspa). É um dos autores do Livro “Horizontes Amazônicos: para repensar o Brasil e o Mundo”, Expressão Popular/ Rosa Luxemburgo, 2021.

 
 

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