Com histórico de ‘passar a boiada’, Bolsonaro fala de justiça ambiental em novo plano de governo

Poluição em bairro antigo na região central de Altamira. Foto: Anderson Barbosa/Amazônia Latitude

Presidente desmontou políticas públicas e enfraqueceu órgãos ligados ao meio ambiente durante o mandato

Das 48 páginas do plano de governo de Jair Bolsonaro (PL) para um segundo mandato, dois parágrafos mencionam a promoção da justiça ambiental como um dos objetivos a serem atingidos pelo Brasil. O histórico das ações do governo no meio ambiente, porém, desafia a concretização do ideário.

Termo derivado das lutas contra contaminação por resíduos químicos nos Estados Unidos em 1960, “justiça ambiental” só acontece quando todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor, origem ou renda, não precisam suportar consequências ambientais negativas, explica a advogada e vice-presidente da Comissão do Meio Ambiente da 21ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB – SP), Simony Silva Coelho.

O conceito faz parte do ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição descreve no artigo 225 o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mais recentemente, o Acordo de Paris — tratado internacional para reduzir as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera — foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como um tratado de direitos humanos, reforçando o ideário de justiça ambiental.

“Sendo o meio ambiente equilibrado um direito constitucional, deve-se ter sempre em conta pelos tomadores de decisão a igualdade de direitos de forma a assegurar tratamento justo a todas as parcelas da sociedade, a fim de evitar que uma carga maior dos danos ambientais não recaia sobre uma parcela só”, continua Coelho.

Mesmo que o plano do candidato do Partido Liberal descreva uma preocupação semelhante, as decisões tomadas pelo Ministério do Meio Ambiente desde 2019 expõem a opção de Bolsonaro de seguir por um caminho contrário à justiça ambiental.

A frase “passar a boiada”, pronunciada em 2020 pelo ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (PL), marcou o modelo do governo sobre a questão ambiental. Na ocasião, Salles sugeriu que os ministérios aproveitassem a atenção da mídia e da população na pandemia para “simplificar regras ambientais”.

Em alguns casos, como a retirada da autonomia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para fiscalizar crimes ambientais e a desativação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm), foi necessária a intervenção da justiça.

Com base no primeiro mandato de Bolsonaro, a advogada Simony Silva Coelho não acredita que políticas públicas eficazes contra a injustiça ambiental serão implantadas no futuro, mesmo que elas apareçam no plano de governo.

“Por duas razões. A primeira é o fato de que as áreas que necessitam de políticas públicas estão deficitárias e piores, exigindo esforço maior do Estado. A segunda: o fato de que o governo não deu a devida preocupação a esses setores no primeiro mandato”.

Coelho continua: “A ausência de uma efetiva fiscalização contra crimes ambientais propiciou um dos maiores índices de desmatamento do Brasil e a perda significativa de áreas nos biomas como Amazônia e Pantanal”, acrescenta Coelho.

Uma das consequências da falta de políticas eficazes é a injustiça ambiental — termo conhecido por muito tempo como racismo ambiental. Ao contrário da justiça, ela acontece quando uma parcela da população sofre mais com um meio ambiente desequilibrado do que outras.

A advogada argumenta que, no Brasil, a desigual distribuição de renda e desenvolvimento da sociedade faz com que classes marginalizadas sofram com maior exposição à poluição, deficiência de água potável, coleta de resíduos sólidos, e efetivo tratamento de esgoto.

Alguns exemplos de ações de Bolsonaro durante o mandato atual em que o presidente promoveu a injustiça ambiental estão diretamente conectados com a Amazônia, como o incentivo ao garimpo ilegal e a aprovação do uso de agrotóxicos.

Em relação ao garimpo, após tentativa de aprovar o Projeto de Lei (PL) 191/2020, que liberaria a mineração em terras indígenas, um novo relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) indicou irregularidades em permissões concedidas a garimpeiros. Segundo a entidade, essas irregularidades podem resultar em atividades de garimpo ilegal e danos socioambientais.

Uma das consequências do garimpo é a contaminação da água dos rios com mercúrio, um metal tóxico. Essa substância termina sendo ingerida por animais, como peixes, e pelas comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas que vivem próximas às áreas onde há mineração.

Em alguns casos, como o da Terra Indígena (TI) Yanomami, as contaminações por mercúrio são registradas há anos. A porcentagem do mercúrio nos rios da TI, contudo, aumentou significativamente no último ano, atingindo 8600% a mais do que a quantidade indicada como máximo para águas de consumo humano, de acordo com laudo da Polícia Federal.

Por outro lado, o aumento de agrotóxicos usados pelo agronegócio no Brasil nos anos de governo Bolsonaro também tem como consequência situações de injustiça ambiental. Além de muitas das substâncias usadas nas lavouras serem ingeridas pelo consumidor final do produto, a aplicação dos agrotóxicos pode contaminar diretamente os trabalhadores rurais e as comunidades que vivem próximas às áreas de plantação, além de contaminar o solo e a água.

Entre 2019 e 2021, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), sob a gestão de Tereza Cristina, aprovou o uso de mais de 1500 novos agrotóxicos no Brasil. Apenas em 2019, foram registradas 474 dessas substâncias pelo órgão. A ex-ministra ficou conhecida como “musa do veneno” por apoiar o uso de agrotóxicos e o PL 6299/2002, também conhecido como PL do Veneno, que pretende flexibilizar as regras para fiscalização do uso de agrotóxicos.

“Especificamente para os indígenas e quilombolas, o crescimento desregulado e não fiscalizado de determinadas atividades econômicas, tais como o garimpo e a pecuária, vem afetando de forma significativa a saúde e o pertencimento ao espaço territorial em que vivem”, explica Coelho. Essa influência negativa sobre a saúde, de acordo com a advogada, contribui para uma baixa qualidade de vida dessas comunidades.

Segundo Coelho, é por meio de políticas públicas que o Estado pode dar efetividade aos direitos fundamentais, incluindo o direito ao meio ambiente equilibrado a todas as parcelas da sociedade.

Frente a episódios como os descritos acima, a advogada da OAB acredita que é de suma importância que as medidas propostas nos planos de governo dos candidatos e candidatas à presidência levem em conta a criação de políticas públicas eficazes e fatores como ocupação e uso ordenado do solo, condições de moradia, regularização fundiária, questões imobiliárias, e estimulem a educação, propiciando conscientização e visão crítica sobre o aspecto ambiental.

Hoje, segundo o Atlas da Justiça Ambiental (Environmental Justice Atlas, em inglês), plataforma que contabiliza casos relacionados à justiça ambiental em todo o planeta, o Brasil está em quinto lugar no ranking dos países com mais episódios, com 174 casos reportados. O próximo presidente ou a próxima presidenta do país pode ser responsável por garantir que a justiça ambiental chegue a todos os brasileiros, como o direito constitucional que é.

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