Ouvindo as plantas: Rituais indígenas e transições para a humanidade

Rituais indígenas
Ayahuasca e outras medicinas tradicionais podem mudar a percepção das pessoas sobre a natureza e, consequentemente, a maneira como elas se relacionam com ela.

Alguns argumentam que a crise ecológica é uma crise espiritual. Neste artigo, apresentarei resultados iniciais de minha pesquisa sobre o papel que as medicinas tradicionais amazônicas e a espiritualidade indígena podem ter na mudança de atitudes prejudiciais ao meio ambiente.

Neste momento de profundas crises ecológica e sanitária, é urgente repensar as relações humanas com o resto da Natureza. Mas como nos reconectamos com a Natureza? De acordo com diferentes Povos Indígenas da Amazônia, estamos passando por uma transição. Como seres humanos, passar por uma transição não é novidade, seja como coletivo ou como indivíduos. A Covid-19 deixou claro que estamos vivenciando coletivamente uma importante transição.

Meu principal argumento aqui é o de que as medicinas indígenas podem ser percebidas como ferramentas para acelerar a transformação de contextos sociais e ecológicos. Olho para o povo Yawanawá, que vive na Amazônia brasileira, para dar alguns exemplos práticos e refletir sobre aspectos de apropriação cultural e direitos indígenas.

Vou iniciar contando uma história. Acho que é uma boa maneira de introduzir a pesquisa, uma vez que se trata de espiritualidade indígena e eles normalmente iniciam suas conversas contando uma história ou um mito.

Da última vez que estive com os Yawanawá – em breve darei mais informações sobre eles – estava conversando com um de seus líderes espirituais e perguntei a ele como se diz “sagrado” em sua língua. Sua resposta foi que eles não têm uma única palavra para isso. O principal significado de sagrado é o leite materno e o ato de amamentar. Explicou-me que, devido à importância do leite materno para alimentar e acalmar o bebê – e, portanto, para manter o fluxo da vida –, o ato de amamentar tornou-se o significado de sagrado.

E então pensei – como estamos nos alimentando? Refletindo não apenas sobre nossos corpos físicos, mas principalmente sobre nossos espíritos. Conseguimos nos alimentar e nos acalmar todos os dias com o sagrado, seja lá o que isso signifique para cada um de nós?

O objetivo central da minha pesquisa foi examinar as maneiras pelas quais a Ayahuasca e outras medicinas tradicionais que são usadas em rituais indígenas são percebidas para mudar a visão das pessoas sobre a natureza e, consequentemente, a maneira como elas se relacionam com a natureza.

Escolhi os rituais Yawanawá como aqueles em que concentrei a pesquisa, porque esse povo começou a compartilhar mais amplamente a sua cultura e medicinas nos anos 2000 e rapidamente ficaram “na moda”, servindo de boa inspiração para conhecer mais sobre as diferentes construções culturais sobre a natureza. Os dados foram coletados entre 2016 e 2019 durante visitas de campo às terras Yawanawá no Brasil, mas também durante alguns de seus retiros espirituais na Europa.

Transformações encantadoras

Os Yawanawá são caçadores e coletores. Eles se veem como um povo unido, um grupo que se posiciona e trabalha junto, uma família. Por isso se autodenominam o “Povo da Queixada” [espécie de javali]. Os Yawanawá se consideram o povo da espiritualidade, os Yuve yahu em sua língua. Dizem que, antigamente, havia muitos pajés. Para os Yawanawá, a maioria das plantas são plantas medicinais.

Nas sociedades tradicionais de caçadores-coletores, não há distinção entre espiritualidade e o resto da subsistência e da vida cultural. Na sociedade “civilizada”, entretanto, nenhum rio contém um espírito, nenhuma árvore significa vida, nenhuma cobra é a personificação da sabedoria; plantas e animais já não “falam” com os seres humanos – pelo menos não com a maioria de nós.

Pelo contrário, somos guiados por valores materiais. Se sentimos que algo está faltando ou não está certo em nossas vidas, provavelmente precisamos comprar um produto (um carro, roupas novas, comida) ou um serviço (férias, um novo curso, uma terapia). Isso está enraizado nas realidades estruturais da cultura industrial e tecnológica da atualidade. Superar essas realidades consiste em nos redescobrirmos como seres criativos e espirituais, em oposição a consumidores.

A espiritualidade, vivida através de um sentido de relação com a Natureza, permite-nos então falar sobre o que é estranhamente invisível, mas certamente necessário se quisermos repensar formas de viver e reestruturar as sociedades modernas. A superação dessas realidades estruturais consiste então em redescobrir o homem como parte da natureza em oposição à dicotomia homem-natureza que domina os discursos políticos.

A espiritualidade em geral, não apenas a indígena, é uma categoria de crescente importância para muitos ocidentais. Embora a genealogia da espiritualidade permaneça complexa e seu uso fluido, ela passou a significar algo específico, referindo-se ao que pode ser conhecido como “nova era” ou “era espiritual”.

Desde que comecei a trabalhar com povos indígenas, venho refletindo sobre estar em cerimônia e rituais. Diferentes sociedades celebram cerimônias, realizam rituais, incluindo rituais religiosos e sacramentos, rituais nacionais, festivais sazonais e ritos de passagem e iniciação, como os rituais ao redor do nascimento, casamento e morte. Estes são geralmente comunitários e culturais e seguem um padrão tradicional e formal. Os rituais implicam uma espécie de continuidade, uma memória transmitida de gerações passadas através da prática do próprio ritual ao trazer o passado para o presente.

O antropólogo inglês Gregory Bateson acreditava que os rituais e certos tipos de crenças espirituais serviam a uma “função corretiva”, permitindo a integração da consciência individual com os circuitos mais amplos do processo mental. Isso inclui as “ecologias da mente” coletivas e ambientais, como ele denominou.

À luz das teorias de Bateson, as plantas psicoativas podem ser vistas como ferramentas para relaxar os processos mentais, liberando as fronteiras do ego entre os indivíduos e seus contextos sociais e ecológicos mais amplos. O ritual, neste contexto, é instrumental, mas não para manter a estrutura social. Ao contrário, para promover a autotransformação e, ao mesmo tempo, desafiar as próprias construções culturais dos participantes e as suas suposições básicas sobre o mundo.

Bateson também aplica a cibernética ao campo da antropologia ecológica. Ele via o mundo como uma série de sistemas contendo os indivíduos, sociedades e ecossistemas. Dentro de cada sistema existem relações de competição e de dependência. Ele argumentava que todos os três sistemas eram parte de um sistema cibernético supremo, que controla tudo em vez de apenas sistemas interativos. Esse sistema supremo está além do eu individual e pode ser equiparado ao que muitas pessoas chamam de Deus, embora Bateson se referisse a ele como Mente.

Bateson também argumentou que a epistemologia ocidental perpetua um sistema de compreensão que é dirigido por propósitos, ou meios para um fim. E isso estreita nossa percepção, limitando assim o que vem à consciência e, portanto, limitando a quantidade de sabedoria que pode ser gerada a partir da percepção. Ele defende uma posição de humildade e aceitação do sistema natural, ao invés da superioridade científica como solução. O antropólogo acreditava que a humildade só pode acontecer quando pensamento e emoção são combinados para obter conhecimento.

E é aqui que Bateson e os indígenas compartilham um entendimento. Tal compreensão da humildade é central para o animismo e o conhecimento indígena tradicional. Uma vez que os indígenas estão imersos em experiências profundas com a natureza, eles nutrem uma postura de humildade, gratidão e admiração pela contingência da vida. Eles percebem (e vivem) o mundo como relacional e animado: os humanos são a natureza (e vice-versa).

Os Povos Indígenas se utilizam do que tem sido chamado de exuberantes “tecnologias de encantamento” que reforçam conexões com lugares e eventos. Eles se percebem servindo a esses contextos não humanos, a natureza e os seus diversos seres, e não o contrário. Para eles, o cuidado é o que fornece o sustento da diversidade e da abundância, que é afetivo e natural, em oposição a calculista e racional. Isso significa que diferentes seres (humanos e não humanos) existem “através das relações que os moldam e que eles, por sua vez, são capazes de estabelecer”, como afirma a antropóloga peruana Marisol de la Cadena.

Uni: Apropriação cultural ou intercâmbios culturais?

O composto medicinal mais usado, e agora muito popularizado, pelos Yawanawá é o uni, comumente conhecido como ayahuasca. A ayahuasca é uma bebida enteogênica sul-americana feita de uma videira chamada caapi e uma planta mais conhecida como Psychotria viridis (também chamada de chacrona). A bebida é usada há pelo menos 3.500 anos (com alguns argumentando que pode ser ainda mais: há 5.000 ou até 8.000 anos) como uma medicina espiritual tradicional usada em cerimônias entre diferentes povos indígenas da bacia amazônica.

Ao nomear a ayahuasca como uni, os Yawanawá nos ensinam sobre a unidade. Segundo os Yawanawá, usar o uni é uma oportunidade de unir e ampliar a família. Aqui, “família” refere-se à família extensa de humanos e outros seres não humanos. É desse envolvimento contínuo com seres não humanos que o entendimento e o saber sobre o mundo natural emerge.

Os constantes rituais e jornadas com o uni garantem que a relação entre humanos e seres não humanos seja de união, equilíbrio e reciprocidade – o que significa que os humanos nunca tiram mais de seres não humanos do que aquilo que podem devolver – não apenas materialmente, mas com honra, gratidão, cânticos e orações.

Comecei a ter curiosidade sobre as trocas entre os Yawanawás e não indígenas, principalmente ocidentais, quando me mudei para o Reino Unido e percebi um enorme interesse dos europeus pelas tradições e medicinas indígenas. Quando visitei os Yawanawá pela primeira vez, também presenciei o quanto eles estavam aprendendo com os não indígenas. Alguns meses depois, um de seus principais líderes espirituais, o ancião e pajé Tatá, faleceu e muita coisa mudou na aldeia onde morava.

Lembro-me de ouvir de seu neto Rasu, jovem líder espiritual, que quando Tatá estava vivo eles viviam e trabalhavam apenas para o mundo espiritual. E então ele disse: “Agora que ele não está mais aqui, muito do que temos feito é pelo mundo material”. Essas palavras foram muito fortes para mim e me fizeram perceber como as coisas mudaram entre eles. Estavam trabalhando como nunca para promover rituais para não indígenas, sem muito tempo para lazer, sem muito tempo para dedicar-se aos seus próprios rituais.

Isso me fez pensar que eles estavam se perdendo em nosso mundo, o chamado mundo material. Mas tradicionalmente esse tipo de troca entre culturas é consistente com a natureza do conhecimento tradicional e indígena, que sempre foi trocado entre culturas. Então, pensei: não era para isso estar acontecendo?

Conversei com outro ancião Yawanawá sobre isso. “Vocês não têm medo de reproduzir os mesmos erros que cometemos? E o mais importante, vocês não têm medo de perder o controle sobre as medicinas?”, perguntei. Afinal, muitos dos não-indígenas que iam para lá estavam aprendendo com suas tradições para depois se tornarem xamãs de outras pessoas em todo o mundo.

Ele me respondeu: “Sabíamos que isso ia acontecer. Nossos ancestrais sempre nos diziam que um dia os ‘brancos’ viriam e nos perguntariam sobre as medicinas. E temos o dever de compartilhá-las. Elas não são nossas; são um presente da floresta”.

“O conhecimento é nosso, mas como que as medicinas farão efeito se não compartilharmos o conhecimento? Não farão. Provavelmente seriam arriscados e causariam mais mal do que bem”, complementou. Na visão deles, todo esse movimento em direção à espiritualidade indígena, o que muitos chamam de indigeneidade, está profundamente relacionado à necessidade urgente de nos reconectarmos com o mundo natural/espiritual do qual fazemos parte, como forma de caminhar rumo à transformação.

Percebi então que a troca entre indígenas e não indígenas era uma via de mão dupla. Como alguns Yawanawá afirmam em cerimonias, eles nunca conseguiriam tocar instrumentos diferentes em seus rituais, como o violão, se não fosse pelo relacionamento com os não indígenas. Em vez de chamar essas trocas de apropriação cultural, prefiro vê-las como trocas e colaborações culturais. Mas é claro que há mais nesse debate quando pensamos em direitos indígenas e justiça epistêmica.

Direitos indígenas e justiça epistêmica

Os povos indígenas têm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver seu patrimônio biocultural, conhecimento tradicional e expressões culturais de acordo com diferentes regulamentações já em vigor, como a OIT 169 e a Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica. Considerando a altíssima demanda para tratar milhões de pacientes deprimidos, a medicalização da ayahuasca, por exemplo, sem uma regulamentação adequada pode ser prejudicial aos povos indígenas.

No entanto, os atributos epistemológicos indígenas para o uso de medicinas tradicionais ainda precisam ser reconhecidos. Uma consequência prática dessa situação no Brasil, por exemplo, é que os indígenas enfrentam dificuldades para transportar suas medicinas dentro do território brasileiro. Para promover o cumprimento de seus direitos, os povos indígenas nas diferentes Conferências Indígenas de Ayahuasca se comprometeram a usar as medicinas tradicionais de “maneira sábia e responsável” e foi recomendada a criação de um “Conselho Ético Indígena sobre Medicinas Tradicionais”.

Mas a maioria das tentativas de avaliar os sistemas de conhecimento indígenas por não indígenas ainda envolve o uso de métodos científicos para provar seu rigor, tornando-os muitas vezes inválidos. Isso gera conflitos epistêmicos e possíveis injustiças.

A justiça epistêmica representa o fenômeno e a violência resultante da imposição ou dominação epistemológica de uma forma particular de conhecer o mundo em detrimento de outras. A justiça epistêmica requer a coexistência de diferentes sistemas de conhecimento, diversas formas de conhecer, ver e estar no mundo.

A injustiça epistêmica, por outro lado, baseia-se na lógica e na retórica da salvação (incluindo a democracia e o progresso). Esconde a lógica da colonialidade – guerra, destruição, racismo, sexismo, desigualdade, injustiça. É normalmente violenta e envolve opressão cultural e política. É fruto das “produções” historiográficas, etnográficas e geográficas ocidentais de povos e continentes.

Quando questionados sobre a validade do conhecimento indígena, os entrevistados indígenas e não indígenas mencionaram como esse conhecimento tradicional é sofisticado, diverso, único. Os diversos povos tradicionais da Amazônia vêm experimentando a biodiversidade ao seu redor há séculos e, em muitos casos, as composições que usam para curar diferentes patologias são muito complexas. A tecnologia para substituir tal “alquimia” levaria anos para atingir o nível de sofisticação disponível.

Como argumenta o líder indígena João Paulo Tukano: “A manipulação de medicinas florestais envolve muito mais do que misturar os compostos de tais medicinas. Não é apenas uma manipulação química, como na ciência moderna. É uma experiência metaquímica que envolve diferentes misturas de plantas, minerais, elementos, espíritos, sonhos, cosmologias e muito mais.”

Por fim, nas palavras de um entrevistado Yawanawá, “os brancos têm atropelado os saberes tradicionais dos povos indígenas para impor seu saber científico como se fosse o melhor. Mas eles se perderam e agora estão se voltando para nós para que possam reencontrar o caminho. Estou apreensivo, não sei se acredito mais nas ideias e no jeito deles de fazer as coisas”.

Em termos de direitos, também é importante reconhecer que a Lei da Biodiversidade brasileira desvincula o patrimônio genético do conhecimento tradicional, ignorando as crenças e saberes dos Povos Indígenas e suas interações e co-evolução com o restante da natureza e da biodiversidade por milhares de anos.

Isso é resultado da dicotomia usuário-provedor presente na legislação internacional. Tal dicotomia gera uma falsa dualidade entre usuários e detentores de patrimônio genético e conhecimento tradicional, e pressupõe que detentores de conhecimento tradicional não são usuários; ou seja, não fazem pesquisa nem desenvolvimento tecnológico (para usar os termos da Lei 13.123/2015) com base em seus conhecimentos.

Epistemologicamente, essa dualidade imposta é uma herança colonial e deve ser abandonada se quisermos avançar para modelos inovadores de co-criação de conhecimento. A inovação surge não apenas da apropriação e uso do conhecimento ou do patrimônio genético pelo usuário “externo”, mas do encontro entre dois campos de conhecimento. Este é um importante problema epistêmico que se torna crucial e ameaçador quando os cientistas vão às comunidades tradicionais assumindo que um diálogo equitativo e justo é possível, quando já existe uma hierarquia de superioridade em que o cientista sabe mais que a comunidade, e é o responsável por criar o “conhecimento inovador”.

Com (uni)ão

Ao olhar para os resultados da pesquisa, ficou evidenciado que o ritual fornece a estrutura e o espaço onde a autotransformação pode acontecer. Durante os rituais de ayahuasca, os participantes estão fisicamente e temporariamente afastados de sua cultura.

O antropólogo inglês Victor Turner chamou esse espaço liminar de communitas, uma arena onde os participantes afirmam e reafirmam o companheirismo com a comunidade. A ingestão da medicina evoca um instrumento ideal para criticar a cultura dominante porque permite que os participantes desafiem suposições culturais básicas sobre si mesmos e seu mundo. Mas é preciso fazer a “lição de casa” e integrar o que se vivencia no ritual na vida cotidiana – essa é a parte mais importante da (auto)transformação.

Nunca esquecerei quando um dos participantes me disse: “Encontrei Deus esta noite e agora entendo o que Ele é e como posso manifestar Sua presença”. “O uni me disse que Deus está em todo lugar, em cada ser, e quer que dancemos, cantemos, estejamos em comunidade, compartilhemos a terra, estejamos juntos.”

Em várias entrevistas, os participantes expressaram que sentiam que a cultura ocidental não apenas desencoraja as pessoas de “descobrirem a si mesmas”, mas também não utiliza o ritual de forma construtiva. É como se nossa capacidade de estarmos abertos, curiosos, compreendermos e aceitarmos nossos próprios sentimentos e necessidades fosse bloqueada por outras necessidades imediatas que a sociedade moderna nos impõe.

Perdemos nossa capacidade de entender nosso lugar em relação à natureza para ter escolhas mais consistentes em torno de nossos sentimentos e comportamentos, para atender às nossas necessidades e às necessidades dos outros. Precisamos saber o que está acontecendo conosco primeiro, se quisermos entender outros humanos e outros seres. Saber o que os outros precisam é a chave para o equilíbrio ecológico.

Cada um de nós nasceu com uma certa capacidade de nutrir. Nutrindo-nos, podemos nutrir outros seres, como no ato de amamentar.

Arne Naess, o pai da ecologia profunda, chamou esse processo de auto-realização. Para nós, humanos, a auto-realização envolve o desenvolvimento de uma ampla identificação em que o sentido do eu não é mais limitado pelo ego pessoal, mas sim engloba totalidades cada vez maiores. Naess chamou esse sentido expandido do eu de “eu ecológico”, onde nosso próprio esforço humano pela auto-realização está em pé de igualdade com os esforços de outros seres.

Há uma igualdade fundamental entre a vida humana e não humana. Essa perspectiva contrasta com a visão antropocêntrica que atribui valor intrínseco apenas aos humanos, valorizando a natureza apenas se for útil à nossa própria espécie.

Para isso, acredito ser importante compreender o papel das emoções no caminho para a prática da auto-realização. As emoções são consideradas respostas individuais a eventos relevantes que produzem sentimentos de prazer ou dor; ajudam a encontrar soluções para preocupações que não podem ser tratadas rotineiramente; são usadas ​​para aceitar ou recusar a interação com objetos, pessoas e outros seres; e elas tendem a controlar comportamentos e pensamentos.

Como tal, as emoções têm muita influência sobre como nos sentimos e atribuímos significado às coisas e às pessoas. Por exemplo, por que as pessoas votam em Jair Bolsonaro mesmo sabendo que ele não vai proteger a floresta e os Povos Indígenas? Também afetam nossa capacidade de agir em relação a outras naturezas que não humanas. Nos estudos da natureza humana, o envolvimento com essas ideias leva a aspectos afetivos e emocionais desde a psique até a escala global. Tal movimento inclui um apelo por uma ética e uma prática política que alimente os conceitos de “ser-em-comum”, de “estar em comunhão”.

Um dos principais desafios que temos como espécie é que nos esquecemos de nossa conexão com a natureza. Assumimos que somos donos da natureza. Os resultados iniciais da minha pesquisa mostram que as medicinas e os rituais amazônicos estão ajudando as pessoas a despertar essa conexão. Tão importante quanto isso, as pessoas estão entendendo que as plantas, por exemplo, são as “maestrinas da orquestra”, sustentando a vida na Terra.

Felizmente, há um crescente corpo de pesquisa sobre a inteligência e os ensinamentos de diferentes plantas. As plantas dominam todos os ambientes terrestres, compondo 99% da biomassa da Terra. Elas estão aqui desde muito antes de nós e provavelmente sabem muito mais sobre o nosso sistema terrestre.

Os indígenas sempre tiveram essa perspectiva de que as plantas são mestras. Alguns anos atrás, quem trazia isso à tona era ridicularizado. Agora, nem tanto. Há evidências convincentes de que as plantas são realmente inteligentes. Cabe a nós estarmos abertos para ouvir o que elas têm a nos ensinar.

Finalmente, as transições inclusivas são cruciais em tempos de crise e podem desafiar as práticas dominantes da sociedade moderna. Até agora, bloqueamos ou adiamos nossa capacidade de nos comunicarmos e agir sobre as inúmeras crises que enfrentamos como espécie, e as medicinas indígenas podem nos ajudar a catalisar essas transições.

Maria Fernanda Gebara é doutora em antropologia social, escritora e professora que passou a ultima década trabalhando com diferentes comunidades tradicionais na Amazônia Brasileira. Seus estudos focam nos desafios de modificar atitudes antropocêntricas de diferentes perspectivas investigando praticas locais, conhecimento tradicional, politicas, redes e mídia para entender configurações alternativas entres seres humanos e não-humanos. Para ler mais dos seus artigos, visite: https://forestless.net/

 

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