Como a arte indígena pode adiar o fim do mundo?
No Médio Xingu, a arte dos Juruna invoca os encantados e denuncia a destruição de um rio ameaçado por Belo Monte e Belo Sun


Os instrumentos do povo Yudja Juruna são confeccionadas de bambu (taquara) e chamadas de Flautas d’Água. Foto: Renata Utsunomiy.
A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”.
Estas são palavras de Davi Kopenawa no livro “A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami” (2015). Noutro lugar não tão distante do território Yanomami, um rio e suas gentes humanos e outros-que-humanos sofrem com ameaças e violações de direitos por razões similares às anunciadas por Kopenawa: extração de madeira e minério, cultivo de pasto para criação de gado, monocultivo de soja e milho transgênico e implantação de usinas hidrelétricas e mineradoras.
O Rio Xingu, afluente do Amazonas, vem sendo ameaçado desde a década de 1970 pelo Estado Brasileiro, responsável por orquestrar ações predatórias, como a abertura da Rodovia Transamazônica, iniciada em 1970; a Barragem de Belo Monte, inaugurada em 2016; e, mais recentemente, a expectativa da implantação da Mineradora canadense Belo Sun, na Volta Grande do Xingu, em Altamira-PA.
No ano da realização da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP30, em Belém, na Amazônia brasileira, estes acontecimentos continuam afetando diretamente o cotidiano de populações indígenas e ribeirinhas que vivem às margens do Rio Xingu, impactadas pela especulação predatória dos recursos que garantem seus modos de vida.

O Rio Xingu é um aliado na luta pela continuidade da vida de todos os seres que nele vivem e que dele dependem para continuar existindo. Foto: Edimilson Rodrigues / Acervo pessoal.
Esses indígenas explicam que, desde as primeiras operações da UHE Belo Monte, não é mais possível pescar, tampouco percorrer o Rio em suas canoas a remo com segurança. Além disso, são constantes as ameaças de inundações ou grandes secas no Xingu, causadas pela abertura e fechamento das comportas da barragem, que acontecem sem nenhum aviso prévio aos habitantes locais.
Enquanto os debates sobre Crédito de Carbono e litigância climática povoam as narrativas da população altamirense, ações de reparação ou redução de danos socioambientais propostos pela Norte Energia (Consórcio responsável pela obra) ainda não foram sequer cumpridas, passados quase dez anos desde o início do funcionamento da Hidrelétrica Belo Monte. Dentre elas, está a construção de sete soleiras ao longo do Rio – pequenas barragens que serviriam para criar áreas de alagamento permanentes para a reprodução da fauna aquática nas florestas de igapó.
Dentre os mais atingidos com a intensa migração e colonização das terras da Amazônia por pecuaristas, camponeses, garimpeiros, madeireiros e grandes empresas de extração, encontram-se algumas populações indígenas que compõem o sistema regional médio-xinguano, formado por conjuntos multiétnicos e multilinguísticos. São nove etnias e três troncos linguísticos distintos: Tupi (Assuriní do Xingu, Araweté, Parakanã, Juruna, Xipaya e Kuruaya), Macro-Jê (Xikrin e Kararaô) e Karib (Arara). Os povos dividem-se entre habitantes de Altamira, principal município da Região do Médio Xingu; das áreas no interflúvio dos rios Xingu-Iriri e Xingu-Bacajá; e da Terra do Meio. Próximos ou distantes de centros urbanos, alguns vivem em Terras Indígenas demarcadas, outros não.
Além dos indígenas, o sistema regional é composto por populações negras rurais (pequenos sitiantes e agroextrativistas), que habitam porções de terra às margens dos rios e, assim como os povos originários, possuem relações econômicas e ecológicas baseadas na caça, no cultivo, na coleta e na pesca. Como forma de socialização, esses grupos compartilham práticas culturais como festejos, mutirões, religiosidades e conhecimentos botânicos seculares, além de trocas matrimoniais interétnicas e inter-raciais.
Frente ao temor da implantação de um novo grande projeto, ainda sofrendo os efeitos tardios dos dois projetos anteriores – Transamazônica e Belo Monte -, a vida destas pessoas está marcada pelos assombros de um futuro sem o Rio Xingu, sem peixes e sem os seres encantados, outros-que-humanos, que povoam as suas cosmologias. Habitantes do fundo das matas e dos rios, que se comunicam como os humanos através de sonhos, vultos na mata, ou animais que manifestam intencionalidades humanas, especialmente peixes, onças e pássaros.
Diante dos riscos iminentes estes grupos, em suas interações socioculturais, propõem outras formas de ser e viver com e na floresta, além de modalidades criativas de comunicação com o Rio Xingu, tais como as performances sonoro-musicais expressas por flautistas da etnia Juruna (Yudjá), da TI Paquiçamba do Médio Xingu, Pará. Em contato com os Yudjá, habitantes do Território Indígena do Xingu (TIX), no Mato Grosso, eles estão intercambiando práticas culturais para se fortalecer enquanto grupo na relação com os agentes do Estado e especuladores de suas terras, florestas e fontes de água.
Entre os elementos deste intercâmbio estão a fabricação de objetos de cerâmica, de braceletes e colares de miçangas, e de instrumentos de sopro, especificamente flautas. Por um lado, as flautas intensificam as tentativas de diálogo com os seres encantados, habitantes das águas do fundo do Rio. Por outro, reforçam os laços de parentesco entre os dois grupos. Corroboram, ainda, para o reconhecimento público da identidade indígena, uma vez que os Juruna do Médio Xingu passaram por violentos processos de regionalização que provocaram, além de fugas e assassinatos, a erosão da sua língua originária e de conhecimentos ancestrais. Este efeito foi menor entre os parentes Yudjá, do Alto Xingu.

A arte das Flautas d’Água, é performada em rituais nas aldeias e à beira do rio, para se comunicar com os encantados. Foto: Renata Utsunomiya.
Os instrumentos, nomeados por eles próprios como Flautas d’Água, são confeccionados com bambu (taquara), e cada flautista realiza sua performance sonora no interior de rituais nas aldeias e à beira do rio, para se comunicar com os encantados. Também são tocadas em reuniões, eventos e atos públicos para indígenas e não-indígenas, como forma de demonstrar traços de etnicidade e da cultura, tanto para agentes do Estado (INCRA, FUNAI, IBAMA, Ministério Público) quanto para administradores e advogados de empreendimentos hidroelétricos e mineradores, em reuniões de execução e especulação capitalista de terras, florestas e fluxos de água.
“O rio é gente como nós”, narram com ênfase os indígenas e agroextrativistas do sistema regional médio-xinguano, pontuando que as águas precisam ser protegidas e cuidadas. O Rio Xingu é um aliado na luta pela continuidade da vida de todos os seres que nele vivem e que dele dependem para continuar existindo. Provocar mudanças intempestivas no seu fluxo, revirar a terra e contaminar com mercúrio este rio significa antecipar o fim do mundo, atentar contra a vida que o compõe e é composta por ele.
Por isso, é preciso e urgente narrar o rio pelo som do vento das flautas, que toca a superfície da água com uma intenção estética, artística e cultural, mas também, sobretudo em tempos de guerra, com intencionalidade política: anunciar e denunciar o fim do mundo antes que ele aconteça. Antes que nada mais possa ser feito para salvá-lo, e nos salvar (indígenas e não-indígenas), das catástrofes provocadas pela ganância e cobiça de quem ainda não aprendeu, com os Juruna (Yudjá) e com o Rio Xingu, que não é possível comer dinheiro.
O projeto dos indígenas, ribeirinhos e encantados para salvar o mundo da crise climática e evitar a extinção da espécie humana na terra é coletivo, ainda que nossos projetos, não-indígenas, não sejam nem coletivos, nem colaborativos.
Edimilson Rodrigues de Souza é antropólogo e etnólogo. Doutor em Antropologia Social pela Unicamp, professor na Fames-ES e pesquisador associado ao Afro-Latin American Research Institute (ALARI/Harvard University). Realiza pesquisas etnográficas com agroextrativistas e indígenas no Médio Xingu, Pará (Brasil), com ênfase nos modos de vida, aspectos rituais (canto, dança e performance) e fabricação de artefatos.
Montagem da página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão e Edição: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón