Uma aliança entre conhecimento local e científico para conservação dos manguezais amazônicos

A conservação de manguezais prevê praticar uma ciência-cidadã, em que pesquisadores da academia e da comunidade possam intercambiar informação através de diálogos

Os manguezais brasileiros fazem parte do bioma marinho-costeiro e se estendem por aproximadamente 9.900 km2 ao longo da costa brasileira desde os estados de Amapá até Santa Catarina (DINIZ et al., 2019). Cerca de 80% dos manguezais brasileiros estão na Amazônia Legal, chamados de manguezais amazônicos, especificamente entre os estados de Amapá, Pará e Maranhão, formando a maior faixa continua de manguezais do planeta (HAYASHI et al., 2019). Essa faixa também está dentro do maior Sítio Ramsar, dos sítios que incluem manguezal, No 2337 chamado “Estuário do Amazonas e seus Manguezais” (RAMSAR, 2018).

O manguezal é um ecossistema de suma relevância, não só pelo aspecto ecológico, mas também pelas características socioambientais. Por isso, ele é um sistema socioecológico complexo (Dahdouh-Guebas et al., 2021), que oferece serviços ecossistêmicos de três tipos: os serviços de regulação e manutenção, os serviços culturais e os serviços de provisão. Esses serviços são benefícios que o ecossistema manguezal provê para nosso bem-estar e bem viver.

Por exemplo, eles cumprem um papel fundamental na mitigação das mudanças climáticas, protegem a zona costeira de eventos catastróficos, brindam alimentação, recursos energéticos, recursos medicinais, formam o conhecimento ecológico local, a identidade cultural e até inspiração artística. Por isso, cerca de 80% dos manguezais estão sob proteção dentro de alguma unidade de conservação, já seja do tipo Área de Proteção Integral ou de Uso Sustentável (Hayashi, 2018).

Esse sistema socioecológico possui um sistema de governança ambiental, com suas regras de uso de forma voluntária (pelas comunidades estuarino-costeiras (OLIVEIRA; MANESCHY; FERNANDES, 2016) e de forma obrigatória (EYZAGUIRRE; FERNANDES, 2018). Por serem uma área natural protegida ou unidade de conservação, os manguezais são regidos por alguns princípios, tais como: transparência, justiça social, prestação de contas, participação, equidade, visão estratégica e resiliência (EYZAGUIRRE; FERNANDES, 2018).

O problema é que ainda existem grandes desafios para efetivar o sistema de governança e cumprir com esses princípios. Muitas das RESEX Mar não possuem Plano de Manejo, ferramenta de planejamento indispensável para assegurar a conservação dos ecossistemas, e as poucas que possuem não tem sido atualizadas (BORGES et al., 2020). O Plano de Manejo da RESEX Mar de Caeté-Taperaçu (ABDALA; SARAIVA; WESLEY, 2012) não é atualizado há uma década, o que pode gerar incertezas quanto ao uso desse maretório [junção de “maré” com “território”, o termo é usado pela população costeira do Brasil para se referir aos territórios influenciados pela maré, que por sua vez é influída pelos ciclos lunares ou pelas mudanças climáticas] (NASCIMENTO, 2021).

O conhecimento ecológico local (CEL) deve ser inserido de forma complementar junto ao conhecimento científico, já que ambos brindam robustez à construção de estratégias de conservação e de planejamento territorial. Para elaborar propostas dentro dos limites da interface ciência-politica-ação (BALVANERA et al., 2020), é indispensável inserir o CEL dentro das politicas públicas de conservação. Dessa forma, torna-se possível a atuação e aplicação de uma “extensão” transformadora, conforme mencionado por Paulo Freire.

Transformar isso de conceito em realidade prevê praticar uma ciência-cidadã, ciência colaborativa ou cocriativa (IWAMA et al., 2021), em que pesquisadores da academia e da comunidade possam intercambiar informação através de diálogos, propostas e opiniões, chegando a um acordo benéfico em prol da conservação dos manguezais e seus povos e prevenindo potenciais conflitos socioambientais.

Em 2015, foi definido o Plano Estratégico de Ramsar (2016-2024) com quatro objetivos e 16 metas relacionadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODSs), no intuito de mitigar e prevenir a degradação dos chamados “wetlands” (zonas úmidas), considerando os serviços ecossistêmicos prestados (RAMSAR, 2022). Entre eles, está o manguezal. Fomentar a governança, seja ambiental ou climática, de forma horizontal é urgente para alcançar minimamente as metas da Agenda 2030 e os ODSs.

Apesar de toda a legislação e acordos internacionais para proteger os manguezais, ainda existem grandes lacunas e desafios para a conservação e desenvolvimento sustentável desses ecossistemas. A ausência de dados contextualizados, ou ainda a falta de sistematização dos dados existentes enquanto ao status dos ODSs nas comunidades estuarino-costeiras, são apenas alguns exemplos dessas lacunas.

O desmantelamento dos órgãos fiscalizadores e da legislação ambiental de proteção também podem ser um grande risco e retrocesso para a conservação dos ecossistemas (ABESSA; FAMÁ; BURUAEM, 2019), incluído o manguezal. Isso afeta diretamente na fiscalização dos recursos comuns do manguezal, já que os órgãos não contam com recursos humanos suficientes para cumprir suas demandas – além de ter que lidar com os conflitos latentes entre pescadores, principalmente extratores de caranguejo-uçá (Ucides cordatus). Segundo uma pesquisa sobre representações ambientais realizada na RESEX Mar de Caeté-Taperaçu, localizada no município de Bragança, no Pará, muitos pescadores pontuam conflitos relacionados à fiscalização:

Agente Ambiental Voluntário da comunidade de Vila dos Pescadores, Bragança

“Geralmente existe multa, só que a gente tenta monitorar o pessoal, geralmente nós conversa com o pessoal, principalmente para não tirar madeira. Mas domingo nós flagramos desmatando, eles (extrativistas estuarino-costeiros externos) roubarom madeira, já eles vão ser presso o vão ser multos. A madeira tira para fazer curral, eles tiram a tinteira, desmatarom uma faixa de umas três mil arvores. Tudo eu filme em vídeo que vou mostrar ao IBAMA.”

Agente Ambiental Voluntário da comunidade de Treme, Bragança

“A gente fiscalizava caranguejo, a condurua que não podia matar por ser a fêmea. A gente também fiscaliza o manguero (R. mangle), ele não se pode cortar verde porque é o alimento do caranguejo e outros bichos. Mas tem pessoal que não quere obedecer, tem gente que acham ruim sabe. Eu já fui ameaçado de morte quando eu era fiscal dalí (comunidade de Treme). Os rapazes me convidaram para acompanhar eles, mas eles pensavam que eu estava denunciando sabe, porque era Agente.

Pescador artesanal, Taperaçu Porto, Bragança

“Na minha opinião, pelo menos eu acho, que deveria ter defeso na pesca, nem que o defeso do caranguejo. Porque quando chega a safra, tem muito peixe meúdo e o pessoal que trabalha com curral principalmente, os curraleiros que trabalham com fuzarca vão matando os peixes todinhos, é graúdo, é meudo, tudo já esta morto não tem como mais jogar na água. Eu ligue para o IBAMA, eles falaram que não tinha nada a ver com isso, a responsabilidade era dos curraleiros e nada a ver com o artesanal. Eles falaram que não tinha nada a ver e eu tinha que ligar para Brasilia, aí eu tente ligar para lá, mas foi aquela dificuldade sabe (burocrática), aí eu me aborreci daquilo e deixe para lá.”

Falas extraídas do capítulo de livro sobre Governança Ambiental (EYZAGUIRRE; FERNANDES, 2018)

Para evitar conflitos socioambientais relacionados à governança dos recursos comuns do manguezal é indispensável integrar o conhecimento científico e tradicional a partir das políticas públicas. Isso não pode ocorrer, ainda, sem incentivar o cumprimento dos princípios da governança, como a prestação de contas e a transparência.

Promover intervenção educativa ou de “Alfabetização Climática” e “Alfabetização do Mangue” para todos os atores-chave, por exemplo, é essencial. Muitos pescadores e pescadoras que habitam as comunidades estuarino-costeiras dentro de RESEX Mar desconhecem a função e a importância desse tipo de unidade de conservação. Para confrontar os desafios relacionados à governança e à conservação, é necessário inserir metodologias de inovação social como os “Laboratórios Cidadãos de Experimentação” (SILO, 2022), ou ainda práticas de Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS) dentro das comunidades. Isso também é um papel de nós, pesquisadores.

Indira Eyzaguirre é engenheira ambiental, na área de Gestão Ambiental, e possui mestrado em Ecologia e Socioambiental. Atualmente, é pesquisadora doutora do Laboratório de Ecologia de Manguezal (LAMA) e coordenadora do projeto “Redes de conhecimento tradicional sobre a governança de manguezais no Peru e no Brasil” financiado pela Fundação Rufford. Criadora da Holistic Science e cofundadora da Conecta Amazônia Azul, que trabalha com divulgação científica.
Referências
Foto em destaque: Indira Eyzaguirre/Amazônia Latitude.

 

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »