Mato Grosso planeja sair da Amazônia Legal para desmatar mais, diz Philip Fearnside

O pesquisador do Inpa Philip Fearnside em frente a uma pintura. Ele usa camisa azul de manga longa e segura um microfone, enquanto olha para o canto direito. Ele tem um proeminente bigode.
Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real/ Wikimedia Commons
Pesquisador do Inpa fala sobre PL que pode agravar crise climática, desmatamento e distúrbio do ciclo da água

Um novo projeto de lei que está avançando no Congresso Nacional sugere a exclusão do estado do Mato Grosso da área de proteção da Amazônia Legal, onde o desmatamento é limitado por meio de uma exigência do Código Florestal brasileiro. Segundo estudo publicado na revista Die Erde por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Universidade de São Paulo (USP), Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) e Instituto Nacional da Mata Atlântica, a mudança proposta permitiria que uma vasta área fosse legalmente desmatada. Além disso, as emissões de carbono decorrentes desse desmatamento prejudicam ainda mais as metas climáticas do Brasil, que serão discutidas na conferência climática das Nações Unidas (ONU), a COP27, neste mês.

Com a proposta do PL 337/2022, a obrigação de preservar a vegetação nativa em áreas de cultivo no Mato Grosso cai para apenas 20%, dos 80% (em áreas de Floresta Amazônica) e 35% (em áreas de Cerrado). A pesquisa associa essa proposta ao desmantelamento das medidas de preservação ambiental no Brasil, que foram deterioradas dentro da atual gestão federal.

De acordo com Philip Fearnside, pesquisador do INPA e um dos autores do artigo, o setor de agronegócio, interessado em desmatar mais, tem enorme força devido ao volume de dinheiro que este setor gera na economia. Este dinheiro se transforma em influência política, que é refletida na enorme representação da bancada ruralista no Congresso Nacional.

“Evidentemente, as forças políticas do Mato Grosso acham vantajoso desmatar mais. Sua terra é muito valorizada agora, devido à transformação em pastagens e plantações soja”, destaca o pesquisador.

Segundo ele, o PL aproxima ainda mais o mundo do chamado “pontos de não retorno”, em que os danos aos sistemas climáticos já seriam irreversíveis. O autor destaca, ainda, que o argumento da necessidade de mais cultivo para alimentar os famintos e necessitados é falso, e que a proposta serve para justificar o aumento da exploração.

O que é a Amazônia Legal, e por que o Mato Grosso foi incluído nesse grupo de estados?
O conceito de Amazônia Legal existe desde o início da década de 1950. Integram o território regiões com problemas socioeconômicos semelhantes, com nove estados – Amazonas, Pará, Tocantins, Acre, Amapá, Rondônia, Roraima, Mato Grosso e parte do Maranhão –, correspondendo a 58,9% do território nacional. O conceito é político, não de um imperativo geográfico, e seus limites não se confundem com o bioma Amazônia, que se estende por 49% do território brasileiro. Além de abrigar toda a floresta tropical, a Amazônia Legal também abarca 20% do bioma Cerrado e parte do Pantanal mato-grossense.

Isso foi feito para estender os incentivos fiscais, programas do governo favorecendo a Amazônia para esses outros estados, incluindo o Mato Grosso. Então é uma vantagem estar dentro da Amazônia Legal. Na época da criação da região administrativa, muito dinheiro foi direcionado para subsidiar fazendas de gado. Com o Código Florestal de 1965, e depois com sua ampliação por um decreto do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002, foi aumentada a área destinadas a reservas legais. Antes, cada propriedade tinha que preservar 50% da vegetação nativa, proporção que subiu para 80% na Amazônia Legal. No Cerrado, foi para 35%. Fora da Amazônia Legal, a exigência é só de 20%. Por isso, o Mato Grosso quer sair da Amazônia Legal para poder desmatar mais, o que tem impactos ambientais grandes.

Quais são os benefícios fiscais de fazer parte da Amazônia Legal? Isso não compensa ter limites mais baixos de desmatamento?
Evidentemente, as forças políticas do Mato Grosso acham vantajoso desmatar mais. Dentro da Amazônia Legal, há vários programas de isenções de impostos para diferentes tipos de investimentos, bem como financiamento com juros mais baixos para construir fazendas, por exemplo. Há redução fixa do Imposto de Renda para pessoas jurídicas (IRPJ), isenção do imposto para empreendimentos voltados para o programa de inclusão digital, e reinvestimento automático de 30% do IRPJ para o chamado “para o desenvolvimento regional”. Só que, no início dos anos 1990, a Sudam parou de dar incentivos a novos projetos, mas continuam sendo pagos para centenas de negócios já aprovados. Nas novas fazendas, os subsídios não são um benefício no Mato Grosso, e sua terra é muito valorizada agora, devido à transformação em pastagens e plantações soja.

O projeto se justifica dizendo que a produção agropecuária no Mato Grosso é necessária para combater a fome no mundo, mas o artigo refuta o argumento. Por que isso não é verdade?
A fome no mundo não se deve à falta de alimentos, a limites na produção. Existe fome porque a população é pobre demais e não consegue comprar a comida que está à venda. Outro grande caso são os conflitos, guerras, que causam fome, mas não tem nada a ver com a quantidade de soja sendo produzida no mundo. Além disso, produtos como carne de boi e soja são irrelevantes para a dieta das pessoas que estão passando fome. Carne de boi não vai para a África, por exemplo. Enquanto isso, a soja não entra na dieta das pessoas, serve para alimentar porcos na China, não para alimentar os pobres. Muito diferente do trigo, por exemplo.

Quais as consequências de reduzir a preservação da vegetação nativa de 80% para 20%?
Há duas áreas do clima que sofrem consequências: o efeito estufa na atmosfera e o ciclo da água. No caso do efeito estufa, a degradação das florestas libera CO2, e a substituição da vegetação por gado aumenta a liberação de gás metano. Isso resulta em um problema global. No mundo, o grosso das emissões vem de combustíveis fósseis, não de desmatamento, mas a atividade ainda representa uma parcela importante do problema. Estamos muito perto de cruzar o ponto de não retorno, ou “tipping point”, quando o clima sai do controle. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que saiu no ano passado, o mundo emite 12 bilhões de toneladas de carbono por ano. Para conter o efeito estufa, precisaríamos zerar todas as emissões a partir de agora: não cortar nem mais uma árvore, não queimar nem mais um litro de gasolina. Passando de 12 bilhões de toneladas, chegamos ao chamado efeito estufa em fuga, ou “runaway greenhouse effect”, fora do controle. O aumento do desmatamento que resultará desse PL é mais um elemento que contribui para esse quadro.

O segundo aspecto passa pela reciclagem de água – importante, inclusive, para o agronegócio do Mato Grosso, que já está sofrendo impactos. Os períodos de seca estão ficando mais longos. Em Rondônia, já aumentou três semanas. O Mato Grosso segue pelo mesmo caminho e está perdendo safras, especialmente de soja e milho. O agronegócio depende da umidade que vem da Amazônia, dos chamados rios voadores, que levam água reciclada pela floresta até o sul do país. Em 2014, a cidade de São Paulo quase ficou sem água por causa da mudança no padrão das secas e dos rios voadores, que passam, também, por cima do Mato Grosso. As florestas remanescentes são muito importantes para manter o ciclo da água.

Quão avançado está o projeto? Há chances de que ele seja aprovado?
É claro. A bancada ruralista é chave no Congresso Nacional e, junto com o resto do centrão, controla o legislativo. Além da questão do Mato Grosso, uma série de projetos antiambientais que estão sendo acelerados, para serem aprovados antes do fim deste ano.

Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, que tem uma política ambiental diferente da de Jair Bolsonaro, seria possível reverter essa ação se ela for bem sucedida?
Mesmo com um presidente diferente, o Congresso é independente, e a composição permanece conservadora e dominada pelo centrão. Por isso, será difícil reverter o caminho das políticas antiambientais.

O Código Florestal do Brasil especifica que, na Amazônia Legal, o percentual de cada propriedade que deve ser mantido em uma “reserva legal” é de 80% se a vegetação original no local for floresta. Qual sua opinião sobre o Código? Essas restrições são suficientes para conservar a floresta?
São medidas importantes, porque a restrição fala sobre uma área grande de floresta que precisamos preservar. Mas precisa ser colocado em prática por meio da fiscalização e de órgãos responsáveis pela área ambiental. O último governo afrouxou todas as estruturas de controle, e isso precisa ser retomado. Outras opções em termos de desenho do Código foram um fracasso. Nos anos 1980, foi feito um projeto de assentamentos que dava a cada assentado um lote menor, onde ele tinha direito de desmatar tudo, e a parte preservada era uma soma das áreas intocadas de cada assentado. Isso foi feito em Rondônia e no norte do Mato Grosso. O que aconteceu foi que houve desmatamento tanto nos lotes quanto nas reservas, que foram invadidas, levando à degradação generalizada da floresta nessas áreas. Por isso, o desenho mais eficaz é o atual.

Em seu discurso na última Assembleia-Geral da ONU, Bolsonaro repetiu o argumento de que o problema do desmatamento no Brasil é exagerado pela mídia e que cerca de 80% da Amazônia ainda estaria intocada, culpando comunidades locais pela degradação. Esse argumento se sustenta?
Esses argumentos são falsos. Nas imagens do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 20% da Amazônia Legal aparece como desmatada, mas isso não significa que o resto está intacto. Muitas áreas estão degradadas. O que mantém a floresta em pé é a dificuldade de acesso, especialmente naquele bloco de floresta no oeste do estado do Amazonas, e ao norte do rio Amazonas, onde a falta de estradas dificulta a entrada do desmatamento. O governo de saída fez planos para mudar isso, rasgando esses terrenos com estradas, como a BR-319, que pretende ligar Manaus ao Arco do Desmatamento. O foco desse problema não são os ribeirinhos, nem os indígenas. O desmatamento deles é mínimo se comparado com grandes empresas e o agronegócio.

Você é um grande defensor dos serviços socioambientais. Como impedir o desmatamento pode contribuir, além do setor ambiental, para o setor econômico?
Serviços ambientais são os serviços que a natureza fornece ao homem e que são indispensáveis à sua sobrevivência. Exemplos incluem proteção contra desastres naturais, controle da erosão, polinização, fertilização do solo, fornecimento de alimentos e substâncias medicinais. Se esses serviços ambientais acabarem, não é apenas desastroso para o setor econômico. A água tem um grande impacto sobre o Brasil e os países vizinhos. A Argentina, inclusive, parece mais preocupada que o Brasil em perder a Floresta Amazônica. Mas o Brasil seria uma das principais vítimas em ambos os casos, tanto do efeito estufa quanto da água. Se o efeito estufa escapar do controle, teria efeitos catastróficos para a economia. Perderíamos a Floresta Amazônica, o Nordeste seria completamente devastado e as secas que vemos no sudeste do Brasil aumentariam ainda mais. Como manter o fornecimento de água para mais de 20 milhões de habitantes de São Paulo sem os rios voadores? Vidas estão em jogo, não é só dinheiro.

Projetos como a saída do Mato Grosso da Amazônia Legal e a construção da BR-319, que é defendida inclusive por Lula, têm custos astronômicos. Nenhuma governança pode resolver os problemas que eles geram. Isso vai levar a mais crimes ambientais, não menos.

Acesse aqui o artigo completo da Die Erde.
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