‘A gente tem receio de falar’: o racismo linguístico na universidade

Livro analisa como a relação entre língua e raça perpetua uma estrutura colonial

“Os outros colegas já sabem o que vão encontrar lá dentro [da universidade] e nós, indígenas, não. Nós vamos ver lá dentro a primeira vez, lá dentro. E a gente já sofre tanta discriminação, a gente tem até receio de falar e ser mais recriminado.”

Esse é um dos depoimentos de jovens estudantes registrados no livro “Racismo linguístico e os indígenas Gavião na universidade: língua como linha de força do dispositivo colonial”, fruto da tese de doutoramento de Flávia Marinho Lisbôa.

A versão online do livro, completa e gratuita, está disponível neste link. A versão impressa pode ser adquirida aqui.

Publicada em 2022 pela Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba), a obra reflete sobre a diversidade de sujeitos que têm conquistado acesso à universidade pública brasileira nos últimos anos e o papel da língua como uma potente linha de força da colonialidade – ou seja, a língua portuguesa como “cerca” de espaços hegemônicos ao longo da história desde a colonização europeia.

Flávia Lisbôa é capixaba e vive na Amazônia há 20 anos, no Pará, onde constituiu sua trajetória acadêmica e profissional. É professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), com doutorado em Letras/Estudos Linguísticos (UFPA). Até 2021 era professora na Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), onde presidiu a comissão que instituiu a política de acesso específico e diferenciado para indígenas e quilombolas.

“A recente entrada na universidade de grupos historicamente desprestigiados empurra para o limite as necessidades de transformações do âmbito acadêmico, assim como na sociedade de forma geral”, diz Lisbôa.

Para compreender as relações entre língua e poder no Brasil, o livro aborda ideias como “racismo linguístico”, “colonialidade linguística”, e “língua como linha de força” como efeito da governamentalidade imanente ao dispositivo de poder colonial. A obra toma a permanência na universidade como atualização dos modos de resistir dos povos indígenas.

Lisbôa alerta que a desumanização dos indígenas e africanos no processo de colonização não ficou no passado. Os sistemas de exclusão numa sociedade movida pela colonialidade se manifestam ainda hoje – e o campo linguístico não fica de fora.

No capítulo que trata da língua na relação com o racismo, a autora defende uma troca mútua. “A colonialidade precisa da língua para se materializar nas relações e práticas sociais. A imposição do português em padrões protegidos e compartilhados entre uma elite foi a forma como a hegemonia apagou e continua eliminando a possibilidade de circularem por espaços de prestígio (como a universidade) pessoas indígenas e negras”, afirma.

A pesquisadora conclui que a discussão evidencia a necessidade de ampliar nas universidades públicas (e em outros espaços de poder) a presença de pessoas pretas, indígenas, com deficiência e LGBTQIA+. Para Flávia Lisbôa, há muito ainda o que ser feito, mas os avanços que aconteceram nos governos do PT foram históricos e isso só foi possível devido à efetivação de políticas públicas voltadas à minoração dessas desigualdades.

Ao prefaciar o livro, o professor e liderança indígena Gersem Baniwa compartilha os “sentipensamentos” que o atravessou. “O principal deles foi o sentimento de alívio e de esperança em tempos tão sombrios de dores, sofrimentos e desesperanças no mundo e especialmente no Brasil governado por racistas autoritários e necropolíticos”. Para Baniwa, a obra demonstra a possibilidade de outro mundo a partir de outra universidade.

O prefácio também é assinado pelo professor Bessa Freire, reconhecido pelo trabalho com sociedades indígenas. Freire acentua que “o lugar de inferioridade atribuído pela universidade aos saberes que os indígenas trazem da aldeia desprestigia os sujeitos que neles fundamentam sua existência, ocasionando o epistemicídio e o glotocídio”.

Maria do Rosário Gregolin, uma das mais renomadas professoras da Análise do Discurso no Brasil, ressalta as reflexões que a obra possibilita na relação entre a universidade e a história colonial do Brasil. “Este livro, ao mesmo tempo em que expõe as fraturas da história universitária brasileira, aponta para possibilidades de conquista da autonomia e do protagonismo indígenas como armas vigorosas para a transformação da sociedade brasileira”.

Livro: Racismo linguístico e os indígenas Gavião na universidade: língua como linha de força do dispositivo colonial
Autora: Flávia Marinho Lisbôa
Editora: Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba)
Ano: 2022
Páginas: 221
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