Como a Ditadura usou bancos, estradas e decretos para ‘ocupar’ a Amazônia

Obras na ponte sobre o rio Madeira, na divisa do Amazonas e Rondônia, na BR-319 – rodovia fez parte do projeto de "integração" da Ditadura. Foto: Divulgação / PAC/ governo federal – set/2013

Este texto é uma adaptação do artigo “A Amazônia entre os anos 1964 a 1970: apontamentos sobre as primeiras intervenções do autoritarismo”, publicado em outubro de 2022 na “Revista Somanlu”

  • Com o golpe civil-militar de 1964, o governo federal adotou uma série de medidas na Amazônia, alegando a necessidade de apropriação do território, integração nacional, segurança e desenvolvimento
  • A Operação Amazônia é o marco inicial desta “ocupação”, reunindo projetos e decretos que abriram caminho para intervenções maiores
    Por meio do Basa e da Sudam, o regime impulsionou o desenvolvimento capitalista na Amazônia
  • Com incentivos fiscais, a Zona Franca de Manaus é consolidada, causando um boom comercial na região no final da década de 1960
  • A construção de rodovias como a Transamazônica, Cuiabá-Santarém, Manaus-Boa Vista e Manaus-Porto Velho fizeram parte do Programa de Integração Nacional, para supostamente levar “terras sem homens para homens sem terra”

O golpe civil-militar de 1964 desencadeou várias transformações na região amazônica. O governo federal lançou mão de uma série de políticas para a região, considerada como um “vazio demográfico” à época. A partir daí, foram elaboradas estratégias governamentais, sob justificativa de levar segurança, desenvolvimento econômico e integração nacional.

Os primeiros seis anos do regime já refletem como a Região Norte é tomada na agenda política nacional.

A importância de elaborar um resgate histórico deste processo é compreender os interesses estratégicos e a posição-chave da Amazônia para o governo autoritário. Isolamento, “vazio demográfico” e atraso econômico eram categorias explicitadas em torno das intervenções do Estado. Questões econômicas, políticas e militares permearam os discursos oficiais sobre o tema.

O planejamento governamental prezava pela apropriação do território, integração nacional, segurança e desenvolvimento. A intervenção federal na região materializa-se em formas de grandes projetos de infraestrutura e órgãos governamentais.

Operação Amazônia: o começo da “integração”

A Operação Amazônia foi uma reunião de medidas, projetos e decretos implementados na Região Norte com a justificativa de minimizar ou eliminar o atraso econômico na Amazônia.

De acordo com Nice Ypiranga Benevides de Araújo, a origem do projeto remonta a um discurso de 1965 do primeiro presidente do período da Ditadura Militar, Humberto Castello Branco, em que comentou sobre o desenvolvimento regional, planejamento e contribuição da iniciativa privada nesse processo.

O discurso objetivava alicerçar as ações que o governo autoritário iria executar na região a partir dali, que estavam dispostas em quatro anteprojetos: a transformação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) na Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) e do Banco de Crédito da Borracha (BCB) em Banco da Amazônia S/A (Basa).

Em 1966, essas leis básicas da Operação Amazônia foram instituídas, incluídas as leis incentivos fiscais e a política econômica em relação à borracha. Para Araújo, “estava legitimada a intervenção do Estado na Amazônia” e, a partir desse momento, ocorreu “uma profunda modificação na orientação do governo para a região”.

Se fosse possível estabelecer um marco que tornasse visível o momento da ‘integração da Amazônia’ – estabelecendo o instante de sua ‘captura’ pelo capital monopolista, com a mediação do Estado – este marco, certamente, seria a Operação Amazônia.
Nice Ypiranga Benevides de Araújo

“Os argumentos para a ‘integração’ da Amazônia iam desde o vazio demográfico à cobiça estrangeira, passando pela segurança das muitas fronteiras da região e pela proposta de interesses alienígenas no sentido de sua internacionalização”, afirma a pesquisadora.

Em dezembro de 1966, a Operação Amazônia foi lançada pelo presidente Castello Branco na cidade de Manaus. A partir desse momento, são levados a cabo uma série de estratégias, planos e decretos executados na região para “integrá-la” e inseri-la no projeto nacional de desenvolvimento.

Basa e Sudam: os pilares do desenvolvimento capitalista na Amazônia

O Banco da Amazônia S/A foi criado em 1966 com o intuito de fomentar o desenvolvimento econômico da região. Desempenha um papel elementar na política de desenvolvimento. É encarregado de ser o agente financeiro e depositário dos recursos oriundos dos incentivos fiscais.

Inicialmente, tinha como tarefa exclusiva as operações finais de compra e venda de borracha. A partir de novas configurações do governo federal, as atribuições do banco foram ampliadas, e a borracha ficou em segundo plano. Ganharam destaque os créditos a outros setores, como agropecuária e indústria, mas as atividades extrativistas continuaram a ser assistidas.

A reestruturação do Banco de Crédito da Borracha, criado na década de 1940, fazia parte da nova lógica de atuação do governo na região. Ariovaldo Umbelino de Oliveira assevera que o Basa veio a representar um dispositivo proeminente na atuação do Executivo, isto é, tornou-se “o agente financeiro do sistema”.

Em 27 de outubro de 1966 é extinta a SPVEA e criada a Sudam. Esta última tinha como propósito o planejamento, a coordenação e a execução da política do governo federal para a Amazônia no desenvolvimento regional.

A Sudam também tinha como responsabilidade a elaboração do segundo Plano de Valorização Econômica da Amazônia (PVEA). O objetivo era “promover o desenvolvimento autossustentado da economia e o bem-estar social da região amazônica, de forma harmônica e integrada na economia nacional”.

Em “Amazônia: expansão do capitalismo”, Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Müller evidenciam a diferença entre o primeiro PVEA, de 1953 e o posterior, de 1966: no pioneiro, o documento preza pela associação entre o capital estatal e o privado nacional; já o último estimula tanto o capital nacional quanto o estrangeiro. Isso explicita uma mudança no modelo de desenvolvimento aplicado à região.

A autora Bertha Becker fala a respeito da aprovação de 590 projetos entre os anos de 1966 a 1985. A maioria está próxima à rodovia BR-153 (Belém-Brasília).

Embora os primeiros projetos agropecuários implantados na Amazônia datem de 1966, é somente a partir de 1970 que a atividade toma ímpeto e se consolida econômica e politicamente na região. O governo federal passa a estimular a instalação de empresas agropecuárias, principalmente pelo fornecimento de incentivos fiscais.

Como resultado, ocorre o aumento da concentração de terras por parte de grupos econômicos nacionais e estrangeiros com sede no Sudeste. O desmatamento em grandes magnitudes e em ritmo acelerado são outros fatores desencadeados.

A atuação do Basa e da Sudam estava em consonância com a lógica e estratégia governamental da Ditadura Civil-Militar. Para Octávio Ianni, os dois órgãos governamentais foram basilares “para a formulação de diagnósticos e adoção de medidas econômicas para o desenvolvimento do capitalismo na Amazônia”.

A Zona Franca de Manaus: mais um capítulo da “ocupação” amazônica

Criada em 1957 como Porto Livre, o projeto da Zona Franca de Manaus é ampliado dez anos depois, por meio de um decreto que estabeleceu incentivos fiscais por 30 anos para a implantação de empresas dos ramos industrial, comercial e agropecuário na região. O objetivo era promover o desenvolvimento bem como a manutenção da integridade territorial da Amazônia Ocidental (Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima).

O ano de 1972 é o momento chave do setor industrial. Com a implantação do Distrito Industrial de Manaus, ocorre a implantação da primeira indústria, a Companhia Industrial Amazonense (CIA), que tinha como foco a produção de estanho. Em seguida veio a Springer, voltada para a produção de ar-condicionado, conforme registrado pela Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus).

Imagem da pedra fundamental do Distrito Industrial em 1968. – Fonte: Reprodução/Suframa, 2015

O modelo de Zona Franca já existia – e existe em vários países. De acordo com Nice Araújo, estes locais “são espaços industriais enclavados, onde empresas multinacionais podem importar livremente matérias-primas ou produtos semi-acabados para processá-los e reexportar”.

A ZF de Manaus foi justificada como o modelo de desenvolvimento econômico regional que visava integrar a economia e a ocupação humana da região. A Suframa foi a autarquia criada para administrar, bem como promover o desenvolvimento através de incentivos fiscais à iniciativa privada.

Em artigo de 2005, José Seráfico e Marcelo Seráfico argumentam que a ZF de Manaus é mais um capítulo da Operação Amazônia, já que a implementação do espaço teve como justificativa a ocupação de uma região supostamente despovoada.

É preciso discorrer as razões pelas quais Manaus foi escolhida como pólo industrial:

  1. Já havia um projeto de 1957, uma área de Porto Livre, e a lei de criação da Zona Franca de Manaus foi ampliada e reformulada.
  2. Havia proximidade com outras zonas francas já existentes na América Latina, como as da Colômbia, Peru e Panamá. Isso contribuiria para a melhor troca e escoamento da produção.
  3. Era interessante para o governo federal o processo de ocupação e desenvolvimento na Amazônia Ocidental, isto é, estava alinhado aos ideais de segurança nacional, ainda conforme os autores.

No período de junho a dezembro de 1967 houve um boom comercial em Manaus. Após a divulgação da ZF, comerciantes de vários lugares do Brasil e até de outros países se instalaram na cidade. Nesse período foram abertas 116 lojas, a maioria importadoras e exportadoras. Em 1968 também começam os estudos para a construção do aeroporto Eduardo Gomes e, em 1969, o Comando Militar da Amazônia (CMA) é transferido de Belém para Manaus.

Os incentivos fiscais concedidos pela Suframa às empresas que desejavam se instalar na ZFM diziam respeito ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto de Importação (II), Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), Imposto sobre Exportação (IEX), Programa de Exportação (PROEX) e Distrito Industrial.

As estradas BR-174 (Manaus-Boa Vista) e BR-319 (Manaus-Porto Velho)

Desde o século 19 havia o interesse em construir uma ligação terrestre entre Manaus e Boa Vista. No entanto, esse projeto só foi concretizado entre os anos 1968 a 1977 quando ocorreu a construção da BR-174.

Até 1970, a estrada era responsabilidade do Departamento de Estradas de Rodagem (DNER). Posteriormente, a obra ficou a cargo do 6º Batalhão de Engenharia de Construção Batalhão Simón Bolívar (6° BEC), com sede em Roraima, e foi inaugurada em 1977.

Na época, a construção teve como justificativa a segurança das fronteiras, a conexão internacional que a estrada oportunizaria e o escoamento da produção da Zona Franca de Manaus. Todavia, a obra ficou marcada pelos conflitos entre o Exército e o povo indígena Waimiri-Atroari.

Da família linguística caribe, os Waimiri-Atroari habitam a região norte do Amazonas e o sul de Roraima. A passagem da BR-174 dentro de seu território durante a década de 1970 foi um momento trágico que quase levou ao extermínio da etnia.

A construção da estrada entre Manaus e Boa Vista era justificada por aspectos econômicos, nacionais, internacionais e regionais. Além disso, a segurança nacional e guarnecimento das fronteiras eram fatores que permeavam o pensamento do governo à época, onde o “isolamento” amazônico era considerado perigoso.

Além da ligação terrestre com Roraima, o Amazonas também foi conectado com Rondônia através da BR-319. A construção dessa rodovia remonta ao governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), quando o presidente solicitou dois estudos visando identificar a viabilidade de uma ligação terrestre entre Manaus e Porto Velho. O projeto em questão foi retomado em 1968 e começou a ser realizado pelo diretor do Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas (DER-AM), Mauro Carijó. A empresa responsável pela obra foi a Andrade Gutierrez, tendo duas frentes de trabalho: uma de Manaus e outra de Porto Velho.

Marcelo da Silveira Rodrigues afirma que a construção da BR-319 era parte “de um projeto de integração geográfica e de dinamização da economia regional”. Essa integração nacional era uma justificativa, e também o entendimento de que a ZFM proporcionaria um grande fluxo de mercadorias, e consequentemente, um grande tráfego.

O Programa de Integração Nacional: “terras sem homens para homens sem terra”

O Programa de Integração Nacional (PIN), instituído pelo Decreto-Lei nº 1.106 de 1970, tinha como objetivo oficial promover a integração e o desenvolvimento econômico do Nordeste e do Norte. A primeira etapa ordenava a construção das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém.

O projeto da Transamazônica consistia em 5 mil quilômetros partindo de João Pessoa, na costa atlântica do Nordeste brasileiro, e chegaria até o Oceano Pacífico, no Peru. Já a Cuiabá-Santarém partiria do centro do Brasil para chegar à floresta amazônica.

Mapa do Programa de Integração Nacional – Fonte: Ministério dos Transportes, 1970

Sobre os motivos para a construção das rodovias, podemos destacar:

  1. A Amazônia como “vazio demográfico”, mas com grande potencial econômico
  2. O excedente populacional do Nordeste
  3. A ideia de que as estradas de rodagem são agentes econômicos de impulsão para o desenvolvimento

Os projetos em questão estavam relacionados à lógica do governo militar: a “decisão do Brasil de conquistar e colonizar a Amazônia”, como ressaltado à época pelo Ministério dos Transportes.

A construção da Transamazônica representava duas questões: terra e segurança interna. No que se refere à colonização, foram destinados 10 km de extensão para cada margem das rodovias Cuiabá–Santarém e Transamazônica.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) teve um papel-chave para implementar a política de colonização do espaço, visto que os lotes, na maioria das vezes, eram vendidos pelo órgão, além de a regularização fundiária ser atribuição da autarquia.

A política de colonização oficial tem ênfase entre 1970 a 1973, e a principal área de atuação foi a Transamazônica. Nesse período, são disseminados os slogans governamentais “Integrar para não entregar” e “Amazônia: terras sem homens para homens sem terra”.

A Transamazônica foi representada como símbolo nacional da integração e da expansão do capitalismo.

Posteriormente outras estradas foram incorporadas, como:

  • BR-165 (Suriname–Tiriós–Santarém–Cuiabá)
  • BR-174 (Manaus–Boa Vista–Venezuela)
  • BR-319 (Manaus-Porto Velho)
  • BR-364 (Porto Velho-Cuiabá)
  • BR-236 (Cuiabá–Peru)
  • BRs 406 e 317 (Rio Branco–Lábrea–Humaitá e Transamazônica)
  • BR-401 (Boa Vista–Guiana)
  • BR-210 (Perimetral Norte, Macapá–Caracaraí–Colômbia)
  • BR-307 (Venezuela–Içana–Benjamin Constant–Cruzeiro do Sul), abrangendo seu prolongamento da BR-165 (Santarém–Suriname)

A construção de estradas na Amazônia expressa esse modelo de intervenção na região. A política de transportes inserida na lógica governamental representa a estratégia de apropriação do território. As estradas também precedem ou são construídas simultaneamente à instalação de projetos industriais, agropecuários ou minerais nos seus arredores.

Rozana Correa Santos é mestra em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e socióloga pela mesma instituição. Desenvolve pesquisas sobre os temas: Amazônia, política rodoviária, segurança nacional, desenvolvimento e integração nacional.
Odenei de Souza Ribeiro é sociólogo e doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam)
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