Os atravessamentos literários sobre a Amazônia

Arte de Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude
  • Amazônia sempre foi explorada pelo viés literário de diversos países, e este fato contribui para esse processo;
  • Literatura brasileira de expressão amazônica esbarra, portanto, nessa pluralidade de vozes, saberes e idiomas que descrevem a região;
  • É preciso pensar em uma Literatura da Amazônia como forma de ampliar o estudo sobre as diferentes manifestações literárias que a História revela.

Na obra “Depois do fim: Ainda história de Literatura Nacional?”, Luís Bueno coloca em xeque e questiona o esgotamento do projeto nacional de historiografia literária. Para ele, o declínio do antigo modelo, que buscava uma representação ou síntese de nação, ocorreu por vivermos uma realidade em que a fragmentação, as fraturas e os conflitos identitários rasuram os discursos unificadores de nacionalidade.

Bueno defende ainda que os pesquisadores criem recortes de acordo com determinadas leituras, que dariam movimento à historiografia literária, proporcionando estudar outras literaturas. Esse estudo historiográfico literário relacional e não fechado se aproxima do método arqueológico foucaultiano que duvida de sistemas fechados. Assim, a percepção das descontinuidades como parte da história literária nos dá a possibilidade de outros olhares e de outras conexões ligadas ao universo amazônico em relação com a Literatura.

Colocar em xeque essa percepção significa abalar a estabilidade, a coerência e o que conhecemos como história literária contínua. No entanto, não se trata de abandonar todas as relações entre a Literatura da Amazônia e a Literatura brasileira. O que se abandona é uma relação de exclusividade e uma hierarquia de poder muitas vezes ocultar por trás de um discurso que se propõe exclusivamente estético no sistema literário nacional.

O questionamento à referida noção implica afastar-se da tradição enquanto um passado estático que orienta o presente. Jorge Luís Borges foi um escritor e crítico que percebeu os limites e a improdutividade dessa antiga perspectiva de tradição em Literatura. Seu projeto de revisão e releitura da tradição literária foi exposto em seu conto Pierre Menard, autor de Quixote”.

Nele, a técnica de leitura criada pela personagem quebraria com as estagnadas relações de fonte e influência, o que traz novas leituras e relações entre diversas obras de diferentes campos de conhecimento. Um exemplo disso é a sugestão de que o Quixote tenha ressonâncias de Nietzsche, o que, numa leitura diacrônica (observar as alterações sofridas por um determinado sistema linguístico em diferentes épocas), seria impossível. Em seu lugar, adota-se, portanto, uma perspectiva borgeana, percebendo-se que é no presente que o passado ou os passados são reconstruídos constantemente, fazendo surgir precursores.

Por que pensar a Literatura na Amazônia? 

Não é novo o debate sobre o regionalismo no meio literário brasileiro. A ele se ligam reflexões sobre o chamado Brasil profundo, tendo em Euclides da Cunha um de seus defensores. Introdutoriamente trazemos a intelectualidade do Pará, que buscou pensar a produção literária relacionada à região amazônica.

O texto Literatura brasileira de expressão amazônica, Literatura da Amazônia ou Literatura amazônica”, do professor José Guilherme Fernandes, que discute os pensamentos dos escritores paraenses Paulo Nunes e Edilson Pantoja, traz em si o problema que busca solucionar: a denominação a ser utilizada sobre a Literatura relacionada à Amazônia. Dois elementos importantes se destacam no artigo: o primeiro é que o reconhecimento das obras literárias passa pelo critério estético, e o outro diz respeito à espacialidade.

Segundo Fernandes, Paulo Nunes busca escapar de um critério exclusivamente geográfico para propor um viés estético, que ao mesmo tempo filie a produção amazônica a uma tradição brasileira de Literatura. Daí a denominação proposta por Nunes com Literatura brasileira de expressão amazônica. Esta solução encontrada pelo autor lembra a denominação Literaturas africanas de expressão portuguesa, utilizada para designar as literaturas de diferentes países africanos que têm em comum a lusofonia. 

Se no caso das literaturas africanas de expressão portuguesa o efeito é aproximar por meio da língua diferentes países africanos, no caso amazônico o efeito parece sugerir que a Amazônia seria uma região geocultural do Brasil. O problema é que o aspecto geocultural amazônico em relação às fronteiras brasileiras tem conformações complexas, com destaque para questões de fronteira em diferentes momentos da história recente do país.

A sugestão de que a Amazônia é uma região do Brasil está na origem daquele olhar que percebe a Literatura feita na Amazônia brasileira como regionalista. Mas dois problemas se apresentam para esse enquadramento. O primeiro é que o território amazônico como tema geocultural de obras artísticas transcende o próprio limite da Amazônia no que diz respeito a autores. O problema referido se liga à questão apresentada no recorte feito por Fernandes, e que traz dificuldades para a proposição de Nunes: trata-se do fato de haver um autor de língua portuguesa não-brasileiro que escreveu sobre a Amazônia, Ferreira de Castro, autor português da célebre obra A selva”, de 1930. 

Na perspectiva do aspecto geocultural, o questionamento de Fernandes abre uma direção que pode ser um pouco mais esgarçada, pois A selva não é a única obra ligada à Amazônia escrita por um autor de fora das nações em que o bioma se insere. Esta questão se liga ao problema da Amazônia ser transnacional. Assim, há autores de diferentes nacionalidades que escreveram sobre o tema amazônico, como os de língua espanhola. Pode-se citar o peruano Vargas Llosa e o chileno Luís Sepúlveda, falecido em 2020.

Aldrin Moura de Figueiredo lembra que essas fronteiras que amarram um centro da Literatura brasileira aos chamados Brasis profundos, fora desse centro, vêm sendo questionadas, percebidas nessa regionalização do cânone nacional sobre o qual se instituiu o sistema literário implicações geográficas de poder. Ou seja, a Região Sudeste parece centralizar e muitas vezes dirigir e ordenar o cânone nacional, tendo relações de poder não confessadas, como escreve Roberto Reis.

A Amazônia representa um problema não apenas para o sistema da Literatura brasileira. Ela se insere em diferentes sistemas literários nacionais, mas também os transcende, extrapolando os próprios sistemas literários dos seus países, a exemplo dos citados autores português e chileno, que, em termos de não serem amazônidas, foram precedidos pelo escritor francês Julio Verne, autor de A jangada”, de 1881, em que é descrita uma viagem de 800 léguas no rio Amazonas sobre uma espécie de fazenda flutuante de Iquitos, na Amazônia peruana, até Belém, no Brasil. 

Apesar de haver uma Amazônia francófona, representada pela Guiana, o que chama a atenção sobre a criação de Verne é o fato de ele, diferentemente de Ferreira de Castro, nunca ter vindo ao bioma. Tal problema foi suprido pela leitura que o autor fez de diferentes viajantes de diversas nacionalidades europeias que estiveram na Amazônia, com destaque para os naturalistas.

A abordagem da Amazônia pela geografia nos dá uma perspectiva geocultural sobre os territórios amazônicos e está ligada aos discursos sobre o bioma criados ao longo de mais de cinco séculos. Se por um lado os processos identificatórios entre as comunidades amazônicas podem borrar as fronteiras nacionais, por outro, as representações sobre essa macrorregião extrapolam os limites dos países que a integram.

José Guilherme Fernandes lembra que:

“A questão da autoria pouco importa em face do modo como a narrativa é construída, isto é, pouco importa a certidão de nascimento do autor porque sua ascendência, seu lugar de enunciação, se objetiva no modo de sua narração, de construir sua relação entre o local e o universal, de montar cenários e paisagens na narrativa.”

Essa declaração serve para superar uma dificuldade em situar autores como sendo de expressão amazônica, pois se o termo “expressão” diz respeito aos aspectos geoculturais presentes nas obras literárias, há autores que não têm a totalidade de suas obras orientada para a Amazônia, a exemplo do próprio Ferreira de Castro – em língua portuguesa – e Luis Sepúlveda – em língua espanhola.

Ao justificar na adoção da expressão Literatura da Amazônia o uso da preposição em lugar do adjetivo “amazônica” como forma de escapar a possíveis essencialismos, o articulista mostra que a Amazônia aparece como “origem e causa”, ou seja, se parte do imaginário e da vivência como matéria para um processo criativo que busca chegar a uma fatura estética. Nesse sentido, a adoção por parte de Fernandes do conceito de identificação, em lugar de identidade é bastante produtivo, pois escapa à estabilidade de resultados estáticos e essencialismos que negam a própria dinâmica da cultura, dando conta assim dos complexos processos culturais na Amazônia.

Os atravessamentos literários envolvendo a Amazônia

O espaço amazônico é um gigantesco bioma transnacional, que abrange Brasil, Guiana, Guiana   francesa, Suriname, Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela. Apesar de a Amazônia muitas vezes se tratar de um ambiente comum, existem nela povos com diferentes costumes e línguas. Por isso, seria preciso se falar de Amazônias.

Esses imaginários e os processos histórico-sociais que criaram as representações amazônicas também se apresentam em outras línguas, como o primeiro relato sobre as mulheres guerreiras: as crônicas do frei espanhol Gaspar de Carvajal, Descubrimiento del Río de las Amazonas” (1541-1542).

Se o primeiro texto escrito que daria informações sobre o contato dos portugueses com as terras mais tarde chamadas de Brasil seria a Carta do achamento”, de Caminha, documento português incorporado à narrativa de invenção da Literatura brasileira; para uma aproximação com as primeiras formações discursivas sobre a Amazônia, é necessário pesquisar documentos em espanhol, como Carvajal, em 1542, e os de Alonso de Rojas, do ano de 1639, e Christóbal de Acuña, datado de 1641, que acompanharam Pedro Teixeira, o primeiro na ida de Belém a Iquitos, e o segundo, no retorno da cidade peruana a Belém.

Portanto, se um primeiro recorte consistiria em basear a reflexão sobre uma Literatura da Amazônia, como propõe Fernandes, para além do Brasil, um segundo poderia consistir no gesto de se transcender a língua portuguesa, pois se as línguas se relacionam a diferenças culturais, o universo amazônico também se encarregou de contrabalançar essas diferenças nacionais modernas, a partir de elementos identificadores comuns.

José Guilherme Fernandes mostra que, naquilo por ele denominado de Literatura da Amazônia, figura no texto português A selva, de Ferreira de Castro. O exemplo mostra a inviabilidade do enquadramento da Literatura da Amazônia na literatura brasileira, mas a essa questão da nacionalidade junta-se outra, que é um universo geocultural extremamente diverso e de caráter multilinguístico e multinacional.

Um exemplo disso está nas obras dos dois autores já referidos, e que se passam no bioma amazônico, mas não em língua portuguesa. Pantaleón y las visitadoras”, de 1973, se passa na Amazônia peruana, escrita pelo ganhador do Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa. Já a obra de 1989, Un viejo que leía novelas de amor”, do chileno Luís Sepúlveda, dedicada ao seringueiro e ambientalista brasileiro Chico Mendes, assassinado um ano antes, laureada com o prêmio espanhol Tigre Juan, se passa na Amazônia equatoriana.

Os inúmeros exemplos de outras nacionalidades nos permite pensar na existência de uma Literatura transnacional amazônica de expressão espanhola. Se deslocarmos a questão geocultural da Literatura escrita para a Literatura oral, a questão também se torna complexa, pois existem povos com tradições orais seculares, e que ocupam espaços de fronteiras nacionais, como a civilização Wajãpi, instalada há mais de dois séculos em uma grande área localizada entre o Brasil e a Guiana Francesa, dialogando com português e francês, mas mantendo a própria língua de origem.

Ainda no campo do universo indígena, com os movimentos sociais e institucionais de afirmação identitária, surge o fenômeno de autores bilíngues, que estão publicando obras literárias na língua de sua civilização e em português, sendo este, portanto, não o idioma original da obra, mas uma tradução, como é o caso da obra “Pyt mẽ Kaxêre: criação, história e resistência Kỳikatêjê”, de Ropre Kwyktykre Kwykti Homprynti, que narra mitos da civilização Kỳikatêjê, no sudeste do Pará.

Há também ciclos econômicos comuns que aproximam realidades transnacionais na Amazônia, como o ciclo gomífero, que gerou o que ficou conhecido como belle époque amazônica, aproximando cidades como Iquitos e Manaus, principalmente após a abertura da bacia do Amazonas à navegação internacional a partir de 1867. No livro de contos de Milton Hatoum, A cidade Ilhada” (2009), percebe-se essa ligação da cidade de Manaus não apenas com a do Peru, mas com as da Colômbia, Guianas e Caribe, como no conto Dançarinos na última noite”.

Também são exemplos Paraíso Perdido” (2009), de Euclides da Cunha, que mostra a questão do nacional enquanto uma fragilidade na Amazônia em relação ao Brasil. O autor de Os sertões se ofereceu ao Barão do Rio Branco justamente para ir ao Alto Purus resolver problemas de fronteira com o Peru.

Os mesmos naturalistas europeus que influenciaram a escrita de Julio Verne influenciaram o gesto de Cunha. Na obra póstuma euclidiana, o escritor mostrou que o rio que corta o bioma está para além da nacionalidade: “o rio que sobre todos desafia o nosso lirismo patriótico, é o menos brasileiro dos rios. É um estranho adversário, entregue dia e noite à faina de solapar a sua própria terra”. 

“Sem este objetivo firme e permanente, aquela Amazônia onde se opera agora uma seleção natural de energias e diante da qual o espírito de Humboldt foi empolgado pela visão de um deslumbrante palco, onde mais cedo ou mais tarde há de se concentrar a civilização do globo, a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, se destacará do Brasil, naturalmente e irresistivelmente, como se despega um mundo de uma nebulosa — pela expansão centrífuga do seu próprio movimento.”

Também são exemplos o romance Galvez, imperador do Acre”, de 1977, do autor Márcio Souza; e a crônica Ginastas da valentia”, de De Campos Ribeiro, cronista e poeta paraense. Ambas as produções mostram que o cálculo de língua, nacionalidade e literatura, na Amazônia não é uma operação tão simples.

As tensões entre o transnacional e o nacional

Na Literatura contemporânea produzida sobre a Amazônia, o seu caráter transnacional também é perceptível. É possível tomar como exemplo os problemas amazônicos comuns a diferentes países, como o desmatamento para o avanço do agronegócio, o garimpo e a mineração, e a rota amazônica do tráfico de mulheres.

Ao se perceber a identificação como um processo sempre em andamento e transformação, é preciso atentar, como alerta Stuart Hall, para a incompletude e as contradições dos processos identificatórios. Isto é, embora a Amazônia seja transnacional, isso não impede de haver conflitos de nacionalidades e de imagens que surgem a partir de representações que de alguma maneira se ligam às construções representacionais sobre estereótipos vinculados a cada nação. 

Um exemplo disso está na personagem Irmão Francisco, do romance Pantaleón y las visitadoras, de Vargas Llosa, que faz sua pregação na Amazônia peruana e na de outros países, em diferentes línguas, sendo, portanto, um personagem transnacional, mas que, apesar disso, é visto como estrangeiro no Peru:

“Es así que se habían posesionado de él unos seguidores del Hermano Francisco, sujeto de origen extranjero, fundador de una nueva religión y presunto hacedor de milagros, que recorre a pie y en balsa la Amazonía brasileña, colombiana, ecuatoriana y peruana, alzando cruces en las localidades por donde pasa, y haciéndose crucificar él mismo, para predicar en esta extravagante postura, sea en portugués, español o lenguas de chunchos.”

Na mesma obra, outro exemplo da complexidade dos processos identificatórios que envolvem o tensionamento entre a transnacionalidade amazônica e as nacionalidades, em se tratando de representação literária, pode ser percebido no que diz respeito à sexualidade. Na obra de Llosa tem-se inicialmente a reprodução de mitos discursivos no que diz respeito à suposta influência da selva na sexualidade das pessoas, como se a floresta influenciasse na libido e nos corpos dos sujeitos.

O segundo exemplo diz respeito aos homens, o que seria um dos motivos para a criação do serviço de visitadoras por parte do exército peruano: “la selva vuelve a los hombres unos fosforitos”. Neste sentido, o romance apresenta para, ao final da narrativa, desconstruir o velho mito de que a floresta devolveria ao ser humano um desejo sexual supostamente animalesco.

Desta forma, se por um lado é possível perceber os processos identificatórios comuns aos amazônidas, por outro, os imaginários construídos historicamente sobre nações trazem diferenças que interferem na relação entre os amazônidas. Criam-se, assim, em alguns momentos, tensionamentos. No conto Uma estrangeira da nossa rua”, de Milton Hatoum, também estão presentes essas aproximações e distanciamentos identificatórios: “Eu pensava que Alba, a mãe, fosse amazonense, pois suas feições indígenas eram familiares; mas a manicure de tia Mira contou que Alba era peruana, e só depois entendi que a língua, e não a nacionalidade nos define”.

Dessa forma, é possível perceber que o projeto de uma Literatura brasileira de expressão amazônica, embora sendo uma boa saída estética, tem como obstáculo o fato de as vozes que construíram a Amazônia discursivamente, inclusive no campo literário, extrapolarem o recorte nacional do Brasil. 

A Literatura da Amazônia tem como motivo uma região, mas não é nacional, e sim planetária, com produções de diferentes criadores de diversos lugares, com diferentes discursos, por meio de um infinito diálogo de vozes de diferentes línguas e nacionalidades.

Josiclei de Souza Santos é professor pesquisador e extensionista, doutor em Literatura, poeta com três livros lançados, contista com um livro lançado, crítico literário, artista visual, produtor e letrista. Possui graduação, mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente é professor adjunto da UFPA, tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente na Amazônia, cultura, erotismo, processos identificatórios e interartes.

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