Produzindo Ciência no ‘Arco da Exclusão’ Amazônico

Silvia Almeida de Lima - Rondônia
Ilustração: Silvia Almeida de Lima
Silvia Almeida de Lima - Rondônia

Ilustração: Silvia Almeida de Lima

Hoje organizei rapidamente meus dados e de meus orientandos. São quatro bolsistas, um voluntário e soma-se ao esforço dos mesmos o meu próprio que, mesmo trabalhando muitas horas de ensino e extensão, estou realizando um estágio de pós-doutoramento. Assim, nós seis e mais duas colegas professoras de outras áreas que contribuem conosco, quando há diálogo entre objetos/metodologias, tentamos desenvolver pesquisas voltadas para as políticas públicas e a população indígenas de Rondônia, da Amazônia e do Brasil. Tirando a última parte, em nada isso se difere dos grupos de estudo que se encontram pelo mundo afora. Aqui também já tivemos discentes que se formaram, que foram para outras linhas ou áreas de atuação ou simplesmente pensaram que ciência não é o caminho. Há também discentes que estão chegando, pedindo orientações, interessados, tudo normal.

Mas o que há de anormal e até incômodo? O que produzimos de ciência está sendo feito na periferia da periferia. Este texto por pouco não pode receber a classificação de ensaio (e nas palavras anteriores é meu “eu cientista” gritando para “deixar isso bem claro”)… É um desabafo. O que é a periferia da periferia e seu arco da exclusão? O que é o Sísifo beradêro? Vamos aos pontos desse debate.

Sísifo foi condenado a subir uma pedra morro acima. Ao passo que ela rola para baixo, ele precisa subir novamente. Não me interessa contar a história inteira. O que entendo é que fazer ciência em Rondônia, e em certos espaços amazônicos, é como um trabalho de Sísifo. Você precisa carregar na força de sua energia vital o tema de sua pesquisa (que é político, filosófico e contribui para você ser docente, pesquisador e ser humano). E tem a impressão que se você o abandonar, correrá como uma pedra ladeira abaixo.

Eu já vi essas situações diversas vezes. A doutora que adoeceu defendendo a pesquisa em educação e quando se aposentou, foi como se não tivesse nada sido feito. O antropólogo que lutou por um povo indígena e quando foi necessário mudar de tema, até a luta do povo arrefeceu. A professora que não para um minuto de produzir em prol da defesa de um espaço democrático na pesquisa. O gestor que após mais de uma década de trabalho sai insatisfeito da instituição, pois sabe que a maioria dos avanços que conseguiu serão destruídos pelo afã político.

Fazer ciência em Rondônia, com raras exceções, é ser um Sísifo bebendo água do rio Madeira e rezando para não morrer, devido ao mercúrio e aos agrotóxicos da água, que mais de um século de exploração ilegal de ouro e da expansão do agronegócio nos deixaram como heranças.

Olho para os lados e vejo que estou rodeado de grandes hercúleos pesquisadoras(es) que são de várias formas massacrados e, muitas vezes, originam o massacre. Somos massacrados quando somos vistos pelos de fora como uma colônia intelectual, onde dados são retirados e analisados na metrópole. E isso vale para todas as áreas, mas nas áreas que estudo — povos indígenas e desenvolvimento regional — é ainda mais forte. Não raramente alguma instituição do Sudeste/Sul ou de outro país se propõe, de forma inovadora, a definir soluções para o desenvolvimento regional e seus problemas.

Reforçamos, com essa distribuição de poder, uma colonialidade acadêmica norte-sul/sudeste dentro do Brasil no que tange à produção científica e, por consequência, à distribuição de bolsas, recursos e autorização de programas de pós-graduação. Temos ainda autores estrangeiros que nos veem desta forma. Incontáveis são as histórias de etnógrafos que coletam narrativas com a ajuda de pesquisadores locais que sequer recebem as devidas referências ou convites para produzir coletivamente. É como se Rondônia fosse um espaço vazio de ciência e saber. Tais intelectuais, marxistas e decoloniais quase sempre reproduzem a lógica do capital e da colonialidade em suas práticas. É preciso que Rondônia passe a dialogar queixo a queixo com os de fora.

Isso faz ainda mais sentido porque estamos no que o Prof. Dr. Andreimar Martins Soares discursou no Simpósio de Pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa de Rondônia (Fapero). Rondônia, Acre, Amapá e Roraima estão no “arco da exclusão” dentro da periferia. São os estados no Brasil e na região Norte que menos recebem recursos federais, possuem o menor número de doutores, programas de pós-graduação, bolsas federais e que existem menos recursos para a ciência disponibilizado pelos seus governos estaduais e municipais, segundo dados do Geocapes.

Nós mesmos nos massacramos quando nos recusamos a fazer redes fortes entre nós, antes de fazer redes mundo afora. E mais, quando reforçamos os muros de nossas instituições e fechamos portas para quem não consideramos dignos de ser parte do rito. A ciência precisa aprender que, para se comunicar com as pessoas e ganhar força enquanto discurso, é preciso se desprender de vez em quando de seus ritos e suas exigências.

Mas veja bem a problemática de estarmos escrevendo sobre isso em Rondônia, estado amazônico. Para tentar competir, precisamos cada vez mais nos prender ao rito, aos números, aos títulos, e isso nos afasta ainda mais da tal socialização e democratização da ciência. Vou dar um exemplo para desenhar esse cenário. Como somos um campo excluído das redes de produção e recursos, precisamos de doutores com muita produção acadêmica para poder concorrer em editais, fazendo com o que o “publique ou morra” seja muito mais forte nestes campos periféricos do que nos mais centrais.

Em Rondônia, lutamos para ter o mínimo que a Capes exige e ainda lutamos para ter o mínimo de pessoas para concorrer a um edital. Como ser democrático ou mais aberto se estamos correndo para ter minimamente um laboratório funcional ou recurso para fazer um campo ou ação de intervenção? Mais uns quilos adicionados à pedra que os Sísifos beradêros devem empurrar.

Entendo, enquanto sociólogo, que quando existem poucos recursos, os seres humanos tendem a entrar em conflito. Há poucos recursos para ciência em Rondônia. Mas entendo também que a auto-organização humana é uma força intelectual materializada que pode levar ao aumento dos recursos. Em outras palavras, deveríamos nos unir em invés de competir. Reproduzimos em nós a lógica do hiperindividualismo hedonista do capitalismo mais predatório. Não se unam, se matem pelos poucos recursos e o melhor de vocês viverá (de forma precária) à custa da morte de muitos. Mesmo entre cientistas mais entendidos dessa lógica que eu, tal questão se reproduz.

Subimos muros enquanto gritamos que vamos rompê-los. Daí vem o sofrimento do pesquisador Sísifo rondoniense. Jogado às margens do capital e no arco da exclusão, sem recursos, sem aliados, sem herança cultural, sem capital simbólico, cabe aos poucos que ainda lutam empurrar pedras morro acima. De um lado, tal pedra foi ali colocada por uma estrutura viciosa… Mas até que ponto nós temos culpa de seu eterno rolar?

O presente ensaio é um convite para a reflexão de toda comunidade acadêmica nortista ou de outros grupos e instituições que desejam se relacionar diretamente com nossa comunidade de forma equitativa. A Amazônia é um complexo cuja complexidade vai além de seus biomas, culturas, economias e outras questões. Sua complexidade passa pelas pessoas que estão tentando compreendê-la. Este texto é um convite e uma reflexão, quase chorosa, mas provida do mesmo espírito de muitos que aqui na Amazônia estão lutando, vivendo, amando, pesquisando e resistindo.

Rafael Ademir Oliveira de Andrade é bisneto de migrantes nordestinos que migraram para Rondônia. Sociólogo e doutor em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente é o primeiro de sua família a alcançar tal titulação, após uma sequência de pequenos proprietários de terra. Estuda Políticas Públicas para Povos Indígenas e atua como líder do Laboratório de Pesquisa em Populações Negligenciadas da Amazônia (Lepona). É orientador na Liga Acadêmica de Saúde Indígena de Rondônia (Lasinro) e Coordenador Científico do GT Educação do Campo, Indígena e Quilombola do Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação de Rondônia (Gaepe-RO).

 

Colunistas têm liberdade para expressar opiniões pessoais. Este texto não reflete, necessariamente, o posicionamento da Amazônia Latitude.

 

Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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