Olho d’Água: A infância do Marajó na mira da polarização

Ilha do Marajó
Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
Ilha do Marajó

Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude

As crianças do arquipélago do Marajó estão, mais uma vez, no meio de uma disputa política. O pano de fundo desse embate tem denúncias de exploração sexual infantil. A discussão ganhou proporções midiáticas nos noticiários e nas redes sociais, não necessariamente pela gravidade das acusações, mas pela polarização do debate. Como quase tudo que acontece no Brasil nos últimos anos, houve uma divisão entre a direita e a esquerda.

O assunto voltou com força no final de fevereiro por causa de uma canção, seguida de uma entrevista que viralizou na internet.

Esse episódio reforçou uma acusação recorrente de que a exploração sexual infantil no Marajó seria escancarada. Depois disso, políticos e influencers se posicionaram e trocaram farpas, ONGs e associações se manifestaram e até o governo federal se mexeu para anunciar novas ações específicas para a região.

E no meio disso tudo, como é que ficam as crianças do Marajó? Será que a discussão ainda é sobre o bem-estar delas, ou o foco se perdeu?

Para entender como chegamos nesse ponto de disputa de narrativas e de competição por engajamento em torno de um tema tão delicado, precisamos recuperar a cronologia dessa história ao longo dos últimos anos.

E para ajudar a esclarecer o que realmente acontece com as crianças no arquipélago do Marajó, conversamos com Jacqueline da Silva Guimarães. Ela é assistente social, doutora em educação e desde 2016, é professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), no campus de Breves, que fica no Marajó.

A infância marajoara tem uma particularidade. Quando a gente vai pensar essa questão de violação de direitos, não vai encontrar outra infância com essa mesma chamada, mesma narrativa. A gente sabe, por exemplo, no Rio de Janeiro, que crianças estavam dentro de casa pegando Covid, morrendo dentro de casa com bala perdida, mas ninguém fala: “Crianças cariocas… acontece isso…”; “crianças baianas… acontece isso…”, “crianças cearenses… acontece isso…”. Não, a gente não vai perceber isso dentro dessa narrativa construída na mídia.

Este é o Olho d’Água, podcast produzido pela Amazônia Latitude e que propõe um mergulho nos assuntos profundos da maior floresta do mundo.

Ouça abaixo o segundo episódio completo:

O arquipélago do Marajó, no norte do Pará, é formado por cerca de 2.500 ilhas no delta do Rio Amazonas, entre Belém e Macapá. É uma região com bastante floresta preservada, baixa densidade demográfica e péssimos índices de desenvolvimento humano.

O novo estopim da discussão sobre abuso sexual infantil no Marajó foi a apresentação da cantora Aymeê Rocha no programa “Dom Reality”, uma competição de talentos da música gospel transmitida pelo YouTube.

Na semifinal do programa, Aymeê apresentou a canção autoral “Evangelho de Fariseus”, que faz críticas à hipocrisias dentro de igrejas evangélicas. A letra destaca como alguns pastores estão mais preocupados com o dízimo, enquanto “a Amazônia queima, uma criança morre e os animais se vão”.

Após a apresentação, Aymeê deu uma entrevista e descreveu supostas cenas de abuso infantil no Marajó.

Marajó é uma ilha a alguns minutos de Belém, na minha terra. Lá tem muito tráfico de órgãos, é normal. Lá tem pedofilia em ‘nível hard’. As crianças com cinco anos, quando veem um barco vindo de fora com turistas… O Marajó é muito turístico, e as famílias são muito carentes. As criancinhas saem numa canoa… Seis, sete anos… E elas se prostituem no barco por R$5.

Nos dias seguintes, esse trecho da entrevista foi reproduzido milhões de vezes. Marajó entrou nos assuntos mais comentados no TikTok e no X (o antigo Twitter).

Essa onda viral na internet pegou de surpresa a doutora Jacqueline Guimarães que, por coincidência, estava naquele momento fazendo uma pesquisa sobre como o Marajó era retratado no noticiário.

Quando surgiu essa situação, no dia 16 de fevereiro, eu fiquei surpresa pela coincidência. Porque estava finalizando a revisão de um artigo em que fazia justamente uma análise a partir da perspectiva da análise do discurso de [Mikhail] Bakhtin, pensado sobre a produção dos discursos sobre Marajó e crianças marajoaras, dentro de uma perspectiva ideológica. E confesso que foi um processo muito estressante para mim, porque tudo aquilo que estava expondo no próprio artigo foi o que aconteceu. […] No período de 21 anos, é possível traçar uma linha histórica de representações da infância marajoara. […] E de 2012 a 2018, a gente vai perceber o quê? É só matérias, publicações do Ministério Público, da Defensoria Pública, dizendo que eles estão realizando o combate ao abuso e exploração sexual. E aí, de 2019 a 2022, surge não somente a infância marajoara. Na verdade, a infância marajoara aparece como um pano de fundo para o que está acontecendo. Surge uma outra pessoa, uma figura política, que chamei desta maneira: ‘Da fábrica de calcinha ao arrancar dos dentes’.

A figura política a quem a doutora Jacqueline Guimarães se refere é Damares Alves, senadora do Republicanos pelo Distrito Federal e ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, do governo de Jair Bolsonaro. Damares é uma figura central nessa disputa.

Peço desculpas pelas descrições pesadas que vou fazer em seguida, mas elas são necessárias para que a gente entenda a situação.

Em 2019, a então ministra Damares Alves estava engajada no lançamento do programa “Abrace o Marajó”, uma das marcas de sua gestão à frente da pasta. Naquela ocasião, ela disse que as meninas marajoaras eram estupradas porque não tinham nem dinheiro para comprar calcinhas, e sugeriu montar uma fábrica de roupas íntimas na região. A fala repercutiu bem mal.

Depois, em 2022, num culto evangélico, Damares afirmou que recém-nascidos eram estuprados no Marajó, e crianças tinham os dentes arrancados para facilitar o sexo oral e eram alimentadas só com papinha para que fossem submetidas a sexo anal.

O problema é que Damares nunca apresentou provas de que esses relatos monstruosos tinham qualquer fundamento. Afinal, como ministra, ela poderia ter acesso a relatórios e investigações sobre abuso infantil na região. Mas quando foi questionada, disse apenas que ouviu falar sobre casos assim.

Entretanto, houve uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou mais de 100 mil casos de crimes sexuais contra crianças no Pará e que não reportou nenhum relato semelhante.

Por causa daquelas falas, o Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública contra Damares e a União, pedindo indenização de R$5 milhões por danos morais à população do Marajó.

Com Damares eleita senadora, políticos e artistas pediram a cassação de seu mandato no início de 2023.

Também em 2023, o governo Lula revogou o “Abrace o Marajó”, programa símbolo de Damares Alves, mas implementou no lugar o “Cidadania Marajó”.

O assunto ficou meio esquecido por algum tempo, até que a apresentação da cantora Aymeê Rocha colocou lenha na fogueira da polarização. Resumindo de forma bem simplista, ficou mais ou menos assim: do lado direito, pessoas dizendo que Damares sempre teve razão ao denunciar o abuso infantil no Marajó e cobrando as pessoas que criticaram os discursos dela. Do lado esquerdo, gente dizendo que Damares, evangélicos e bolsonaristas criam relatos sensacionalistas e irresponsáveis sobre o Marajó para atrair engajamento e vender a imagem de defensores da família e da infância.

E no meio desse fogo cruzado, ficaram as crianças.

A gente percebe que há uma notoriedade dada especificamente a essas infâncias. Mas quem é que acaba ganhando notoriedade com esse discurso? É quem está sendo falado ou quem fala? De que forma isso está sendo utilizado? E de que forma a gestão, o Estado brasileiro está se utilizando dessas informações sobre esse desafio da proteção da infância? […] Isso não é positivo para essas infâncias, porque acabam se tornando estigmatizadas demais. Aí recebi o relato também de pessoas que estão morando no sul do país que… ‘Professora, eles ficaram sabendo que eu sou do Marajó, parece que estavam me olhando com cara de pena’. Eu fiquei muito ofendida com tudo isso. Quando a gente fala que um lugar é horrível para a infância, as pessoas não conhecem a infância marajoara. A criança marajoara resiste, circula pelos diferentes espaços, brinca, é feliz, toma um açaí… São crianças inteligentes, cheias de potencialidade. Aí a gente atrelar essas crianças sempre a essas situações é perdurar o estereótipo, é apagar a história dessas crianças. […] E parece que essa situação da utilização da palavra ‘crianças’ e ‘Marajó’ chegou a um outro patamar. Agora, são influencers que estão se utilizando disso, pessoas ganhando seguidores com isso.

Depois que gravei essa entrevista com a doutora Jacqueline Guimarães, aconteceu algo que ilustra sua indignação com os influencers que buscam engajamento no Marajó: o YouTuber liberal Arthur do Val, também conhecido como “Mamãe Falei”, foi até o Marajó e gravou um vídeo de uma suposta investigação particular dele sobre as acusações de abuso sexual infantil.

Vale lembrar que Arthur do Val é membro do MBL (Movimento Brasil Livre) e ex-deputado estadual de São Paulo. Ele pretendia concorrer à prefeitura este ano, mas se tornou inelegível. A Assembleia Legislativa de São Paulo cassou o mandato por causa de áudios sexistas contra refugiadas ucranianas.

Nesse vídeo publicado em 8 de março, “Mamãe Falei” visita cidades no Marajó como Melgaço e Breves. Segundo a narrativa do vídeo, Arthur entrou em acordo com autoridades locais e partiu em busca de flagrantes de exploração sexual infantil. Como não encontrou um caso explícito, ele armou um flagrante: pediu que um homem levasse duas menores até o hotel em que estava hospedado. Quando as menores chegam, a polícia prende um suspeito e elas vão embora.

Não vou nem entrar em questões jurídicas envolvendo o flagrante preparado ou a validade dessa suposta prisão. O que importa é que a dita “investigação” de “Mamãe Falei” não revela nada sobre o Marajó. O YouTuber partiu numa busca ativa por prostituição de menores e diz ter encontrado — algo que, infelizmente, é uma realidade em qualquer região do Brasil. Se você procurar prostituição infantil na sua cidade, provavelmente vai achar.

Aliás, essa é a conclusão do próprio Arthur do Val, como mostra o trecho a seguir, retirado do vídeo:

Vou te falar minha impressão. Não é como falaram, que você vai chegar aqui, vai ter um monte de criança sem dente, que nem a Damares falou… Não é desse jeito. Porém, se você souber procurar, acha.

A sanha por engajamento chegou a níveis ainda mais absurdos, por meio de desinformação. Teve um vídeo bastante compartilhado, com uma mulher transportando dezenas de crianças, como se fosse uma cena de tráfico de menores no Marajó. Contudo, essas imagens foram gravadas no Uzbequistão, como mostrou uma checagem d’O Globo.

Nessas horas, a gente fica imaginando: quem pode ser tão perverso a ponto de gastar tempo e recursos para editar um vídeo assim, mentiroso, sobre um assunto tão delicado? Quem está por trás de uma campanha dessas?

[Eles] se aproveitam de uma situação para criar narrativas ainda piores. Narrativas que acabam até mesmo colocando essas crianças ainda mais em situação de risco. Imagine, uma rede de pedofilia escutando uma coisa dessas. Aquela região tem isso. Acaba tornando o local ainda mais desprotegido, diante de uma conjuntura da rede de informação. A gente precisa tomar cuidado com o que diz, com as afirmações que faz.

É importante a gente deixar claro que ninguém está negando que exista abuso de menores no Marajó, ou relativizando a seriedade de um crime. Mas será que a situação é especialmente grave em relação a outras regiões da Amazônia ou do Brasil, a ponto de virar um estigma?

Aqui, mais uma vez, a doutora Jacqueline Guimarães:

Já fiz um levantamento. A gente vai perceber que esses dados de gravidade quanto à questão de abuso sexual dizem respeito ao estado do Pará. Baixei até mesmo o relatório da comitiva que substituiu o projeto anterior, e a nota do Ministério Público. A primeira coisa que eles vão indicar é que não pode negar a subnotificação desses casos. E acaba impedindo determinadas afirmações quanto a essas situações. Então não tem como, se a gente for comparar, por exemplo, com dados nacionais, em certa medida, não são tão altos assim. Mas a gente tem que entender também que existem vários fatores da não denúncia. O medo, o constrangimento, a falta de profissionais equipados para poder trabalhar com isso… E estou falando da realidade de 17 municípios.

Além disso, não podemos discutir exploração sexual infantil no Marajó sem falar de todo o contexto socioeconômico da região. Municípios como Melgaço e Bagre estavam entre os dez piores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil, segundo dados da ONU de 2013.

O Marajó também foi destaque nas últimas semanas pelos péssimos índices de saneamento básico revelados pelo IBGE. Melgaço e Bagre, mais uma vez, aparecem como os piores municípios do Brasil num dos quesitos: apenas 36% dos domicílios têm banheiro de uso exclusivo.

Naquela região do Marajó ocidental, as pessoas tendo acesso à água que tem cheiro, sabor e cor. Água barrenta. São crianças que adoecem com coceira de pele. Então focar especificamente no caso de abuso e exploração sexual acaba apagando que a principal violação dessas crianças é a pobreza. É o modo como são construídas essas políticas que acabam não agregando realmente a essas infâncias. Aí as pessoas constroem uma mobilização toda. ‘Encaminha um pix’. ‘Bora mandar uma cesta básica’. Mas o que o Marajó precisa mesmo é de políticas públicas mais fortalecidas, e que eles possam realmente participar enquanto sujeitos políticos ativos da construção de suas políticas e dizer o que querem. É um ponto que a gente precisa rebater demais, porque uma prática ‘bora entregar uma cesta básica’ coloca essas pessoas numa situação de pendura total. Uma hora a cesta básica acaba. Uma hora vai acabar todo esse ‘bafafá’ sobre o Marajó.

Na segunda-feira seguinte à gravação desta entrevista, dia 11 de março, o governo federal marcou presença em Curralinho, no Marajó, para anunciar o programa “Sanear Amazônia”. A promessa é implementar tecnologias de acesso à água e promover a inclusão produtiva para famílias rurais de baixa renda e comunidades tradicionais.

No mesmo evento, os ministros Silvio Almeida e Marina Silva lançaram um edital para projetos de diagnóstico de políticas de estruturação produtiva e recuperação ambiental. Segundo o governo, cerca de 6 mil famílias devem ser atendidas na região do Marajó.

Os ministros ainda afirmaram que o governo vai estabelecer a Escola dos Conselhos Tutelares do Marajó, para combater violações de direitos humanos de crianças e adolescentes da região.

Esperamos que essas ações sejam eficientes e atendam, de fato, a população marajoara — não apenas o tribunal da internet ou a guerra de narrativas.

Enquanto a gente tiver um desconhecimento da rede de proteção, enquanto tiver uma ausência de investimento em políticas públicas e pesquisas para o Marajó, essa situação de violação vai perdurar, e pessoas falando o que bem entendem vão estar ganhando com isso. Porque, a partir do momento que a gente não se conhece enquanto região, vai sempre surgir essas ideias em torno do Marajó.

Produção e edição do podcast: Filipe Andretta
Edição de texto: Isabella Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón

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