A floresta fenomenológica de Thiago Roney

Livro de Thiago Roney
Foto: Mo Eid/pexels

“O drone de Yebá Buró – um poema cosmopolítico” é medicina espiritual originária que nasce da consciência da desintegração

Um poema épico que inventa uma cosmogonia, cria mitos fundadores e se embrenha em uma floresta fenomenológica. Um poema que nomina o big bang do que tinha se estabelecido antes de si: o lance de dados que jamais abolirá o acaso de Stéphane Mallarmé, o “eu é um outro” de Arthur Rimbaud, a conjectura existencial de Paul Celan, a Tropicália que organizava o movimento (“sobre a cabeça, aviões não tripulados/sob meus pés, pelotões robotizados”).

O drone de Yebá Buró – um poema cosmopolítico”, de Thiago Roney (Editora Valer, 2022), ergue-se sobre fundações da poesia e da filosofia históricas para alcançar, em seus 14 Cantos, um tipo de medicina espiritual originária que nasce da consciência da desintegração.

O poeta do Amazonas quer esboçar sua própria e inalienável tese de como se processa a fundação do mundo pela via das palavras e das iluminações, quando o “eu das coisas não existia”. 

Os poemas iniciais do livro de Roney parecem, por causa disso, evocar um ruído primevo como o ritmo da poesia de Walt Whitman e Bashô chegando ao mundo. Mas ambos não representaram o “pecado original” já havia algo antes deles, e  o poema se dedica a essa busca, a identificar as simultaneidades, as conclusões comuns às diversas culturas e os múltiplos caminhos de elevação. 

A bordo de Yebá Buró, a avó do mundo, entidade que absorveu não apenas visões e mitos dos Apurinã, Baré, Mura, Kokama, Karapano, Tikuna, Miranha, Wanano, Sateré-Mawé, Tukano, mas também do zazen, do kenshô, do satori da poesia milenar japonesa ou da filosofia indiana, o leitor vai singrar o rio da deslembrança. 

Acessar Alaya Vijnana e deter o voo

do coração anti-coração

o zazen, o kenshō e o satori.

Foto do escritor Thiago Roney

Thiago Roney, autor de “O drone de Yebá Buró – um poema cosmopolítico”

Além de convocar o coração-cosmos, o descondicionamento dos sentidos por meio da comunhão com a ancestralidade e a cultura, Thiago Roney quer estabelecer também o lugar político do poema (algo perfeitamente natural para um atento conterrâneo de Thiago de Mello). Ele se propõe a identificar, de algum modo, “a sinfonia dos vencedores que entorpece tanto: as canções históricas do homem branco”.

a poesia habita o poema

a poesia habita a carne da palavra

a poesia habita a rua da cidade

a poesia habita o rio e a floresta

a poesia habita a poesia se e somente se

a poesia pisar no significante e no significado

a poesia pisar no signo e no sentido

Todos os conceitos se cruzam numa viagem polifônica, mas sem que se percam na mera citação, sem que perturbem o mapeamento ético a que o poeta se propõe primordialmente. 

É preciso ter em mente que todos confluem para um esforço de libertação individual, existencial. Zazen é uma das mais profundas formas de meditação. Kenshō é um termo em japonês para a experiência da iluminação, usada no Zen Budismo. Significa literalmente “ver a própria natureza” ou “o verdadeiro eu”.

Alaya Vijnana é a consciência-depósito do universo, que compreende a continuidade, mas não a continuidade do Eu. Outra evocação é o samādhi, que é a percepção superconsciente. Depois de muitos samādhis, o yogi pode alcançar o samādhi final, que podemos chamar de moksa. Neste momento acontece a realização final do yogi, onde ele finalmente se mantém estabelecido em sua própria natureza, livre de limitação.

O “eu é um outro” foi uma provocação do poeta Arthur Rimbaud (1854-1891) em carta a seu professor Georges Izambard em 13 de maio de 1871. A frase, uma dos célebres enunciados de Rimbaud, esboça a ideia de que, em um poema, um conto ou um romance, o ‘eu’ enunciador não coincide com o ‘eu’ do autor. 

“O pouco que havia do exército do eu baixou a guarda/Caem os últimos pequenos soberanos”, diz o poema de Thiago Roney, enxergando, para além de Rimbaud, essa dissolução do poeta em seu poema, a possibilidade de alcançar a própria consciência.

O Aleph de Borges roça o Pallaksch de Hölderlin nas emboscadas do poema. “Pallaksch”, um termo usado pelo filósofo Hölderlin (e que tanto podia significar sim como não), foi descrito por Paul Celan em Paris, em 1961, um dia após o poeta ter visitado a célebre Torre de Hölderlin em Tubinga, na Alemanha.

Antes o mundo não existia

em todo lugar e aqui 

O capítulo V, uma pilha de anotações com nomes de conflitos e guerras, é como se fosse um estandarte bordado por Arthur Bispo do Rosário, e carrega a função de fazer da realidade uma espécie de alavanca. 

Esse capítulo antecede a parte mais dolorosa e realista do poema, dois episódios que são duas chaves para a compreensão do horizonte do poeta-observador. O primeiro aconteceu em 2015, quando um homem da comunidade de Cidade das Luzes. situada no bairro Tarumã, Zona Oeste de Manaus, André de Oliveira Vasconcelos, amarrou-se à própria casa onde vivia, jogou combustível em si e depois ateou fogo. 

O homem tentou impedir a ação da polícia numa reintegração de posse e morreu com 90% do corpo queimado. Na outra ponta desse processo de espoliação e destituição de direitos, em uma cultura oriental, o poeta vai de encontro à história do monge Thích Quảng Ðức que, durante uma manifestação na cidade de Saigon, no Vietnã do Sul, em protesto contra a política religiosa do governo, ateou fogo a seu próprio corpo em junho de 1963.

O poeta se insurge contra o apagamento não apenas da História, mas dos processos, dos aprendizados, do legado cumulativo das lutas, da resistência. Em torno de uma expressão Apiyemiyeki?, é que se constrói a última parte do poema. 

Apiyemiyeki? foi uma pergunta feita pelos Waimiri-Atroari durante o processo de alfabetização da sua aldeia, uma expressão de dolorosa estupefação: “Por que kamña (civilizado) matou kiña (Waimiri-Atroari)? Apiemieke?”, perguntaram. Porque se matam culturas para que outras se afirmem?, esse é o cerne do questionamento.

Eu sou os Tikiriya na sua sumidura,

quando chegou, na terrível década de 1970,

a Mineradora Taboca do Paranapanema,

e seus sufocados e perpétuos gritos:

Apiemieke?

Apiemieke?

Eu sou os Piriutiti na sua desaparição,

quando nasceu, na terrível década de 1980,

nas terras indígenas a Hidrelétrica de Balbina,

e seus sufocados e perpétuos gritos:

Apiemieke?

Apiemieke?

Não há dualidade entre o autor e sua obra. São parte do mesmo processo, e é isso que parece a poesia de Thiago parece elaborar. Ele não empreende expedições descomunais para garimpar imagens ou visualidades de impacto em seu texto. Prefere ater-se a um registro de extremos emocionais, de radicalidades esclarecedoras, de sentidos desprezados. 

“Eu sou o homem que desenterrou a avó do túmulo para dançar com seu cadáver”, escreve. 

Há um alentado ensaio do poeta Tenório Telles ao final do volume, uma análise densa e abalizada da obra. Mas, nesse ponto, já conscientes do vertiginoso mergulho do poeta em sua saga de autoconhecimento, talvez tudo que escrevamos possa servir apenas como mais uma declaração de desistência.

As mil e uma perguntas não cabem no poema.

Nossa língua não cabe no poema.

Eu não caibo completamente no poema.

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