Entre corpos e contos: a emancipação feminina nas obras de Priscila Lira
[RESUMO:] Os contos que fazem parte do corpus de análise deste artigo, “A mulher do Zé Pitomba”, “Cordeiro” e “Petite Mort”, da amazonense Priscila Lira, presentes no livro “O Barulho do Mormaço”, apresentam somente protagonistas femininas, constituindo-se, principalmente, pelas descrições de emancipação dessas personagens, fato que se dá pela tomada de consciência de seu corpo, seus prazeres e desejos, assim como no exercício de sua própria liberdade sexual. Foram usados Michel Foucault (2008; 2014) para a análise da perspectiva de poder e violência que perpassam os três textos e a autora Guacira Lopes Louro (2008; 2018) contribuiu na leitura no que diz respeito ao corpo educado.
Os dezessete contos presentes no “Barulho do Mormaço”, da amazonense Priscila Lira, apresentam, majoritariamente, protagonistas femininas. Os contos que fazem parte do corpus de análise desta pesquisa[1], “A mulher do Zé Pitomba”, “Cordeiro” e “Petite Mort”, são todos protagonizados por mulheres, apresentando problemáticas do feminino, dentre elas, o policiamento de seu corpo. Isso é observado nos contos pela destituição de sua autonomia, dentre elas a sexual, e resgatado pela redescoberta do prazer e da vontade de se viver livres e independentes de seus companheiros.
No último conto do livro, denominado “A Mulher do Zé Pitomba”, é mostrada a história de Ana, uma mulher do interior do Amazonas que possui uma vida marcada por inúmeras humilhações e violências de seu marido, mas que, por conta de uma série de diberações ao longo da narrativa, como, por exemplo, um caso extraconjugal, acaba deixando seu lar. No conto “Cordeiro”, a protagonista (sem nome) relata o fim de seu relacionamento com o companheiro e o seu período de libertação dessa vida conjugal, no qual a personagem narra diferentes experiências sexuais e, ao fim, é morta pelo ex-marido. Dessa forma, em ambos os contos, as protagonistas têm seus desejos, vontades e até suas vidas interrompidas, sofrendo diversos tipos de violências..
No conto “Petite Mort”, título que significa uma pequena morte ou também uma expressão para o período refratário depois do orgasmo, há o uso da metalinguagem, como afirma sua protagonista: “desculpe-me não há narrativa aqui, apenas hidromúrias rebeldes, solitárias, quebrando o protocolo” (LIRA, 2013, p. 50). Assim, diferentemente dos dois contos anteriores, a protagonista revela ao leitor que não há acontecimentos que desencadeiam outros, seu objetivo é narrar atividades do cotidiano de seu domingo “preguiçoso”, dentre elas, uma tarefa prosaica como lavar suas calcinhas. Além disso, a protagonista também conta sobre seus desejos eróticos, como ser observada ao lavar suas calcinhas e, após findada a atividade, se masturbar, também com a ideia de ser vista por outros.
Em relação à vigilância e ao controle dos corpos observados nos contos, em “Vigiar e Punir”, o filósofo Michel Foucault afirma que isso está presente na sociedade desde a época clássica, na qual o corpo já era objeto e alvo do poder, manifestando-se, por exemplo, no treinamento dos soldados do século XVII, que, dentre tantas qualificações, precisavam ter atributos físicos que lhe proporcionassem agilidade e força. Segundo o autor, no livro “Homem-máquina” de La Mettrie, é visto “um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares (…) para controlar ou corrigir as operações do corpo” (FOUCAULT, 2014, p. 132), e são esses “regulamentos”, denominados por Foucault como “disciplinas”, que se tornaram nos séculos XVII e XVIII “fórmulas gerais de dominação” do corpo. (FOUCAULT, 2014, p. 132).
Seguindo para a Europa Ocidental do século XIX, espaço para diversas transições de um tipo de governo monárquico, representado por uma única figura, o monarca, para uma República, é o “corpo social” (FOUCAULT, 2008, p. 145), ou seja, toda a população que se torna o objeto e alvo de poder, como afirma Foucault:
[…] este corpo [social] que será preciso proteger, de um modo quase médico: em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integridade do corpo do monarca, serão aplicadas receitas terapêuticas como a eliminação dos doentes, o controle dos contagiosos, a exclusão dos delinquentes. A eliminação pelo suplício é, assim, substituída por métodos de assepsia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos “degenerados” […] (FOUCAULT, 2008, p. 145).
Assim, por meio da segregação dos corpos doentes e loucos, por exemplo, é que o poder vigente manteve o policiamento e o controle da sociedade. Contudo, nesse período, foi por meio desta intensa preocupação do poder vigente com o “corpo social” que se permitiu uma “reivindicação do próprio corpo” (FOUCAULT, 2008, p. 146). Como elucida Foucault:
A partir do momento em que o poder produziu este efeito [o de controle], como consequência direta de suas conquistas, emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder, a saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento, do pudor. E, assim, o que tornava forte o poder passa a ser aquilo porque ele é atacado. (FOUCAULT, 2008, p. 146)
Devido a este efeito de reivindicação sobre os corpos, a forma utilizada pelo poder vigente para dominá-los não se deu mais pela repressão, mas agora por meio da “estimação” do corpo, no qual tornava restrita a reivindicação dos corpos a apenas um tipo específico: “Fique nu… mas seja magro, bonito, bronzeado” (FOUCAULT, 2008, p. 147), dessa forma, o corpo belo idealizado passou a ser o único beneficiário dessa reivindicação.
Séculos mais tarde, em “O corpo educado – Pedagogias da Sexualidade”, Guacira Lopes Louro afirma que ainda no século XXI a reivindicação do corpo continua, à luz, principalmente, dos gêneros-sexos e das múltiplas sexualidades, a apenas uma certa classe de corpos. A pedagoga afirma que devido à uma norma estabelecida historicamente, definida pelo “homem, branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão” (LOURO, 2018, p. 15), há, ainda na contemporaneidade, a marginalização do que é contrário a ela. Sobre esse processo de estigmatização, Louro complementa:
A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo. Por muito tempo, suas orientações e ensinamentos parecem absolutos, quase soberanos. (LOURO, 2008, p. 18).
Ou seja, tais “aprendizagens e práticas” estão interligadas à vida das pessoas desde o nascimento, aliando a materialidade dos corpos com esses discursos regulatórios, classificando e distinguindo os sujeitos (homem e mulher, homossexual e heterossexual) e, dessa forma, “[toda a sociedade] define, separa e, de formas sutis ou violentas, também distingue e discrimina.” (LOURO, 2018, p. 15-16).
Ainda segundo a autora, esse processo de estigmatização não se normatiza ao longo da história de forma natural, mas naturaliza-se em nossa cultura, pois como afirma Louro: “[isso] tem relação com o poder, mas sua relação não se dá pelo uso do poder, e sim por uma espécie de lógica que […] se expressa por meio de recomendações repetidas e observadas cotidianamente” (LOURO, 2008, p. 22). Apenas com o advento, em especial na década de 1960, das manifestações, principalmente de corpos marginalizados (mulheres, gays e lésbicas), é que se tornou possível os processos de reivindicação desses corpos subjugados.
Diante deste cenário apresentado, a partir da tríade de protagonistas dos contos elencados nesta pesquisa, é visto o sofrimento das personagens ao tentar ultrapassar os discursos que regulam e normatizam sua sexualidade, e, consequentemente, controlam suas vidas. Assim, as histórias ficcionais presentes no livro “O Barulho do Mormaço” podem ser entendidas como uma denúncia frente às normas que enclausuram e limitam a vivência feminina, “pois aprendemos a viver o gênero e a sexualidade na cultura, através de discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência e das leis.” (LOURO, 2008, p. 22).
Levando em conta as temáticas apresentadas, dentre tantas referentes ao feminino presentes no livro “O Barulho do Mormaço”, esta pesquisa se limita a averiguar o corpo, o policiamento e sua emancipação, investigando a construção do narrador e a trajetória das protagonistas dos contos: “A Mulher do Zé Pitomba”, “Cordeiro” e “Petite Mort”.
Análise do conto “A mulher do Zé Pitomba”
De imediato, constata-se pelo título do texto a substituição do nome da protagonista por sua “posição” de esposa. A significação desse título pode ser observada ao longo de toda a narrativa, pois a protagonista possui uma obrigação de honrar e manter esse status.
Por meio do uso de redes para dormir, “voadoras” para se locomoverem pelos lugares e até mesmo na própria denominação de municípios (cidades) no texto, há indícios de que a narrativa se passe em um local do interior do Amazonas, denunciando, dentre tantos aspectos, uma educação simples da protagonista. Contudo, após anos de casada, Ana se torna professora e devido aos “sumiços, dívidas, e boatos da vizinhança” (LIRA, 2013, p. 69) dada a profissão de vereador do marido e sua má administração de dinheiro, assim como seus casos extraconjugais de conhecimento da vizinhança, Ana decide ficar longe dessa realidade e ir exercer sua profissão em outro município, passando assim a também entrar em contato com novas pessoas. A aquisição da formação e exercício de professora, bem como a decisão de adotar um filho, apresentadas em sequência no texto, constituem-se com as primeiras atitudes tomadas pela protagonista no texto, contribuindo, portanto, para a tomada de autonomia da personagem que irá se desdobrar com o passar dos anos.
Por meio da narração em 3º pessoa, há a descrição das diversas ofensas proferidas pelo marido de Ana, como, por exemplo, na seguinte construção: “Um dia ele gritou: velha. Nunca mais ninguém. Gorda. Ana engoliu” (LIRA, 2013, p. 70), em que nesses gritos de Zé Pitomba é possível observar a conotação agressiva dada aos adjetivos “velha” e “gorda”, utilizados para convencer Ana de que ninguém mais iria se sentir atraído fisicamente por ela.
Contrariando o juízo de Zé, Ana conhece outro homem, um vereador do município onde passa a trabalhar como professora, e com ele passa a ter uma relação extraconjugal. Rapidamente, Zé e o restante da família descobrem o caso, desmoralizando Ana ao dizer que sua má conduta refletiria na moral de toda a família.. Ana não se importa com os comentários e faz “ouvidos mocos para todos” (LIRA, 2013, p. 70), isto é, ignora os comentários, e decide deixar sua moradia. O comportamento hostil dado à Ana continua, após a morte repentina de Zé Pitomba, período em que a protagonista pede ajuda das pessoas ao seu redor, mas recebe o desprezo de seus conterrâneos por ser aquela que “manchou” a reputação da família.
Sobre a condição adúltera da mulher, mostrada no texto por Ana, Simone Beauvoir diz o seguinte:
A civilização patriarcal destinou a mulher à castidade; reconhece-se mais ou menos abertamente ao homem o direito de satisfazer seus desejos sexuais ao passo que a mulher é confinada no casamento: para ela o ato carnal, não sendo santificado pelo código moral, pelo sacramento, é falta, derrota, fraqueza; ela tem o dever de defender sua virtude, sua honra, se “cede”, se “cai”, suscita o desprezo (…). (BEAUVOIR, 1999, p. 126)
Assim, para a Mulher do Zé Pitomba só restava a aversão por suas atitudes. Não importavam os casos extraconjugais do marido de conhecimento pleno, Ana era julgada, devido ser mulher, por não cumprir o sacramento do casamento, perdendo sua dignidade e recebendo um tratamento diferente do dado ao seu marido. Em determinado momento da narrativa, há a seguinte declaração: “Ela sem-vergonha, pobre Zé. Adeus Zé” (LIRA, 2013, p. 71), em que, por meio da oposição colocada na citação, é visto que Ana foi marcada como uma imoral e Zé, sua vítima.
Ao fim do conto, a protagonista não deixa de ser alvo de julgamentos das mulheres da vizinhança. Ela anda de cabeça baixa na rua e escuta os cochichos das vizinhas, até que repentinamente:
[Ana] é atingida por um feixe de luz que vem do céu. As vizinhas boquiabertas […] A luz permanece a iluminar Ana, que abandona a bolsa que levava nos ombros e vê seu vestido deslizando sobre o corpo. A matéria de Ana começa a ganhar uma transparência que derruba o queixo das senhoras. Ana começa a flutuar e é levada, nua, pela luz, ao reino do Sol. (LIRA, 2013, p. 71)
Assim, a narrativa de Ana se finda por um acontecimento místico para o contexto em que toda a narrativa se passava. Tal recurso é denominado na literatura, pintura, música, dentre outras artes, uma alegoria. De acordo com Carlos Ceia, no “E-Dicionário dos Termos Literários”, o termo alegoria se traduziria como: “Aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral” (CEIA, 2009, s.p.). Isto é, algo posto no texto em seu sentido conotativo, que, consequentemente, revelar-se-á como uma conclusão concernente ou própria da moral.
Ainda consoante ao autor, a “decifração de um alegoria depende sempre de uma leitura intertextual, que permita identificar num sentido abstracto um sentido mais profundo, sempre de carácter moral” (CEIA, 2009, s.p.). Desse modo, o desfecho de Ana, pode ser assemelhado a outras personagens da literatura, como, por exemplo, no romance de Gabriel Garcia Márquez “Cem anos de Solidão”, no qual a personagem Remédios, a Bela, bisneta de José Arcádio e Úrsula Iguarán, cujo nome já a revela como portadora de uma grande beleza capaz de perturbar os homens, tem seu fim assim apresentado:
[…] Fernanda sentiu um delicado vento de luz que arrancou os lençóis de suas mãos e os estendeu em toda sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas redes de suas anáguas e tratou de agarrar no lençol para não cair, no mesmo instante em que Remédios, a Bela, começava a se elevar. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irreparável, e deixou os lençóis à mercê da luz, vendo Remédios, a Bela, que dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que abandonavam com ela o ar dos besouros e das dálias. (MÁRQUEZ, 2012, p. 274)
Neste excerto de “Cem anos de Solidão”, é demonstrado com o “bater de asas dos lençóis”, assim como, posteriormente, a realização até mesmo de rezas em homenagem a personagem, o caráter religioso da ascendência de Remédios, a Bela.
Comparando as duas personagens, Remédios, a Bela, e Ana, ambas possuem características e trajetórias de vidas diferentes. Ana, diferentemente de Remédios, a Bela, não é descrita com uma beleza extraordinária, mas já envelhecida no momento em que é levada ao “reino do Sol”. Ela não possui comportamentos infantis como Remédios, a Bela possuía mesmo adolescente, mas já tinha iniciado sua vida sexual e tinha se tornado esposa e mãe. Além disso, a mulher do Zé Pitomba possui na narrativa um relacionamento extraconjugal que a tinha marcado como uma imoral, oprimida por esse ato até o fim.
Então, o que poderia levar as duas personagens a um fim semelhante? Poder-se-ia interpretar, baseando-se na discussão realizada nesta pesquisa, que a ligação entre as duas personagens se dá por ambas não apresentarem comportamentos que correspondessem ao exigido por sua condição de mulher. Enquanto Remédios, a Bela, não mostrava interesse em aprender as tarefas que sua função de futura esposa exigiria, tornando inúteis as tentativas de sua bisavó Úrsula de adestrá-la para o matrimônio, Ana, por sua vez, opta por abandonar sua “posição” de esposa, e recebe, ao fim, o julgamento de todos os seus conterrâneos.
Como visto na análise do conto, Ana, diferente do que as pessoas diziam no texto, e não o marido, foi a verdadeira injustiçada na narrativa devido à sua condição como mulher aqui investigada. Dessa forma, “A mulher do Zé Pitomba”, marcada no texto como uma “sem-vergonha” (LIRA, 2013, p. 71), assim como Remédios, a Bela, são recompensadas, ao serem retiradas desse plano em que sua condição parece estar fadada a ser sempre vigiada e julgada para ascender, no caso da protagonista do conto, para a maior estrela do sistema.
Análise do conto “Cordeiro”
O conto se inicia com a protagonista (sem nome) narrando ser vítima de um acontecimento sangrento que é decisivo para a libertação da “morte” em que estava vivendo, como descreve no seguinte trecho: “Quem diria que eu. Aquela que tantas vezes viu o reflexo do corpo no espelho e quis se partir em mil caquinhos, hoje, assistiria ao sangue me tirar de uma vez por todas dessa morte que tu me meteu” (LIRA, 2013, p. 60). Essa “morte” se revelará, mais à frente no texto, como os traumas decorrentes da diversas violências sofridas pelo seu companheiro.
A partir deste acontecimento, toda a narração em 1º pessoa pela protagonista se dá como uma espécie de monólogo, revelando ao leitor, por meio de flashbacks, outros acontecimentos de sua vida até este momento, dirigindo esta narração para uma outra personagem, o agora ex-companheiro. Este tipo de narração parece se dá por conta do estado desorientado em que a narradora se encontra, em que está “rindo” das luzes trêmulas acima dela e do sangue escorrendo ao chão, não sabendo se está falando ou pensando as palavras que formam a narrativa, promovendo, dessa forma, uma narração não linear dos acontecimentos de sua vida.
No início desses flashbacks já ficam claras as violências físicas e psicológicas oriundas do marido, como declara a protagonista no seguinte trecho: “a [minha] pureza só me deu porrada na cara e na boca do estômago.” (LIRA, 2013, p. 61), descrevendo até a realização de um aborto para que o filho que estava esperando não se tornasse alguém como o pai e o ajudasse, quando crescer, a “matá-la” (LIRA, 2013, p. 61),. Somando-se a isso, há as descrições do aprisionamento psicológico e físico da personagem, nas quais é possível perceber o domínio do marido sobre o “corpo” da esposa, se realizando, por exemplo, por meio de suas repressões nas escolhas de vestuários da protagonista, como se vê na seguinte passagem: “Quem diria que eu. Aquela que tantas vezes voltou da porta da sala porque o tecido era pouco” (LIRA, 2013, p. 61), ou seja, por meio da proibição da protagonista em utilizar de roupas mais curtas. Em sequência, a narradora diz o seguinte: “A leveza do meu corpo sempre foi teu paraíso, com ele e com a chave da porta em tuas mãos, muito pouco eu podia” (LIRA, 2013, p. 61), revelando que o marido possuía a chave da casa do casal, impossibilitando que a protagonista pudesse sair de casa e até de receber visitas sem o seu consentimento. Essa atitude do marido provoca, consequentemente, o isolamento da personagem, alienando-a quanto às informações e pessoas do lado de fora de sua casa.
No conto, há vários exemplos da influência da religião na vida da protagonista, tornando possível defini-la em uma religião protestante-evangélica, por meio das pregações do chefe dessa instituição, um pastor, que a protagonista narra ser obrigada a ouvir pelo marido, como se vê no seguinte trecho: “o meu corpo é um semfim de sentidos e me ensina mais coisas sobre o céu e a terra que aquele pastor ex-bruxo-ex-aidético-ex-drogado, estuprador que tu me fazia ouvir” (LIRA, 2013, p. 62).
Dada a influência da religião na vida da protagonista, é possível inferir que há, na utilização de palavras como “pureza” e “culpa”, uma conotação religiosa, com a ideia de “pureza” servindo como “justificativa” do companheiro para a vigilância e controle da esposa e, por conseguinte, na “culpa” sentida pela personagem ao entrar em desacordo com os ideais da religião, como mostra a seguinte declaração: “Por tua raiva, pelo desprezo, a minha culpa foi se enraizando, perfurando a pele, os ossos, feito os pregos daquele que tu te guiava para me excomungar” (LIRA, 2013, p. 60). Dessa forma, é visto que o marido da protagonista a “punia” por todo comportamento ou vontade que se apresentasse contrário às regras estabelecidas por essa religião, ocasionando, assim, este sentimento exacerbado de culpa na narradora, que o compara com os pregos da crucificação de Jesus Cristo – personagem dessa religião que foi morto e pregado pelas mãos e pés em uma cruz.
Contrariando o ideal que essa religião prescrevia para a sua vida e de forma análoga ao conto anterior, há o desvencilhamento do marido e do lar por essa personagem. Não há no texto a narração do momento exato, nem o motivo específico para que a personagem tomasse essa decisão, apenas que os motivos para tal resolução eram diversos, dentre eles, os diversos casos de violência sofridos pela personagem, citados anteriormente. Do mesmo modo, ao se separar do marido, a protagonista narra receber, tal como Ana, um julgamento negativo de seus conterrâneos por sua conduta, principalmente, pelas mulheres casadas e membras dessa instituição religiosa, narrando em um determinado momento da narrativa ser “engolida pelos olhos das senhoras da Igreja, das mães de família” (LIRA, 2013, p. 61).
Neste período de libertação do marido, a protagonista relata a descoberta do prazer sexual, acontecimento que é de suma importância para a tomada de sua autonomia. A narradora cita experiências, como a masturbação e o sexo casual, e ainda as compara com suas práticas sexuais feitas em sua vida de casada, como se pode ver no seguinte trecho: “nem saber que com minhas próprias mãos eu gozava muito mais que com teu corpo inteiro, que outra vagina valia bem mais que teu cacete doente pela minha pureza” (LIRA, 2013, p. 61), A protagonista ainda chega a fazer a seguinte declaração: “Talvez eu conseguisse fugir dessa morte em que tu me meteu. Porque as bocetas e caralhos que entraram na minha boca depois de ti me fizeram muito mais feliz…” (LIRA, 2013, p. 61), revelando a importância que os efeitos dessas experiências sexuais ocasionaram em si, podendo até mesmo servir com um escape da “morte” em que estava inserida, ou seja, uma forma de superar os traumas deixados na relação com o marido.
Ao fim da narrativa, já separada do marido, a protagonista narra estar a caminho de uma viagem com uma amiga para Bahia quando é interceptada pelo ex-companheiro. É possível intuir, pela declaração da personagem no seguinte trecho: “Eu sabia o que tu pensaria e o que tu faria e o que os outros diriam, não importa o que eu fizesse.” (LIRA, 2013, p. 61), de que, apesar de se libertar fisicamente do marido, a protagonista continuava à mercê do controle e vigilância dos outros, e, por meio do histórico de violência do marido, conseguia até prever a retaliação dele violência dele, narrada ao fim do texto:
Quem diria que eu, com um vestido branco, e curto, de renda, leve, roçando nos mamilos, andando triunfante pela rodoviária (…) seria abordada por ti, pela última vez, que me levaria para a sarjeta e sujaria meu vestido de fumaça e sangue. Foi por pouco que eu não consegui desatar o último nó que me prendia ao teu ódio, mas eu pude, com o derradeiro rastro de visão que me foi dado, ver a minha alegria dar cabo à tua vida, com as tuas próprias mãos – a não se verem saciadas comigo ensanguentada no chão – e saber que nunca mais teu corpo vai tocar outro corpo inocente. (LIRA, 2013, p. 62)
É, sobretudo no fragmento acima que encerra o conto, que se pode entender a escolha do título “Cordeiro”, e por meio de uma investigação desse nome, buscar uma interpretação para o desfecho de sua protagonista.
No Dicionário de símbolos de Jean Chevalier, o vocábulo “cordeiro” possui diversos significados de acordo com a religião, podendo ser o sangue redentor de cristo na cruz para os cristãos, como também o sangue salvador sacrificado para os judeus. Partindo disso, pela influência de uma religião cristã, já citada anteriormente, poder-se-á depreender que o significado da palavra para o texto se encontra presente na fé cristã, com o “cordeiro” constituindo-se como: “a vítima sacrifical de todas as ocasiões, principalmente, da Renovação quer se trate (…) das Páscoas cristãs, morte e ressurreição de Cristo” (CHEVALIER, 1906, p. 287-288).
Ainda de acordo com o Dicionário de Chevalier:
(…) [o cordeiro] encarna o triunfo da renovação, a vitória, sempre a renovar-se, da vida sobre a morte. É justamente essa função arquetípica que faz o cordeiro, por excelência, a vítima propiciatória, aquela que se tem que sacrificar para assegurar a própria salvação. (CHEVALIER, 1906, p. 287-288)
Dessa forma, a personagem que anda de forma triunfante na rua, trajada de seu vestido curto branco, no qual a cor de sua vestimenta apresenta uma outra referência à “brancura imaculada e gloriosa” (CHEVALIER, 1906, p. 287-288) do “cordeiro”, ao ver que o seu ex-companheiro não se satisfaria somente em matá-la, terminando por suicidar-se, incorpora o papel sacrificial do cordeiro. Assim, ao contrário do que poderia se esperar deste momento trágico, a personagem narra com satisfação encerrar os últimos sentimentos negativos que ainda a ligavam ao ex-companheiro, e assim como a ideia representada pela simbologia do “cordeiro”, ela sente-se vitoriosa ao garantir com a morte do marido, a salvação de outras pessoas que ele não poderá machucar, mesmo isso significando a perda de sua própria vida.
No monólogo de sua protagonista, Lira expõe o controle e a vigilância do corpo da mulher, principalmente, pelo seu marido, no qual é possível perceber a utilização dos ensinamentos cristãos da religião protestante-evangélica para justificar a subjugação da personagem pelo marido, esta que perde seu livre-arbítrio em tomar decisões, por exemplo, de usar roupas mais curtas, de ter contato com outras pessoas e até com o próprio mundo fora de sua casa. Além disso, a personagem ainda sofre diversas outras violências após se separar do marido, como o julgamento de seus conterrâneos e a contínua perseguição do marido, que, ao fim do texto, não suportado a sua independência e liberdade, tira-lhe a vida.
Além disso, pela simbologia do cordeiro que perpassa toda a narrativa, há ainda a ressignificação do trágico fim da protagonista, que demonstra sua satisfação ao se libertar dos últimos sentimentos ruins que a ligavam ao marido, mas sobretudo de poder, por meio do suicídio deste, mesmo perdendo sua vida no processo, salvar outras pessoas de serem machucadas.
Apesar do fim trágico, há ainda a narração de um período de descoberta do corpo pela protagonista, ao descobrir os prazeres sexuais que lhe eram negados, e que contribuem para a sua tomada de autonomia, ocasionando o desprezo pelas pregações que era, outrora, obrigada a ouvir pelo marido, e que poderiam até ser uma possibilidade de escape para os traumas de sua relação conjugal. Dessa forma, é importante ressaltar que tal período de autonomia sexual da protagonista, bem com sua decisão de viajar para outro estado com uma amiga, também poderiam proporcionar a ela a chance de ser livre e independente, fato que não foi possível dado ao ato criminoso do ex-marido ao fim da narrativa.
Análise do conto “Petite Mort”
No conto “Petite Mort”, título que significa uma pequena morte ou também uma expressão para o período refratário depois do orgasmo, há o relato da protagonista (sem nome) de um dia cotidiano de sua vida, um domingo preguiçoso, no qual realiza a tarefa prosaica de lavar suas calcinhas. Esta atividade, aparentemente de cunho banal, se dá paralelamente à uma introspecção da protagonista, na qual são vistos seus medos, inseguranças, e desejos, que, por meio da intertextualidade com escritores brasileiros como Carlos Drummond de Andrade e Hilda Hilst, contribuem para dar vazão aos sentimentos da personagem no conto.
Apesar de apresentar uma personagem central feminina, formando a tríade de protagonistas aqui analisadas, a personagem do conto “Petite Mort” possui uma condição diferente das outras duas personagens anteriores. Tal condição pode ser resultado, dentre tantos fatores, pela mudança de cenário em que a história se desenrola. No conto, diferentemente de um município do interior do Amazonas em que Ana de “A Mulher do Zé Pitomba” é moradora, a protagonista de “Petite Mort” reside num apartamento de um grande centro residencial, como é visto na seguinte passagem do texto: “Gosto de pensar que todas as janelas vizinhas estão logo ali […] a me olhar” (LIRA, 2013, p. 48), estas janelas representando os apartamentos vizinhos da personagem. Assim, a protagonista de “Petite Mort” é oriunda de um espaço, a cidade, em que se pode ter acesso facilitado a meios, como a internet e jornais, que tornam mais fácil a obtenção de informações globais, como, por exemplo, o conhecimento de guerras em outros países, como se vê no texto pela referência à morte de crianças na Guerra Civil Síria.
Outra distinção é vista na ausência de qualquer relação problemática com um parceiro masculino em “Petite Mort”, não havendo, consequentemente, um rompimento com esse relacionamento e uma tomada de autonomia pela protagonista, como, por exemplo, em relação a sua sexualidade, como acontece nos dois contos anteriores. Há desde o início do texto um já entendimento da protagonista dos prazeres de seu corpo, bem como a liberdade em exercê-los. Além disso, por meio da inserção da poética da escritora Hilda Hilst, bem como referências a própria figura da autora no conto, é visto o repertório literário que a protagonista possui, podendo depreender que as temáticas presentes nos textos, bem como a figura de seus próprios escritores, tiveram um papel fundamental na formação do comportamento e do discurso da personagem de “Petite Mort”.
Desse modo, é possível inferir que tais conhecimentos, somados à informação de que a personagem vive sozinha em seu apartamento, não havendo no texto qualquer dependência emocional ou financeira com outra pessoa, resultaram em uma condição discrepante com a duas mulheres anteriores, possibilitando que em “Petite Mort” houvesse uma protagonista consciente e livre para desejar e exercer suas vontades, dentre elas, no que tange a sua sexualidade. Essa contextualização sobre a condição da protagonista é essencial para a compreensão da narrativa.
Na primeira sentença do texto, é citada a presença de “flores amarelas de medo” (LIRA, 2013, p. 47) ao redor da protagonista, com uma delas, especificamente, em cima de seu peito. Essa expressão pode ser entendida em seu sentido conotativo, constituindo-se como uma referência ao poema do escritor Carlos Drummond de Andrade, que a personagem se refere no conto como “velhinho pornográfico” (LIRA, 2013, p. 50) (referência ao texto “Em face dos últimos acontecimentos” de Andrade), intitulado “Congresso Internacional do medo”, e cuja análise contribuirá para o entendimento do conto.
O poema “Congresso Internacional do medo”, presente no livro “Antologia Poética”, foi publicado, primeiramente, na década de 1960, e constitui-se como um produto do período de terror proveniente da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), podendo ser encontradas, no poema, figuras que remetem ao conflito, como “soldados”, “ditadores” e “democratas”, presentes nos versos sete e oito, respectivamente. No texto, o eu-lírico acredita na supremacia de apenas um único sentimento no imaginário humano, como pode ser visto no quinto verso do texto: “existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro” (ANDRADE, 1978, s.p.), com o sentimento “medo” não apenas se limitando a um papel passivo de companhia, mas também como uma figura paterna, possuindo uma autoridade sobre as vontades humanas. Em conseguinte, o eu-lírico discorre sobre as várias formas de se presenciar esse sentimento ao longo da vida, até que ao final do texto diz: “e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas” (ANDRADE, 1978, s.p.), demonstrando o caráter perene do sentimento “medo”, permanente mesmo após a morte.
É com esse sentimento que a narradora de “Petite Mort” declara iniciar seu dia, impossibilitando que ela saia de casa, e, consequentemente, aproveite o dia para lavar suas calcinhas. Em outro momento do texto, a narradora relata novamente a presença dessas “flores”, como pode ser visto no seguinte trecho: “Por todo lugar brotam as flores amarelas, hoje o mundo tremelica de medo, os ditadores, o povo, os democráticos, os ex-militantes, as mães de estudantes, o moço revistado com maconha no bolso, as mulheres com o rosto escaldado condenados à feiúra eterna, eu” (LIRA, 2013, p. 47), mostrando o sentimento “medo” vinculado em diversos problemas sociais, como, por exemplo, nas ditaduras e na condição feminina, assim como na própria existência da protagonista.
Após iniciar o processo de lavagem de suas calcinhas, a protagonista recorda um sonho, no qual havia um espelho em sua cozinha, cuja imagem refletida de seu corpo desperta uma grande vontade em se observar nua. Ela tira sua roupa e passa os dedos pelo seu corpo, declarando lhe proporcionar uma grande excitação com a sua figura. Depois de rememorado o sonho, a protagonista declara o desejo de ser observada por outros lavando suas calcinhas, ela opta pela lavagem na pia da cozinha devido a janela do cômodo possuir acesso aos outros apartamentos vizinhos, mesmo que, dentre tantos apartamentos, fosse improvável que alguém a notasse nesse momento. A protagonista imagina um voyeur se excitando com a cena, até, que, chegado o momento de retirar a própria calcinha que está usando para lavar, imagina não somente ele, mas todos os vizinhos por meio de sua janela “fazendo promessas” (LIRA, 2013, p. 49) para que fique completamente nua.
Depois de estender suas calcinhas, a protagonista declara ainda ter “meio domingo para existir” (LIRA, 2013, p. 49) e aproveita desse tempo livre para poder recriar seu sonho, só que dessa vez, trocando o espelho na cozinha pela janela de seu quarto. A protagonista se despe e, novamente, se imagina sendo observada por outros, passando a descrever seu corpo:
“Todos os sinais, esse par de seios que contrasta tanto com meus braços bronzeados, o pequeno relevo que se forma nas costelas, o umbigo, o quadril estreito, as coxas com uma leve penugem que reflete a luz, as canelas ásperas (…) tudo isso é meu”( LIRA, 2013, p. 50)
Esse episódio revela a liberdade da protagonista em poder desfrutar de um corpo que possui o domínio pleno. Em seguida, há a descrição de sua masturbação e, posteriormente, de seu orgasmo: “Meu dedo andando em círculos percorrendo os pelos, desce, desce, molha-se (…) O meu dedo convulsiona na cama, os dedos encharcam, “A vida é líquida””( LIRA, 2013, p. 50), sendo esta última sentença uma referência ao poema “I” do livro “Alcoólicas”, da escritora Hilda Hilst.
Além dessa passagem, este poema aparece na sua íntegra no conto liriano e a sua análise, da mesma forma que o poema de Drummond, também servirá para o entendimento do conto.
O livro “Alcoólicas”, do qual faz parte esse poema, apresenta como temática geral a metaforização da vida como algo líquido, mais precisamente, como se pode perceber pelo título, na bebida alcóolica. De acordo com o pesquisador Sandro Adriano da Silva, há no poema a “captação e expressão da experiência de um sujeito poético solitário que margeia sentidos de dissolvência pela embriaguez (…) diante do imponderável existir” (SILVA, 2019, p. 120). Em outras palavras, há um eu-lírico solitário que utiliza dos efeitos da bebida alcóolica para poder compreender sua própria existência, sendo o álcool “uma via privilegiada de acesso ao ser”(2004, p. 10), como comenta Alcir Pécora no prefácio da edição do livro “Do desejo”.
No poema “I” de “Alcoólicas, presente em “Petite Mort”, há uma definição de vida como algo difícil, como pode ser visto no seguinte verso do poema: “É crua e dura a vida. Como um naco de víbora” (HILST, 2001, p. 99), na qual a vida é metaforizada em substâncias sólidas, ou mesmo de caráter degenerado (seja pelo símbolo da serpente, ou pelo seu veneno), e que se transforma ao passo em que acontece a fusão desse elemento para um outro estado, constatado nos versos finais: “E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima/ Olho d’água, bebida. A vida é líquida!” (HILST, 2001, p. 99), se tornando explícito no texto, por meio de imagens líquidas, dentre elas, a bebida.
Além da presença da obra de Hilst, a protagonista de “Petite Mort”, ao iniciar seu processo de lavagem, indaga à própria escritora sobre a atividade doméstica que está realizando, perguntando se Hilst estendia suas calcinhas na varanda de sua casa, ou como ela, preferia mantê-las escondidas atrás da geladeira. Ao final do texto, quando a personagem se encontra em seu estado de volúpia (ao se masturbar), há novamente uma menção à Hilst, com a narradora afirmando que a escritora iria gostar de presenciar esse momento erótico. Essas referências à vida pessoal da escritora corroboram para uma influência não apenas presente nos textos da escritora, mas também da escritora em si, que foi uma figura marcante da literatura brasileira do século XX, e cuja vida pessoal também pode dar luz ao discurso da narradora no conto.
A poeta, ficcionista, dramaturga e cronista brasileira Hilda Hilst (1930-2004), escreveu em sua extensa proficiência literária, temáticas, principalmente, referentes à metafísica e ao amor erótico, tornando-se uma figura polêmica nos anos 1990, depois de declarar a pausa na escrita de uma literatura “séria”, devida a ausência de leitores e de críticas especializadas aos seus textos, considerados “herméticos” demais, para dar início às publicações do que ficou conhecido hoje como “tetralogia obscena”. Somam-se ao imagético popular, uma trajetória de vida não menos ímpar que sua obra, na qual foi marcada, após ler “Carta a El Greco”, do escritor grego Nikos Kazantzakis, pela decisão de transformar radicalmente seu estilo de vida, mudando-se da cidade de São Paulo para uma chácara isolada localizada em Campinas. Na “Casa do Sol”, como ficou conhecida sua nova moradia, foi onde Hilst escreveu a maior parte de seus textos, e na qual também passou a ter experiências com gravadores na captação de vozes do “além”, o que ajudou a construir a figura mística por trás de seu nome. Hilda Hilst ainda colecionou uma longa lista de namorados, como pode ser constatado na matéria de Pedro Nella, presente na coleção de entrevistas da autora “Fico besta quando me entendem” (2013) devido ao “seu decor, raça, beleza perfumada”, que a faziam causar “paixões avassaladoras” (HILST, 2013, p. 47), sendo comum em sua obra a presença de um eu-lírico feminino (que em alguns momentos se identifica com a própria autora) “cantando” sobre o seu prazer sexual.
Assim, por meio da presença dos escritos e da própria Hilda Hilst, poder-se-á depreender uma influência de sua vida e obra, no qual exerceu e escreveu sobre sua sexualidade, para a construção e desenvolvimento dessa protagonista liriana. Ela que possui uma consciência dos prazeres do corpo, e assim como Hilst, também “canta” sobre eles em seus relatos.
Como dito anteriormente, há diversos aspectos contrastantes da protagonista de “Petite Mort” com as outras protagonistas anteriores, dentre eles, a presença de um repertório literário e o conhecimento de notícias a respeito de problemáticas sociais. Desse modo, todas essas características da protagonista de “Petite Mort”, bem como outras discutidas ao longo desta análise, permitem que a protagonista tenha condições de explorar seu corpo e exercer sua liberdade sexual. Além disso, mesmo que a protagonista se encontre em uma realidade que lhe “amedronte”, como é visto pela narração das “flores amarelas de medo” (LIRA, 2013, p. 47) no início da narrativa, a protagonista de “Petite Mort” pode, além de exercer seus prazeres sexuais livremente, relatar, em seu “monólogo”, sobre assuntos banais de seu dia, como lavar suas calcinhas, assim como sobre a realização de sua própria sexualidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi definido como corpus de análise desta pesquisa a tríade de contos: “A Mulher do Zé Pitomba”, “Cordeiro” e “Petite Mort”, presentes no livro “O Barulho do Mormaço”, da amazonense Priscila Lira, em virtude da presença de protagonistas femininas e, principalmente, por suas descrições a respeito de suas sexualidades, essas que são resgatadas e descobertas, e em outros casos, até mesmo expressas livremente nessas narrativas.
Nos primeiros contos analisados, “A Mulher do Zé Pitomba” e “Cordeiro”, há a presença de duas personagens que sofrem diversos tipos de violências de seus companheiros, nos quais se constatam como “justificativa” para os seus aprisionamentos nessas relações as influências de instituições, como a família e a igreja. Quando, enfim, conseguem se desvencilhar desses relacionamentos, sua emancipação se dá, concomitantemente, com a tomada de consciência de seu corpo, seus prazeres e desejos, assim como no exercício de sua própria liberdade sexual.
Em “A Mulher do Zé Pitomba”, a protagonista, Ana, apresenta uma trajetória de tomadas de independência do marido, passando a estudar e a trabalhar como professora em outra localidade, onde também passa a ter um caso extraconjugal. Já a protagonista de “Cordeiro”, ao se desvencilhar de seu companheiro, é por meio da descoberta do prazer carnal, como a masturbação e o sexo casual, que a protagonista redescobre os prazeres do corpo, cujo efeito poderia até lhe proporcionar um escape dos traumas deixados pelo marido.
Além disso, ambas as protagonistas, ao reivindicarem sua liberdade sexual, são vigiadas e julgadas pelos seus conterrâneos. Ana, mesmo após a morte do marido, ainda é oprimida por comentários da vizinhança, sendo, ao fim, arrebatada de sua vivência terrena e levada a outro plano, podendo ser compreendida com uma espécie de “recompensa” por uma vida marcada de injustiças. Em “Cordeiro”, há também o julgamento dos conterrâneos da protagonista, bem como a perseguição do marido que, ao fim, não suportando a liberdade da protagonista, tira-lhe a vida.
Por último, há ainda uma protagonista de condição discrepante das anteriores, como é visto na narradora de “Petite Mort”. Ela não possui nenhuma dependência, financeira ou emocional, com qualquer outra personagem, além de ser detentora de um repertório literário e de conhecimentos acerca de problemas sociais. Todos esses fatores discutidos na análise do conto criam condições para que a protagonista, desde o início da narrativa, mostre-se consciente também dos prazeres de seu corpo, podendo, apesar de também relatar sobre sua existência “amedrontada”, contar livremente sobre a realização de seus prazeres sexuais.
REFERÊNCIAS
José Fabricio Affonso Ferreira Júnior é graduando do Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa, Universidade Federal do Amazonas, Faculdade de Letras.