Mitopoética no Moronguetá: literatura, oralidade e performance da narrativa indígena

Photo: Anderson Barbosa / Amazônia Latitude
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Photo: Anderson Barbosa / Amazônia Latitude

[RESUMO]: Este artigo examina a intersecção da literatura, oralidade e performance na tradição narrativa indígena, aprofundando-se na riqueza poética dos mitos. O autor enfatiza a relevância da sensibilidade na construção dessas narrativas míticas e explora a interconexão entre a cultura científica e humanidades na prática da etnopoesia amazônica. Além disso, o artigo investiga como o poder criativo das narrativas míticas influenciou a imaginação e a criação literária de diversos narradores indígenas, naturalistas e cientistas.


Partindo da etnografia e da etnologia de Nunes Pereira, registradas principalmente em duas de suas obras, a saber, Moronguetá, um Decameron Indígena (1980) e Bahira e suas Experiências (1940), percorremos os traços embrionários para pensar uma etnopoesia amazônica, tecendo uma dialogia entre cultura científica e cultura das humanidades. Nesse entrelugar desvela-se a tessitura das narrativas míticas enquanto devaneio poético. Uma dimensão estética pouco reconhecida que alimentou o imaginário da criação literária entre muitos narradores indígenas, naturalistas e cientistas, produzindo uma ressonância criativa da qual muitas aventuras etnográficas serão tributárias.

O mito foi pensado como dimensão poética, produto da sensibilidade. As narrativas míticas são poiesis, à medida que se tornam arte criadora, multiplicando uma variedade de sentidos. O mitopoético recupera, no plano poético das imagens, o sentido estético represado, obliterado ou desmagificado que a racionalização do Aufklärung em sua trajetória unidimensional nos fez acreditar. Já a etnopoesia refere-se ao estudo – por vezes assistemáticos – dos conceitos e das experiências estéticas situado no campo do imaginário poético de certas narrativas locais. Daí serem também chamadas de etno-estéticas. Demos especial relevo a etnografia e etnologia de Nunes Pereira por entender que suas pesquisas não ficaram circunscritas e limitadas apenas ao império da palavra escrita. Sua condição sensível de um mitômano apaixonado fez sua pesquisa enveredar pela arte poética, fazendo sua atenção ser direcionada também para alguns aspectos da performatividade do narrador indígena.

Desde os estudos das Mitológicas de Lévi-Strauss já assimilávamos que os mitos se destinam originalmente aos ouvidos como a música. Nessa sinergia implícita entre narrativa oral e escuta do receptor o narrador se assume como um ator em cena, capaz de produzir – tomado pela musicalidade do vocal – a corporeidade performática de uma gramática dos gestos.

Narrar é fazer pensar e fazer sentir que o passado não morreu, muito embora a narração ritualize e reelabore esse mesmo passado. E, à semelhança dos narradores indígenas, as narrativas dos flanêurs (dos caminhantes em tempo livre) transformam o tempo tedioso e ocioso em tempo criativo, tempo do artista e do poeta.

Evidentemente a cultura indígena não conheceu o tempo tedioso que marcou o mercantilismo dos séculos XV à XVII, bem como a consolidação do capitalismo industrial, no século XIX, mas foi vítima de suas diversas fases de dominação econômica que marcaram o colonialismo europeu. Talvez uma aproximação imaginária com o flanêur de Baudelaire, descrita por Benjamin, servisse aqui de analogia ao tempo das narrativas míticas indígenas como tempos similares que ecoam elementos universais da poesia, da errância e dos artistas andarilhos. Recorremos da analogia, inapropriada para muitos, pela aproximação e alargamento dos sentidos de que ela propicia, acentuando o caráter mitopoético dos elementos narrativos.

Mãe e filho: Moronguetá

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Nos dias atuais tem sido flagrante uma revitalização dos estudos da oralidade, da literatura oral, mesmo do sentido de uma mitopoética e questões da literatura comparada. Mas a questão da oralidade e a desqualificação do oral em nome do escrito que ainda impregnou o conceito moderno de literatura teve uma consequência terrível e que para nosso ensaio interessa destacar, que é o corte radical entre razão e mito, entre filosofia e estética, entre lógica e arte. O conceito de literatura que valoriza apenas o escrito é descendente direto do otimismo das luzes, do Iluminismo, do movimento intelectual que desqualificou tudo aquilo que possa aparentar-se ao mito, ao sobrenatural, às crendices e a religião.

Desde o século XIX priorizamos o escrito e nos colocamos diante da dificuldade de pensar sua interface com o oral e suas imagens poéticas. Atualmente, não raras vezes temos a impressão do mundo da escritura – agora menos hegemônico no século XXI – está fadado à rupturas e aberturas inventivas em que recolocam os sentidos do oral e das imagens mitopoéticas em pleno campo da legitimidade e da identidade literária.

Talvez essa supressão – ou obliteração – do oral seja mais impactante para nós pesquisadores das ciências humanas na Amazônia, em especial da antropologia indígena e da literatura comparada, pelo fato da tradição oral ainda ser bastante forte com as tradições de narrativas dos mitos e das lendas que marcam o cotidiano social de muitas localidades na Amazônia. A oralidade do narrador dos mitos executa performaticamente uma unidade entre a entonação vocal e gestualidade corporal. Sobre esse aspecto Barthes (1988, p.65-66) acrescenta:

A escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse obliquo onde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pelo corpo que escreve […] produz-se um desligamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. Entretanto, o sentimento desse fenômeno tem sido variável; nas sociedades etnográficas, a narrativa nunca é assumida por uma pessoa, mas por um mediador, xamã ou recitante, de quem, a rigor, se pode admirar a performance.

A importância dos estudos de oralidade hoje vem denunciar certa mitologia da escritura, onde o impresso tem por tradição da modernidade a pretensão de conter a quinta essência da obra, justificando a presença por vezes ortodoxa de todos os formalismos e estruturalismos contidos na teoria literária. E o caráter literário, ou seja, a transformação disso em texto escrito deve exumar todos os ranços que fizeram no passado alusão ao oral. O oral seria aquilo que deveria ser subtraído, preterido pela escritura. Não é menos verdade que o domínio do escrito impede que compreendamos a tensão que sempre habita tal relação.

Estamos vivendo num cenário duplamente profícuo para a cultura científica em geral e em especial para cultura das humanidades, visto que alguns setores cognitivos têm se revelado mais abertos ao diálogo, deixando de lado antigos preconceitos e velhas rivalidades, sem que pereçam as tensões necessárias que sempre propiciaram a dinâmica de circulação e inventividade dos saberes. O caráter epistêmico das ciências – mesmo o das chamadas ciências duras – tem manifestado uma crescente dimensão estética, enquanto o caráter estético das artes e da literatura tem atingido pari passu um status formador de novas racionalidades. Filosofia e arte, antropologia e literatura tem sido algumas dessas áreas que, em parceria, vem produzindo um universo de novas percepções encantatórias para uma melhor compreensão da natureza e cultura, que lança os sentidos e o entendimento para além do habitual e nos retira, inadvertidamente, de nossa zona de conforto.

É nessa ambiência ao mesmo tempo epistêmica e estética que situamos uma das principais obras do etnólogo Nunes Pereira, o seu Moronguêta, um decameron indígena (1980). Nesse trabalho de fôlego que é resultado de mais de quarenta anos de densa etnografia com diferentes culturas tribais do norte da Amazônia fundem-se, de um lado, os resquícios da fria e abstrata ciência positivista, ainda emoldurada na promessa redentora do mundo e, de outro, a “experiência do concreto” que adquiriu no longo convívio com a sensibilidade indígena por meio de seus mitos, seus ritos e suas crenças, tão despretensiosa em sua busca pela verdade, ao mesmo tempo em que marcadamente apaixonada pela busca de sentido.

A formação de intelectual, humanista e indigenista de Nunes Pereira já anunciava essa aproximação – e até cumplicidade – entre ciência e arte, entre narração poética e escuta atenta, escuta qualificada. Embora veterinário de formação, bebeu nas fontes da literatura, da filosofia e das ciências humanas. Estudou com paixão a zoologia e botânica, fazendo implodir as fronteiras que separavam, tão radicalmente, humanidade de animalidade, de onde os mitos foram tributários dessa conquista. Fez dos relatos de naturalistas um mapa e um receituário idílico para suas viagens e expedições aos rincões da Amazônia no contato com diversas etnias locais, chegando a realizar seus insights mais audaciosos nos estudos do etnoconhecimento, que resultaria em sua vocação de etnólogo visionário. Sua vivência de andarilho-pesquisador oferece todo sentido a uma das máximas imortalizadas de Paul Ricouer (2010), quando sugere que necessitamos cada vez mais do olhar do geógrafo, do espírito do viajante e da criação do romancista.

À semelhança de sua formação, híbrida e sempre sujeita a um pensamento nômade e mestiço, a raiz do nome moronguêtá (conversa, conversação) repousa em diferentes aproximações sonoras, em um farto leque de significações poéticas que justificam sua polissemia. Mas não se trata de uma conversa qualquer, de um relato qualquer, senão um diálogo belo, cheio de curiosidade, mistério, lascívia e surpresas, movido por palpitações que oscilam entre a excitação e a aterrorização, acabando por vezes num misto de derrisão e pânico. No fundo o moronguêtá (numa versão aproximada do termo porandura) constitui-se numa conversa agradável que justifica o sentido de contar e narrar com prazer e para o prazer de um público seletivo e receptivo, pois seduz o espectador por meio de uma poética da escuta e do qual o narrador-ator tem o poder encantatório de despertar-lhe a atenção, clamar seus sentidos, auscultar suas palpitações mais latentes, à medida que também agrega em sua fala-corpo elementos de profunda ambivalência estética que dão coloração singular a sua poética.

Singularidade cênica, escuta-recepção e teatralidade performática compõem alguns elementos imprescindíveis dessa poética. Walter Benjamin chegou a destacar esse aspecto que, diferentemente da informação, a narração não se preocupa em transmitir o puro em si do acontecimento, já que é incorporado na própria vida daquele que conta, para comunicar, em seguida, como sua própria experiência àquele que escuta. Benjamin (1994, p. 205) conclui que “assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”. Tudo isso nos levava a pensar na interdependência entre arte e ciência, teatro e antropologia. Questões já sinalizadas pelo pioneirismo de Nunes Pereira e mesmo Kock-Grünberg, como veremos mais abaixo.

Certamente que um dos momentos mais expressivos e conceituais para se pensar o surgimento da Antropologia da Performance ocorre nos anos de 1960 e 1970, quando Richard Schechner, um diretor de teatro virando antropólogo, faz a sua aprendizagem antropológica com Victor Turner, um antropólogo que, na sua relação com Schechner, torna-se aprendiz do teatro. Mas reiteramos que as pesquisas empíricas de Nunes Pereira e Kock-Grünberg já antecipavam tais questões latentes na antropologia indígena que tais estudos etnográficos nos fizeram entrever.

Para Nunes Pereira os povos da Amazônia são mitômanos. E, num certo sentido, ele próprio também o foi como sugerimos acima pela forma como os mitos o atraiam e como ele facilitava – no processo de coleta e deleite – sua ampla audiência performática.

Kock-Grünberg (1872-1924), etnólogo alemão, já atentara, décadas antes, para um aspecto que seria caro aos estudos de uma Antropologia da Performance nos dias de hoje, isto é, o aspecto artístico das narrativas por meio de pantomimas que interagem e se fundem com as palavras do narrador. Nesses estudos performáticos da antropologia indígena sabe-se, por exemplo, que há um sem-número de fonemas que só são utilizados na narrativa oral do mito.

Alguns índios têm um grande talento natural para atores. Um conta, os outros executam atentamente. A viva modulação da voz é preciosa e se adapta a todas as fazes do relato. Os ouvintes acompanham com risos semi-reprimidos e curtas interrupções. Paulatinamente, a voz do narrador vai aumentando e crescendo até chegar ao falsete. Dá um pulo e se incorpora, articulando braços e pernas. Os ouvintes escutam, mudos e tensos. Aí, num golpe teatral, a voz do narrador se corta de repente. Por um instante, reina o silêncio, depois uma estrondosa gargalhada. Os ouvintes cospem várias vezes de tanto prazer. Também é muito grande o talento imitativo dos índios, que arremedam os velhos e o padre da missa. Quando o texto se torna comovedor, o narrador fica de pé, pálido e trêmulo, com a voz entrecortada pela excitação. É maravilhoso ouvir e ver seus contos e mitos. (KOCK-GRÜNBERG, 1979/1982)

Nunes Pereira não dedicou exclusiva atenção a esses aspectos da narrativa performática – a ponto de não discorrer uma análise mais cuidadosa em seus apontamentos de campo –, embora sua percepção etnográfica tenha sido bastante afetada por ela revelando o resultado de uma escritura mais sensível e imbricada pelos efeitos estéticos que o teor científico de seus textos conseguiria registrar. A performatização não constituiu um objeto de problematização teórica, em vez disso, muitos pesquisadores foram tomados pela estilização performática do narrador. As artimanhas da sedução implicam em simulacros e o etnógrafo pretendendo dissecar as narrativas em sua totalidade é assimetricamente dissolvido por elas. Aliás, esse efeito é amplamente reconhecido pelo pensamento de Lévi-Strauss para quem as narrativas mitológicas têm o papel de dissolver o homem e não o restituir de sentido antropocêntrico.

Esse efeito “hipnótico” da teatralização narrativa atua naquele que vê e escuta possibilitando sua condição de ator. A recepção está ali representada, retirando a condição de passividade do expectador. O que era simples função da audição é transformado em arte de auscultar, transformando o expectador em protagonista de sua existência. Essa escuta superlativa potencializa os outros sentidos, ampliando o campo de visão e compreensão das coisas.

Zumthor (2010, p. 257-258), destaca o papel privilegiado do receptor como coparticipante da ação performática na poesia oral:

Gosto e voz do intérprete estimulam no ouvinte uma réplica da voz e do gesto, mimética e, devido a limitações convencionais, retardada ou reprimida […] as marcas que esta recriação imprime nele [ouvinte] pertencem a sua vida íntima e não se exteriorizam necessária e imediatamente. Mas pode ocorrer que elas se exteriorizem em nova performance: o ouvinte torna-se por seu turno intérprete, e, em sua boca, em seu gesto, o poema se modifica de forma, quem sabe, radical. É assim, em parte, que se enriquecem e se transformam as tradições. 

Isso mostra que a relação da fala e da escuta qualificada, consolidada pela análise psicanalítica de Freud e Lacan, já se fazia presente nas mais arcaicas culturas e nas pesquisas antropológicas nas quais a condição de analista e analisando aconteciam de forma invertida. Patrick Wilcken (2011), em estudo biográfico, destaca em alguns textos de Lévi-Strauss a relação antropologia e psicanálise, feitiçaria e terapia. Toma o exemplo de Quezalid, informante de Franz Boas, indígena cético que deseja desmascarar os elementos sobrenaturais contidos no xamanismo e que acaba se tornando um importante xamã. O contato com os mitos desperta em nós efeitos literários de nossa própria história como se fossem nossa própria aventura mitológica. Diz Wilcken (2011, p. 179):

Baseados nos mesmos elementos, a cura xamânica era, na verdade, uma perfeita inversão da psicanálise: enquanto o analista escuta, é o xamã que fala. Guiado pelo analista, o paciente elabora o seu próprio mito pessoal […] o xamã, por outro lado, declama um mito social igualmente protocolar […] a tese de Lévi-Strauss era que as técnicas modernas não passavam de reelaborações de idéias que estão conosco desde os primórdios dos tempos. Quando a Europa ainda acorrentava seus loucos, os xamãs das sociedades “primitivas” já estavam tratando os pacientes no metafórico divã dos psicanalistas.

Em face dessa sinergia, Nunes Pereira passou a coletar mitos como quem colhe frutos e flores num pomar, num bosque ou num quintal particular, tendo a sabedoria de distinguir qual o fruto retira do ramo e qual o fruto espera cair, em respeito ao tempo inumano da natureza; espreitar e sentir quais flores suavizavam seu aroma ainda que dissimulassem seus espinhos. Sabia esperar o tempo certo da colheita que sempre acabava por se dispor em acolhida e compartilhamento estético. Uma jornada de inquieta busca que muitas vezes resultava em desapegos conceituais da tradição científica funcionalista e positivista, possibilitando a ele novas ressignificações no pioneirismo de seu trabalho de campo.

O contato narrativo dos mitos lhe valeu um dom de desantropomorfosear o tempo, em tempo não humano, tempo das coisas e dos seres viventes. Aos poucos e sem mistérios os frutos míticos e as flores narradas revelavam-se sem epifanias e eufemismos, simples como ouvir a voz do silêncio. Mesmo assim, entendemos implicar – mais que uma ciência da voz – numa poética dos sentidos, à luz da gramática e retórica do gesto nos narradores indígenas.

Naquele que observa o gesto, a decodificação implica fundamentalmente a visão, mas também, em medida variável, o ouvido, o olfato, o tato e uma percepção cenestésica […] poderíamos, com prudência, de modo voluntariamente aproximativo, evocar uma gramática ou, mais justamente, uma retórica do gesto, mantendo ou superando a da palavra. (ZUMTHOR: 2001, p. 243).

O que seria para alguns a marca da contradição e anacronismo nos procedimentos metodológicos – e até teóricos – a pesquisa de Nunes Pereira, nos remete, pelo contrário, a feitura de um trabalho etnográfico e etnológico coimplicado na tessitura entre o sentido de vivência de que tratam as narrativas míticas e o rigor da objetividade científica em dissecá-las. Dar mobilidade e visibilidade a essas duas ações em conjunto sem cair na dupla armadilha iminente, ora da uniformidade, ora da disjunção constitui um desafio a se pensar ainda hoje, ciosos em compreender a mágica atuação do maestro, da partitura e sua orquestra.

Moronguetá: indígenas fazendo fogo

Tal questão por si só coloca nossa investigação num plano de análise específico, pois lança o olhar a uma confluência criativa e coparticipativa entre o rigor e a sensibilidade e, mais particularmente, entre racionalidade e imaginação. Não podemos ignorar o aspecto que é peculiar ao sentido kantiano de que a imaginação criadora persuade a razão e a leva a pensar para além do imperativo da lógica dos conceitos, ampliando sua compreensão por meio do horizonte estético, satisfatório ao surgimento profícuo de uma “lógica das ambivalências” do qual o mito se retroalimenta. O Moronguêtá nos conduz a vislumbrar uma manifestação alternativa e criativa na arte de narrar à medida que nos instiga a repensar e superar uma antiga dívida do pensamento conceitual com a sensibilidade e tradição mitopoética.

Essa dívida de herança conceitual e que se consolidou com a modernidade desprezou a “lógica da ambiguidade” de que é tecido pela vivência e herança do imaginário mitopoético, que deseja valorizar a teatralidade performática contida na ambiência narrativa do qual se fundem natureza e cultura, tradição e inovação, individual e coletivo.

Ao misturar os tempos por meio de uma lógica reversível os mitos foram tomados como narrativas confusas. Os mitos organizam-se em torno de uma metalinguagem sem linearidade, o que fez alguns estudiosos confinarem-nos sob o signo de um pensamento pré-lógico. Outros, pelos mesmos motivos, viam nos mitos um total desapego às regras no momento de sua narração, o que também parece exagerado. Essa “negligência” às regras rendeu-lhe um estereótipo que aprisionou sua imagem ao reino do anacronismo e da contradição.

Certamente as regras que estão em jogo não são as mesmas. A narração das alegorias pressupõe alguns aspectos que o exímio narrador indígena não pode ignorar caso contrário sua performance estaria fadada ao fracasso. Talvez o termo “regra” já constitua um estigma decorrente da sociedade capitalista e burocrática que estamos inseridos. Mesmo assim, rótulos à parte, encontramos elementos recorrentes na postura artística do narrador que acabam por situá-los em preceitos imprescindíveis para o êxito de sua performance: entonação, gestos, recurso a onomatopeia, imitação de diversos sons da natureza, transfiguração de personagens etc. Ao imprimir esses elementos na dinâmica da narrativa o narrador faz uso de uma poética que lhe é peculiar e do qual aprendeu por imitação.

O etnógrafo europeu, acostumado ao universo de fábulas e contos medievais defronta-se com as narrativas indígenas e as interliga a um contexto comum das sociedades pré-modernas. Essa associação – por vezes inconscientes – mistura os gêneros de narrativa, levando muitos pesquisadores alternarem o sentido que imprimiam à elocução, ora tratando de contos, lendas, ora de fábulas e mitos. Talvez esse lapso se ligue ao fato de reconhecerem em todas essas formas o signo comum do oral, do pré-científico e do pré-histórico.

O mito é o nada que é tudo como preconizou poeticamente Fernando Pessoa, não constituindo condição de autoria e realiza-se na mediação de todos e de ninguém. Evitando o sentido de autoria da poesia oral Zumthor prefere comungar com a ideia de “reserva de domínio”, por não implicar em posse direta ou etnopirataria de determinados conteúdos de caráter etnocognitivos e estéticos como o são os mitos. Diz Zumthor (2010, p. 236) que “em toda prática da poesia oral, o papel do executante conta mais que o do compositor”.

Com a sensibilidade atenta aos procedimentos durante a coleta das narrativas Nunes Pereira parece pretender recolocar no lugar o papel da tensão entre escritura e oralidade – cada vez que ocorria o momento poético da captura do oral – sem colocar em relevo e em letras douradas o registro do texto como mero apanágio da erudição, da verdade objetiva e da idade de esclarecimento de que a razão anseia despontar em seu reino solipsista, destacando-se como resultante de uma mnemotécnica redentora e impiedosa.

Um duplo risco se anuncia, de um lado, o reducionismo, ilusão e ineficácia do escrito em capturar apenas as palavras, negligenciando os gestos, as agitações milimétricas do corpo, as palpitações dos órgãos vitais e os sussurros que pontificam a ação artística de quem narra em sua versatilidade teatral; de outro, colocando em questão, ainda que sutilmente, certa ingenuidade que perdura ainda hoje de que só pela escrita preservamos a tradição das culturas orais, ainda mais quando ignoramos o fato de que ela (a escrita) é também desencadeadora do desinteresse premente pela memória oral e a negligência do importante papel que ainda cumpre a oralidade.

Nós ouvíamos sem interromper, o narrador, a quem pedíamos que falasse lentamente, porque íamos anotando – se ele falava em língua geral – as frases ou vocábulos mais expressivos. Não dispondo de um gravador, lamentávamos a impossibilidade de fixar certas vozes, gritos, assovios, dos personagens das lendas ou das estórias, fossem eles animais ou seres humanos. E lamentávamos mais não nos ser dado reter as diferentes mímicas, na contração dos lábios, no semicerrar as pálpebras. (PEREIRA, 1980, p. 52)

A partir de uma percepção que entendemos ser de caráter dialógico pudemos pensar as narrativas míticas coletadas e apresentadas por Nunes Pereira como atividades propriamente mitopoéticas, à medida que se fundam e se performatizam na poiésis como dimensão da atividade criadora, no sentido de que a arte não revela a realidade, mas a reinventa. O real é transfigurado em irrealidade inventiva do cotidiano. Essa reinvenção faz dos mitos e seus narradores elementos indispensáveis a uma espécie de teatralização da existência.

O caráter dialógico implica, num só plano, oposição e complementaridade, permitindo com que os elementos dissonantes e por vezes disjuntivos possam se fazer presentes e valorizados sem que tenhamos que relegá-los ao status de natureza dicotomizante de suas contribuições. Outro aspecto aqui assinalado está no fato da dialogia evitar o caráter hierarquizante que habitualmente atribuímos a determinados saberes, enclausurando alguns conceitos em exclusivas áreas cognitivas e ainda privilegiando umas em detrimento de outras. Razão também que preferimos evitar o termo dialética visto que não se trata de elaborar – à luz das contradições – o apaziguamento das tensões e numa zona de conforto que pretende a reconciliação operatória por meio da síntese.

Esse é outro aspecto porque privilegiamos as compilações etnográficas de Nunes Pereira como etnopoesias, pelo qual nos propiciaram maior percepção para um vasto campo de estilo dialógico ali presente. Por vezes essa dialogia surge mais subliminar e aparece sub-repticiamente no jogo de oposição complementar entre mito e razão, prosa e verso. Não demora a intuição poética florescer à luz do elemento corporal inserido face à elocução dos narradores. A compilação das narrativas orais também que a escritura de Nunes Pereira se configurasse em estilo mais ensaístico, mais livre de amarras, num híbrido de prosa e verso. O mesmo se percebe nas transcrições míticas num movimento quase aforístico que a herança oral-musical nos faz intuir.

Outros pesquisadores do porte de Stradelli e Kock Grünberg mantiveram seus estilos mais fincados no universo prosaico da escrita e da própria compreensão dos mitos, mesmo assim abriram caminho para novos estudos. Em Nunes Pereira – assim cremos – a transcrição dos mitos não impediria uma formatação impressa mais próxima da intuição poética do qual as narrativas por meio de sua tentação literária nos inspiram.

Por todas essas razões é que temos preferido denominar tais experiências narrativas de etnopoesias, por coimplicarem de forma dialógica o trabalho de cunho antropológico e poético. Tal encontro permite traçar uma rica via de comunicação e intercambialidade tornando visível a intercessão entre áreas do saber aparentemente distintas e rivais. Nesse plano de análise, a etnopoesia configura-se como uma espécie de istmo extremamente fecundo que, em vez de dividir e inibir por razões inóspitas acaba por integrar e estimular a convivência de polos desiguais como se já fosse destinada a hibridização poética; no lugar de implantar um deserto inerte, inútil à criação e ainda marcado pela incapacidade da coexistência de seres, pensamentos e afetações plurais resultaria fertilizando o inventivo, o desconhecido que está subliminarmente colocado na relação.

A imagem metafórica do istmo é plenamente importante para recompormos a ideia entre o particular e o geral – à semelhança do princípio hologramático – que não quer apenas valorizar o continente em detrimento da península, nem a chegada, em detrimento da travessia.  Na mesma proporção, Glissant (2005, p. 53-54) chama atenção para relação entre pensamento-continental e pensamento-arquipélago. O primeiro apela à totalidade, a abrangência, ao absoluto, ignorando o que flui por fora da órbita do sistema; o segundo, mais atento as singularidades das culturas, integra a intuição poética, as demandas imaginárias de que o mundo é tão carente. Enquanto o “continental” organiza-se sob o signo da escrita e da erudição o “arquipélago” atua em sintonia com as tensões que resultam da oralidade-escritura.

Já o significado dicionarizado não coloca a questão tal como a preferimos, pois se refere ao istmo apenas como uma estreita (quase insignificante) faixa de terra que separa a península de um continente. A percepção metafórica, pelo contrário, serve mais aos nossos propósitos já que valoriza a relação por meio do interligamento criativo, não hierarquiza os polos entre menor e maior, melhor e pior, particular e geral, vendo nisso um télos aristotélico que almeja sempre a trajetória virtuosa de um Bem. Na metáfora o istmo deixa de ser um mero espaço de passagem, de transitoriedade, de deserto árido e infértil para glorificar uma poética do encontro, da relação, da diversidade. O istmo glorifica aqui a importância de uma lógica do “terceiro incluído”, que interliga sentidos lógicos opostos.

A partir disso tudo é que nos permitimos tecer os elementos dispersos na mitopoética do Moronguetá em uma poética da relação e da diversidade, destacando analogias profundas que resultaria – no estudo ao qual nos propusemos aqui – na investigação entre artes verbais indígenas na Amazônia, literatura e etnologia. E, talvez, o grande mérito dessa dialogia tenha sido o fato de ampliar nossa compreensão de poesia e de diversificar nosso entendimento acerca da etnologia. Uma das grandes vantagens de evitar as distâncias e as hostilidades cognitivo-disjuntivas, nesse caso, é combater um forte “genocídio cultural” (ROTENBERG, 2006) de que fora confinado determinados saberes tradicionais, justificando ainda mais o divórcio que sempre marcou a relação entre cultura da escrita e cultura oral.

Entendemos não ser o bastante reafirmar o mito como linguagem inaugural, mesmo que se encontrem nessa forma de linguagem os traços fundadores de uma memória arquetípica da humanidade. Entendemos que essa visão essencialista do mito o colocou num plano de análise de transcendência teórica e de compreensão hermética, restrita ao universo dos especialistas, ora minimizando o caráter corporal, histriônico e mimético dos grandes e pequenos gestos dramatizados pela narrativa que compõe toda a estilística de um narrador, negligenciando por completo a atuação poética de uma espécie de ator em cena.

A visão essencialista do mito aprisionou suas análises apenas no horizonte da palavra imemorial, palavra proferida, palavra encantada, fazendo a palavra em si um apanágio à verdade, ainda que esta verdade não seja comparável ao trabalho da empiria científica de que estamos habituados. A tradição essencialista, no entanto, viu na sacralização da palavra um porto seguro à visão explicativa que o mito comporta, esquecendo os elementos que compõem a narração e sua narratividade poética.

A sacralização da palavra, intuída ontologicamente, serviria de ascese ao caminho mais profundo do Ser, do qual a palavra em seu claustro teleológico pretende possuir e alcançar, como reino do inteligível e do imutável. Tomar apenas a palavra como ponto assente e imperativo do aspecto narrativo do mito é lançá-la num imobilismo e confinar a poesia numa espécie de sedentarismo redentor de que a voz nômade do narrador pretende enunciar, desterritorializando palavra e corpo num estilo performático. Aos poucos, aquilo que se presumiria numa poética da voz, suplantada por meio de uma poética da palavra, acabaria dando lugar a uma poética dos sentidos, imprimindo as marcas de sua ação teatral em sinergia com a poesia gestual que confere sua individualidade a cada performance verbal-corporal. Nesse aspecto, Rothenberg (2006, p.38) nos acrescenta importante contribuição:

A grande questão, da qual eu estava imediatamente consciente em ambas as poesias, era como lidar com aqueles elementos nas obras originais que não eram literalmente traduzíveis. Como no caso da maioria da poesia índia, a voz carregava muitos sons que não eram, no sentido exato, “palavras”. Estes sons tendiam a desaparecer ou a ser atenuados na tradução, como se realmente não estivessem lá. Mas eles estavam lá e eram pelo menos tão importantes quanto as próprias palavras.

Por essa razão que o narrador não legitima a performance apenas quando enuncia a palavra e nem os efeitos teatrais se resumem na presença exclusiva do narrador em cena. A cenografia e a etnocenologia espera algo mais auspicioso do mito, sua ambiência e seu narrador. Pretendeu ampliar tal discussão Paes Loureiro (2007, p.147):

O espaço mítico é sempre construído cenicamente, isto é, em função da ação narrada. Um espaço em separado delimitado pela ação cênica virtual do mito. Um palco. É, portanto, um espaço construído dentro das exigências cênicas funcionais da ação. Como no teatro é um espaço no qual o espectador se inclui em uma participação contemplativa, como ocorre na experiência estética e no sonho. Assiste-se a uma encanação de acontecimentos para os quais a “cenarização” é parte constitutiva e expressiva da ação. Cada elemento do cenário mítico é simbólico. Constitui parte da linguagem cênica do mito, de sua eficácia expressiva.

Cocar: Moronguetá

A recitação como recriação designa o estilo em forma de movimentos irrepetíveis que cada narrador incorpora como técnica de atuação teatral, o que o faz – num só ato poético – mobilizar a herança da tradição com a engenhosidade da inovação. Isto é, num só plano compor os elementos que fundem os limites do individual e do coletivo. A poesia desses narradores da selva trouxe à lume a compreensão da Amazônia como um espaço estético privilegiado à semelhança de um grande anfiteatro no qual natureza e cultura protagonizam a vida em suas plumagens policrômicas e suas vozes polifônicas.

Mesmo visto como guardião de uma memória coletiva ancestral o valor do mito, ainda assim, não se limita apenas ao caráter documental, visto pelo ângulo de sua amplitude estética. É preciso atribuir a isso o caráter inventivo da narrativa, seus efeitos corporais, seus elementos poéticos, fundada na categoria de performance e poesia oral que nos tem emprestado Paul Zumthor em suas últimas obras dedicadas a uma ciência da voz, do nomadismo e da oralidade.

A dialogia e o entrecruzamento da etnografia do Moronguêtá com o pensamento de Zumthor nos permitiu, aqui, uma ampliação nas discussões que envolvem o ato narrativo enquanto ato performativo. O mito narrado performaticamente deve ser pensado como procedimento poético de uma arte verbal que envolve mais que um simples espetáculo de exuberância e exotismo natural, mas a plena teatralização da voz e do corpo, somados a recepção de um público e de um espaço apropriado a sua audiência, do qual lhe atribui sentido e significado estético. A mitocriação como forma de espetáculo.

A obra Moronguêtá talvez seja um registro atento e sensível de uma poética da relação que já estava implícita desde a lógica da conquista das Américas. A etnologia e a literatura anunciavam timidamente esses contatos. Nunes Pereira não fora o primeiro e certamente se espelhou em trabalhos que destacavam as narrativas poéticas do confronto de outros continentes.

Isso fica evidente quando descreve o insight da obra e que resultou desde a definição do título, reconhecendo uma analogia anterior a sua, de Leo Frobenius (1873 – 1938), antropólogo e africanista que escreveu o livro Der Schwarze Dekameron, que se trata de narrativas de povos africanos, em que pesquisou entre 1904-1935, realizando doze grandes expedições na África Ocidental. E como observou Nunes Pereira (1980, p.52), “com uma gesticulação complementar e elucidativa, libidinosa ou obscena, na sucessão de fatos reais ou de lances imaginários, tudo aquilo fazia parte da narrativa e, mais do que isso, do estilo do narrador”.

Por essa razão e, seguindo alguns modelos estéticos deixados pelo pioneirismo de Frobenius, faz de Bahira e Macunaíma – só para citar alguns – a personificação de anti-heróis que já pontificavam uma posição de destaque ao aproximarem-se dos personagens burlões e zombeteiros da literatura medieval e renascentista. Das homologias entre Bocaccio e Frobenius, Nunes Pereira aproxima ainda mais sua poética da relação, interligando vozes advindas da Europa, África e América. Thiago de Mello (PEREIRA, 1980), na apresentação da quarta capa da obra de Nunes, descreve esse entrelaçamento estético:

Moronguêtá, um Decameron Indígena. Como o florentino Boccaccio, obra-prima do século XIV, este é um livro romântico, heróico, sarcástico, burlesco, lírico e obsceno. Moronguêtá: o dom da poesia, a riqueza erótica, a força da imaginação, trabalhados com ciência e amor por quem hoje melhor conhece os habitantes animais e vegetais, aquáticos e terrestres do Amazonas, imenso e sofrido pedaço verde do mundo.

A saga de personagens embusteiros, espertalhões, astuciosos lembra as histórias heroicas de cavaleiros errantes, de trovadores itinerantes da poesia oral entre os séculos XII e XIII medieval. As aventuras de amor erótico, obscenidade, lascívia ganham a forma de um perspectivismo nas mitologias afroameríndias, onde a proeza das personagens se confunde com encantamentos e forças mágicas. Nesses episódios híbridos de grotesco-sublime não há diferença, nem hierarquia entre a ontologia do mundo humano e do mundo animal e vegetal, o que torna possível repensar as fronteiras entre cultura e natureza. Para Nunes Pereira (1980, p.12):

O mesmo conteúdo romântico, heroico, erótico, fescenino, grotesco, escabroso, obsceno que Bocaccio também encontrou entre as composições dos trouvères e conteurs gauleses dos séculos XII e XIII e entre as suas recordações de poeta e cortesão, versado na mitologia grega e nas intrigas amorosas e mexericos de Florença.

A literatura em geral e a literatura amazônica em particular viveu sua fase de colonização à medida que rejeitou toda a aproximação com manifestações da oralidade primária, que por vezes lembravam a tradição com culturas autóctones mantendo ainda o vigor de suas poéticas na função narrativa e performativa da palavra falada.

Nos dias de hoje a literatura vem assumindo – ainda timidamente – a tarefa de reconfigurar as pluralidades identitárias, resgatando as tensões entre oralidade e escritura que os séculos de colonialismo, por manterem-se ainda coesos com a modernidade quanto ao aspecto do oral, só ajudaram a encobrir e ofuscar tais tensões, confinando-as ao silêncio.

Ao resgatar esse momento de origem da literatura amazônica não apenas corrigiríamos as injustiças e injunções em que operou o deslocamento por meio da primazia do escrito, como também buscaríamos corporificar estilos de narratividade, marcados pela divisão radical entre a tradição e a modernidade.

Uma das formas de revitalização desses estilos literários pode ser reconfigurada à semelhança dos modelos estudados no Moronguetá, por acreditar ter capturado com a sensibilidade de um esteta a autoridade e performance inventiva dos narradores indígenas, assumindo a intervenção do conteúdo narrado pela tradição sem deixar de assumir o fio condutor dessa mesma narrativa como elemento inovador, que se abre as múltiplas possibilidades do sentir e existir. Tal perspectiva encontra sua vertente estrutural dialógica na encenação do espetáculo que toma como sujeitos o próprio narrador-receptor e o conjunto performativo de sua criação e seu público, formando um eficaz modelo hologramático em que interagem unidade e diversidade.

Temos apresentado as pesquisas etnográficas Nunes Pereira em especial por duas razões que são aqui corroboradas com o auxílio da análise estrutural de Lévi-Strauss em sua tetralogia. Primeiro por entender que alguns mitos constituem estilos literários (LÉVI-STRAUSS: 2006, p. 11) pela forma como as narrativas se estruturam, ganhando uma sequência episódica da peripécia de seus personagens e heróis, sem, contudo, aspirarem a uniformidade e a um plano mais formal a que estamos habituados nos conteúdos tradicionais de um romance; segundo por permitirem uma ampla coleta de material que abrange uma diversidade de etnias, alcançando uma amplitude geográfica e uma generalização para fins de coerência e utilidade no processo comparativo dos mitos (LÉVI-STRAUSS: 2006, p. 81).

A literatura oral que advém por meio das narrativas míticas, em especial àquelas descritas na etnografia de Nunes Pereira, no seu Moronguêtá e Bahira e suas Experiências, parece investir contra o processo de colonização cultural à medida que revela a presença de uma tensão onisciente e onipresente entre oralidade e escrita, outrora deslocadas para as margens. O trato mais sensível na coleta das narrativas revela, por Nunes Pereira, um hiato que fora – no passado – esquecido ou sequer pensado pelos cânones da literatura, bem como negligenciado pelas pesquisas antropológicas no que concerne às poéticas de contato e poéticas da diversidade.

Quando transportada para o universo da escritura em suas compilações minuciosas e cercado de tradutores indígenas, Nunes Pereira parece dar forma a um tipo de narrador que se encontra num ponto de confluência entre dois mundos aparentemente distintos, redefinindo sua etnografia no âmbito da literatura e conduzindo suas investidas naquilo a que estamos chamando de mitopoético.

Tanto no Moronguêtá como em Bahira pudemos enfatizar a predominância da oralidade num universo já demarcado pela captura do escrito, mas que a voz, os gestos e os diferentes sons ainda escapam ilesos. E, mais que isso, são esses elementos que fazem pensar o escrito e não o inverso como muitos pretendiam e ainda pretendem.

Apesar do impacto que a cultura letrada acarretou a captura das narrativas orais indígenas, a tradição da oralidade continua pungente em sua força e expressividade. No sentido de uma oralidade primária, podemos advogar a ideia em que as narrativas míticas ou mitopoéticas constituem como uma espécie de matriz que acolhe e personifica o verdadeiro sentido da palavra, fazendo dessas narrativas uma espécie de intertexto para imaginação poética. Aliás, o sentido de intertextualidade cunhado e analisado por Bakhtin se encaixa precisamente nos propósitos que temos discutido ao longo da pesquisa.

Por meio dessas narrativas compiladas por Nunes Pereira no Moronguetá, podemos circunscrever seu trabalho etnográfico evocando – antecipadamente na cultura amazônica da década de 40 – certa sensibilidade poética, cuidadosamente elaborada em grau zero de tensão oralidade-escritura, e que seu trabalho quando publicado, só fez potencializar, destacando a policromia e polissemia dos elementos mítico-racionais, não mais como opostos, mas como complementares. Essa evocação do poético a que damos relevo em suas nuances de diversidade e conflito conduziu seu autor por diversas vezes ao pathos de perplexidade.

As narrativas, em seu complexo conjunto performático enaltecem um sentido propriamente literário (sem o teor pejorativo da tradição erudita moderna) ao ensaiar de forma onisciente o tratamento empregado a memória e, em especial, as múltiplas formas de “crise de pertencimento”, a que elas nos remetem. Nesses dois aspectos são as narrativas o pano de fundo para compreender as vozes enunciadoras em sua dialogia memória-esquecimento, bem como a configuração identitária dos narradores.

A memória individual só existe na mediação direta com a memória coletiva, à medida que as lembranças, recordações imaginarias e reminiscências são primeiramente construídas no interior de um determinado grupo sociocultural.

O Moronguetá faz emergir à superfície do texto questões que estão intimamente interligadas á natureza própria de uma poética do contato e da diversidade, expressa por meio de personagens como Bahira, Macunaíma, Jabuti, Poronominare e outros. A dinâmica lembrar-esquecer desses personagens do imaginário poético da Amazônia é metaforizado, por vezes, no mesmo confronto de base que dão sustentação às tensões entre memória oficial e memória subterrânea, do qual a história factual e linear sempre fez questão de dissipar. História esta que a literatura erudita durante muito tempo tomou como base para as diversas confecções formalistas e estruturais de que lhe deram embasamento.


Referências
O autor é professor da Universidade do Amazonas. Estudou Literatura e Semiótica da Cultura dando destaque às questões estéticas na Amazônia em suas narrativas ancestrais de mitocriação. Doutor em Antropologia pela PUC de São Paulo. É professor permanente do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia.
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