Paulo Vieira e a poesia da natureza

Além de ser arte, a literatura é uma ferramenta para documentar a realidade. Quando se fala da literatura produzida na Amazônia, a realidade da floresta é uma fonte inesgotável de inspiração.

O poeta Paulo Vieira, que também é engenheiro florestal, tem um olhar especial sobre a natureza da Amazônia, sua terra natal. Defensor da preservação ambiental da Floresta Amazônica, Vieira pensa a literatura a partir da vida, da diversidade biológica e humana da floresta, trazendo a literatura como mais um elemento da natureza.

Para Vieira, a literatura é responsável por dar visibilidade às questões mais importantes e relevantes da atualidade. “No caso da Amazônia, não há nada no mundo mais relevante na atualidade do que a própria Floresta Amazônica”, explica Vieira.

“Então, pensar a Amazônia pela literatura e pensar a literatura por meio da Amazônia se faz urgente, necessário e vital para a gente conseguir ter as duas coisas: ter, ainda, a Amazônia e conseguir ter, ainda, o prazer da arte e da literatura vinculada a ela”, conta o poeta.

Ouça o episódio completo da série Pensando a Amazônia pela Literatura do LatitudeCast, com participação de Paulo Vieira.

Ouça a entrevista completa no episódio do LatitudeCast:

Amazônia Latitude · Paulo Vieira e a poesia da natureza

Amazônia Latitude: Paulo, quais foram as suas inspirações, suas origens nesse percurso?

Paulo Vieira: A minha formação literária surge do não literário. Eu sou filho de agricultores familiares, neto de agricultores familiares que vieram naquele grande movimento da rodovia transamazônica na década de 1970, há tanto tempo atrás. Meus avós eram sem-terra em São Paulo e vieram para a Amazônia em busca de um pedaço de chão para trabalhar, um pedaço de chão que nunca conseguiram. Minha mãe, na adolescência, com 16 anos, me teve. E eu tive uma infância cercada pelo meu avô, pela minha avó, que eram agricultores muito afeiçoados à natureza, à terra, mas que não tinham relação nenhuma com a literatura.

A minha proximidade com a própria Engenharia Florestal e, um pouquinho depois, com a poesia e com essa literatura que eu perceberia que seria tão vinculada à natura, à natureza, à fauna, flora, água, tudo, essa minha relação veio por meio deles, dos meus avós. Duas pessoas analfabetas que me ensinaram muito da vida, mas pela palavra não escrita, por outra forma de ver o mundo. Eu passei a amar a natureza, passei a ter esse amor que eles tinham pela natureza, antes mesmo do amor de forma literária.

Grandes acidentes da vida ou não, tantos e tantos anos depois, eu vim parar aqui, no oeste do Pará, na Terra do Meio, no centro de grande parte da confusão na Amazônia, que é Altamira. Eu vim justamente me tornar professor de Literatura, mas não apenas como professor de Literatura – talvez eu seja, às vezes, mais poeta que defende a floresta e que vincula a natureza à educação, que vincula a floresta à poesia, que vincula a poesia à vida, que vincula a defesa da floresta em pé à poesia.

Talvez eu seja esse poeta mais do que o professor e às vezes mais o professor do que o poeta, mas sempre numa perspectiva de amor à natureza, que começa lá no passado, sem a literatura escrita dessa forma, e sim com a literatura oral, com a literatura do amor da família.

Amazônia Latitude: Por um lado, tem a tua formação como professor, engenheiro florestal, que, de alguma forma, estimula a tua percepção sobre os impactos ambientais e as transformações na paisagem. Por outro, tem a tua veia poética, que é despertada pela essa própria natureza amazônica. Como essas duas especialidades se interligam debaixo do pano de fundo que é Altamira?

Paulo Vieira: Em primeiro lugar, eu sou um engenheiro florestal formado pela UFRA, em Belém, Universidade Federal Rural. Tenho mestrado na UFPA [Universidade Federal do Pará], [em que] trabalhei com desenvolvimento sustentável, estudando uma comunidade que via sua floresta terminar, ao mesmo tempo que precisava muito dela para a manutenção da água, da terra, da vida. E tenho um doutoramento em Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo [USP], onde estudei os diários, a poesia e a vida de Max Martins.

Então o primeiro choque que as pessoas têm com esse perfil é “ah, então quer dizer que você era engenheiro florestal, trabalhou anos nisso, largou e foi para a literatura?”. Não. Não justamente por conta de Altamira. Altamira, pelo menos por enquanto, que eu saiba, é o único lugar do mundo onde eu posso exercer todas as minhas formações.

Porque aqui em Altamira, eu sou professor de Literatura Brasileira numa faculdade chamada Faculdade de Etnodiversidade. Eu não sou professor num curso de Letras, eu sou professor num curso de Educação do Campo, Linguagens e Códigos. Quer dizer, o meu público é um público especial, é um público que vem da floresta, são jovens filhos de agricultores, ribeirinhos, moradores nas vicinais da transamazônica de diferentes municípios espalhados pelo oeste do Pará.

Esse é o público com o qual eu trabalho a literatura, numa perspectiva completamente diferente de como se trabalha a literatura num lugar extremamente urbanizado. A literatura que eu tenho a chance de trabalhar aqui na UFPA, na Faculdade de Etnodiversidade, é uma literatura que relaciona o meio físico, o meio ambiente, a natureza, os rios, a fauna, a flora, com o texto literário.

Então, de certo modo, no passado, como engenheiro florestal, eu trabalhava com os pais desses jovens, numa perspectiva de proteger a floresta a partir de práticas agroecológicas, de uso sustentável dos produtos florestais não madeireiros. Hoje, como professor de Literatura aqui, eu continuo trabalhando com esses povos, só que não mais com os pais, e sim com os filhos e filhas desses agricultores ribeirinhos, numa perspectiva ainda de proteger e de fazer a manutenção da floresta em pé.

Usando o quê? A educação, a poesia, a prosa, como forma de mostrar a importância da floresta em pé, a importância de defender a natureza. Numa perspectiva da ecocrítica, é a ideia de usar a literatura em defesa da floresta.

Pensando para além do professor e pensando o poeta, eu termino essa explanação lendo um poema mais ou menos recente, que tem a ver com a transformação da minha própria poesia, desde que eu cheguei aqui há sete anos. O poema se chama “Duas estrelas falantes frente ao cinza do horizonte”.

Medir a envergadura não das asas desse casal de araras tagarelas,

mas do céu que elas abrem feito um parágrafo,

uma denúncia interminável.

Duas cabeças amarelas,

dois sóis,

dois deuses encarnados e azuis,

duas estrelas falantes frente ao cinza do horizonte,

o estilingue, a motosserra, o desmate,

que na tarde fulmina o habitat.

Amazônia Latitude: Paulo, de que maneira um poema como esse que você acabou de ler fortalece a identidade e a consciência socioambiental dos seus alunos?

Paulo Vieira: Para mim, essa maneira de ensinar Literatura dentro da floresta é muito nova e eu vou experimentando coisas. Talvez o instrumento mais versátil de ensinar poesia, prosa e arte na floresta, para mim, tem sido não trabalhar dentro da sala de aula. É sair da sala de aula, sair daquela caixa quadrada onde tem cadeiras enfileiradas de maneira tão militar e ir para o ambiente físico, ir para a beira dos rios, ir para as cachoeiras, ir para os bosques com grandes castanheiras.

E os meus alunos mostram uma grande alegria, uma grande disposição em tomar contato com a leitura literária fora do ambiente da sala de aula, no meio da natureza, especialmente porque eles estão dentro da Floresta Amazônica. É sensacional e, ao mesmo tempo, é surpreendente pensar que dentro da Floresta Amazônica o ensino de Ciências, de Literatura, de Língua Portuguesa, de Física, de Química, de História, de Geografia, acontece dentro de caixas de concreto que são as salas de aula. É uma coisa completamente sem sentido hoje na minha cabeça.

É nessa perspectiva, pensando a ecocrítica como um instrumento de ensino, como forma de defender a floresta ao mesmo tempo que pensa a literatura, que a minha reflexão sobre os textos literários para esses jovens é um pouco diferente do que se possa imaginar em primeira visada. A ideia de que eu vou levar um texto, um poema que fala sobre um rio para ler na beira de um rio. Vai ter um sentido formidável, vai ser fantástico, glorioso.

Mas não apenas é possível e deve-se experimentar qualquer tipo de literatura, mesmo a literatura considerada urbana. Vamos supor um conto, por exemplo, de Edyr Augusto, onde os personagens estão em Belém, na periferia, onde está rolando tráfico de drogas, prostituição, quer dizer, nada a ver com a sombra de uma árvore e um rio diretamente. Mesmo esses textos, que não são sobre a natureza, fazem muito mais sentido, porque a forma de ler em meio a esse ambiente, a essa naturalização da vida, o ser humano como leitor debaixo da árvore, não apenas usando a sombra da árvore, mas sendo árvore, com a árvore, é outra coisa, provoca sentimentos muito diferentes. A consequência disso é fantástica, tem um poder transformador na vida desses jovens.

Eu tenho experiência nos últimos anos, por exemplo, de levar leituras como Dostoiévski, “Crime e Castigo”, para dentro de reserva extrativista, para jovens de 17, 16 anos lerem, a distantes 15 horas de barco voadeira de Altamira, onde realmente você tem uma natureza ainda muito exuberante, um pouco menos agredida, com muitas onças, com muitas árvores gigantescas. E lá, entre essas árvores gigantescas, os jovens lendo a vida de Raskólnikov, o personagem de Dostoiévski, encantados e perguntando “professor, quando acabar esse romance do Dostoiévski, eu gostaria de ler outro romance do Dostoiévski, sem precisar sair de dentro da floresta”.

Amazônia Latitude: Você tem desenvolvido o projeto Poesia e Floresta já faz algum tempo, em que tem feito workshops em alguns campus, a convite de várias universidades. Como esse projeto foi gestado e a que ele se propõe?

Paulo Vieira: Poesia e Floresta nasce justamente dessa tentativa de abandonar a sala de aula sem abandonar o ensino e o aprendizado. Eu começo a realizar essas práticas, que vão além de fazer aula no ambiente externo, como também promover sarau de poesia dentro da floresta, piqueniques com leitura literária, saraus em praça pública, oficinas de criação artística sobre a natureza. Quando isso começa a tomar proporções que ultrapassam os muros da universidade, a gente sempre está tentando, metaforicamente falando, quebrar os muros da universidade e levar a literatura e a poesia para onde a universidade não alcança.

Nesse contexto todo, de repente eu me vi sendo convidado para fazer oficina de criação poética ou de leitura literária para crianças menores, porque eu trabalho com jovens universitários, adultos, que ensinam crianças. Então, de repente, eu comecei a me ver convidado a ensinar às crianças, a pensar a poesia em floresta para crianças. Isso foi algo que eu achei tocante, porque nos últimos 15 anos, eu convivo com uma criança, que agora já não é tão criança, que é meu filho Pablo. Sempre brinquei muito com poesia com ele, com literatura, teatro, música, mais ou menos como eu brinco com poesia, literatura, teatro, música, com meus alunos na universidade.

Então eu pensei “por que não?” e experimentei fazer uma oficina, “Floresta e poesia para crianças”, e deu muito certo. Depois a Embrapa Amazônia Oriental, o pesquisador Milton Kanashiro, me convidou para fazer algo maior dentro da Reserva Verde para Sempre, pelo Bom Manejo, que apoia as iniciativas de pesquisa de manejo florestal comunitário. E, de repente, eu me vi muito engenheiro florestal, e muito professor de Literatura, e muito poeta, trabalhando lá dentro da Reserva Verde para Sempre. Tem um vídeo fenomenal que vocês podem assistir no YouTube, chama Criança e Floresta, da Embrapa Amazônia Oriental.

Foi sensacional trabalhar com essas crianças. Oficina de criação de poemas, oficina de criação de pinturas, tudo dentro da floresta, tudo dentro da realidade da vida deles, dentro das águas e dentro das copas das árvores. Isso foi crescendo, isso foi sendo amadurecido.

Eu tive, depois, o convite da própria Amazônia Latitude, que a gente ainda vai fazer em Santarém. Não essa mesma, mas um pouco diferente, mas essa oficina para jovens da periferia e da região de Santarém.

Isso chega a um ponto de culminância, que é o meu projeto novo de pós-doutoramento, que devo realizar no exterior a partir de meados do ano que vem, que justamente vai trabalhar sobre resultados de atividades literárias divertidas, de aproximação divertida da literatura por jovens, lá nas comunidades onde os meus alunos estudam. Os meus alunos que aprenderam essas práticas de leitura divertida, que são professores nas comunidades deles, levaram essas práticas para os alunos deles, dentro do contexto do projeto “Da universidade à escola, práticas de leitura divertida para jovens na Amazônia”.

A ideia desse pós-doutoramento é justamente analisar os impactos disso lá dentro da floresta. A gente sabe já de antemão que tem coisas muito boas acontecendo, alunos que começaram há dois, três anos na educação do campo e hoje já conseguiram construir bibliotecas dentro da vicinal, lá no interior da floresta. Bibliotecas próprias, onde a sua comunidade, os seus filhos visitam, alunos que, não contentes com as práticas de ensino de Língua Portuguesa nas suas comunidades, passaram a usar a literatura e a levar as suas crianças, os seus alunos para a beira de rio, para o quintal da escola. Passaram a fazer piqueniques literários, passaram a fazer saraus e têm tido resultados formidáveis no incremento de crianças leitoras, na aproximação, no amor dessas crianças pela literatura, pela poesia, pela prosa e, portanto, principalmente na perspectiva da ecocrítica, o amor dessas crianças pela própria floresta a qual elas pertencem, pela própria vida.

Amazônia Latitude: Paulo, a tua poética está centrada em temas como infância, memória e, claro, a natureza, que são elementos centrais. Mas sabemos, tanto eu quanto você, que a Amazônia tem sido palco de inúmeras questões socioambientais. Como poeta e engenheiro florestal, você usa de forma eficaz a poesia para abordar e produzir sensibilidade sobre essas questões. Como a poesia pode contribuir como um elemento eficaz de maior entendimento e conscientização sobre os desafios enfrentados na região para aqueles leitores que não estão na Amazônia?

Paulo Vieira: A literatura como um todo tem a capacidade de abrir as múltiplas perspectivas de ver o mundo. É uma pergunta até bem difícil de responder, porque qual é a utilidade da poesia para o mundo, como a gente pode pensar a poesia numa perspectiva de salvamento do mundo? É um caminho intrincado, um caminho duro, difícil, porque sempre se teve e vai se ter por muito tempo, a visão da poesia como algo fofo. “Ah, é belo, está aqui um poema de amor”, “isso aqui é muito bonito”, “isso aqui pode fazer com que a pessoa fique mais sensível”.

E se mantém essa visão lá do romantismo, não se percebe que, na verdade, a poesia é ruptura, é choque, é confronto, a poesia é uma verdadeira guerra, que pode ser usada de diferentes maneiras. Aqui, a discussão é como usar essa guerra de palavras em favor da natureza, em favor da floresta, em favor da defesa da floresta. Nessa perspectiva, a poesia é um instrumento de subversão, de luta e de defesa da floresta e da vida. Assim é que eu tenho pretendido e tenho tentado empregar a poesia. Vejamos um outro poema que talvez possa lançar um pouco mais de luz sobre essa questão.

O rio com dedos de argila

acomoda raízes de gigantes

para que deslizem nas balsas,

barrancos, barcos, troncos, peixes de pequi.

Insone, nua, ela deita-se em mim.

Ela, a desconhecida de cabelos verdoengos cacheada.

Ela, o mistério da floresta.

Ela, debruçada numa luna esguia, para baixo do meio do seio.

Ardida, suada

entre faunos, faunas, floras, flonas e tiranossauros rex,

RESEX sob incêndio.

 

Amazônia Latitude: Paulo, fale um pouco da intertextualidade no processo de construção desse poema.

Paulo Vieira: Esse poema pertence a um conjunto de poemas novos, o meu mais recente conjunto de poemas. E é interessante porque, agora falando mais como poeta mesmo, nos últimos tempos aqui, eu construí uma cabana na beira do rio Xingu, então eu moro fora do centro da cidade, moro a 10 km do centro da cidade, eu e meu filho Pablo, e aqui eu moro cercado de floresta, na beira do rio. E o meu processo criativo também foi mudando como a paisagem que eu vejo no cotidiano, na vida, no dia-a-dia. Então, a vida aqui, não sei se vocês estão escutando os pássaros, os insetos, os barulhos da floresta, mas eu escuto muito, ela também me demove a novos processos de criação literária.

Um desses processos é escrever poesia caminhando. Eu gosto muito de manhã cedo, sair fazendo algumas trilhas por dentro da floresta até chegar na beira do rio. Uma caminhada muito lenta, porque eu gosto de parar diante de uma árvore, vagar na beira de um lago, refletir um pouco, tocando as cascas que acabaram de cair de uma palmeira, olhar um barulho discreto na mata, e com isso a minha caminhada nem é tão longe, mas acaba sendo bastante longa pela floresta de símbolos, como diria Charles Baudelaire, o poeta francês.

Nesse contexto, tem acontecido um processo de criação literária muito curioso, que foi espontâneo. Eu faço a caminhada, eu percebo coisas, eu vejo coisas, começo a elaborar algumas imagens, e na chegada, com uma grande garrafa de água gelada, eu, um pouco suado, fico matutando os versos, poetando por algum tempo, e por vezes nasce um poema.

Esse poema que eu acabei de ler, que é um poema sem título, nasceu dessa experimentação. Tanto esse quanto o poema Botânica, que eu vou ler para vocês agora, que também está nesse conjunto da minha nova poesia Botânica.

Queria que meu poema fosse uma aula de botânica

Versos se enroscam nas pernas inquietas dos cedros ansiosos

Letras sépalas, rimas pétalas

Raízes lambem o chão que as sementinhas pisam

Auroras pendem de estames

No pólen estamos.

Amazônia Latitude: Se você tivesse que voltar na tua escrita, aos teus primeiros textos, o que você mudaria?

Paulo Vieira: Eu vou me sair com as palavras de Borges. Quando perguntaram para o Borges o que ele pensava dele em relação ao outro que ele foi, a quem ele era, ele disse que não podia responder a isso, porque aquele que ele foi é outro, que não é mais ele. Então, eu poderia dizer que a minha poesia do passado, eu não teria a petulância de me intrometer nela, porque aquele Paulo não é mais esse aqui. E aquele Paulo, se eu conheço bem ele, não permitiria que ninguém se intrometesse naquela poesia, principalmente ele.

Mas agora, sem escapar da pergunta, acredito que poesia é processo. Eu vejo poesia como eu vejo a educação. A educação é processo. Não tem um ponto de partida, nem um ponto de chegada. Tem muita paisagem, muita beleza, muita originalidade, muita alegria e até uma ponta de felicidade para ser experimentada ao longo do percurso. Agora, de onde vem? Para onde vai? Como começa? Se começou tão bem, não tão bem, o que você mudaria? Do que você se arrepende? Parece que isso não cabe muito para a arte. Cabe mais à arte sempre inventar, criar, inventar, criar, inventar, criar, buscando o novo.

E, nesse momento, e já há muitos anos, e talvez sempre eu que não percebia, essa minha busca se liga intrinsecamente à natureza. Ela se liga à natureza como a essência da vida, como a própria soul, como a própria alma. E essa é a poesia que eu ensino, que eu tenho ensinado, que eu tenho aprendido e que eu tenho tentado escrever aqui na floresta.

Amazônia Latitude: No seu livro “Arte, Erotismo, Natureza e Amizade. Os diários de Max Martins” (2017, Intermeios), você revela aspectos muito íntimos de outro poeta, no caso, o Max. Qual é o lugar que o Max Martins e a obra dele ocupam na literatura brasileira? Como foi esse processo de entrada sua na vida do Max, na poética do Max?

Paulo Vieira: Para falar do Max Martins, de como eu me aproximei da poesia e acabei estudando profundamente os diários do Max, não tem como falar dele sem falar de Benedito Nunes, meu grande mestre, meu grande amigo, que me acolheu no mundo da literatura desde muito cedo, quando eu era um garoto, e que foi quem deu essa ideia mirabolante de eu estudar Max em um doutoramento, coisa típica do Benedito.

Benedito não apenas deu a ideia, mas me ensinou os caminhos, me indicou pessoas, me falou que eu era capaz de fazer essa travessia desse mar revolto sem afundar o barco. E ele tinha razão, ele sempre enxergou com muita abertura as possibilidades que existem para a gente fazer o que a gente quiser nesse mundo. Então, tomar contato com os cadernos do Max, com os diários do Max, com a poesia do Max por uma outra perspectiva, agora de um estudioso da obra do Max, foi fascinante.

Algumas coisas que até hoje não parecem muito claras para quem conhece literatura na Amazônia, para quem discute universalismo, para quem discute essa ideia de regional, de universal. É preciso que se diga, já faz tempo, eu já disse isso várias vezes, que a poesia de Max Martins não tem caráter regional naquela perspectiva careta e tosca que se apregoou por aí, mas ela tem mais do que isso. Ela é completamente universal, mas se apropriando dos elementos da natureza amazônica.

Muitos dizem que o Max Martins é um poeta super sofisticado e artista plástico, e a poesia dele não tem exatamente a ver com a Amazônia. Claro que tem, óbvio que tem, isso é mais do que nítido. Agora, a maneira de se apropriar da natureza amazônica que Max sempre cultivou, é uma maneira tão particular que faz com que todo o resto de tentativas de usar a natureza como panfleto, faz com que todo esse restante fique naufragado no mar de marasmo.

Então, Max sabia como se apropriar dos elementos da terra que ele pisava, sem ser brega, sem ser ultrapassado, fazia isso de maneira formidável. É uma questão de tempo para se perceber no Brasil todo, que Max é um dos grandes poetas brasileiros do século passado. Os próprios estudos já foram muito ampliados, tem muito estudo novo sobre Max, universidades do Centro-Oeste, do Sul, estudando várias diferentes perspectivas da obra de Max.

Max é um autor supercelebrado, superestudado. Se for fazer um levantamento, possivelmente você vai descobrir que ele é um dos mais estudados na atualidade. E isso é formidável porque há muito para se descobrir de Max Martins.

No próximo mês, eu fui convidado para o encontro “Jornadas Literárias Andrés Bédio”, na Colômbia, na região da Antioquia. Nela, vou falar, entre outras coisas, de floresta e poesia, vou falar da minha própria poesia, mas também tenho uma conferência lá só para falar sobre os poetas paraenses, e outra para falar só sobre Max Martins, porque lá na Colômbia, Max é reconhecido e considerado um poeta importante.

Nesse evento internacional de quem vai encontrar poetas de alguns países latino-americanos, eu também vou falar sobre Max, para ter ideia da dimensão. Não fui nem eu que ofereci os temas, eles me propuseram e eu aceitei com toda alegria, porque gosto muito de falar sobre Max, embora não seja mais um autor que eu estude academicamente.

Hoje, eu trabalho a questão da poesia e floresta, nos últimos anos todos, mas acompanho o que tem sido feito pela obra do Max, em termos de divulgação, o trabalho de Age de Carvalho e companhia, o trabalho da editora da Ed.ufpa e, principalmente, continuo ligado ao Max pelo simples e prazeroso gesto de ler a poesia do Max, que é a parte mais deliciosa dessa história toda.

Amazônia Latitude: Paulo, em 2022, você lançou a obra VIEIRANEMBEIRA (2022, Amo Editora), onde reúne poemas e textos em prosa de sete dos seus livros. Fala um pouco para a gente desse processo de elaboração deste livro, do processo de criação mesmo, de gestação do livro.

Paulo Vieira: “VIEIRANEMBEIRA, Poema das Coisas pelo Autor” foi o último livro publicado por mim, e ele reúne poemas de sete livros e alguns textos em prosa, que eu tive a generosidade de chamar de textos poéticos, embora talvez não sejam tão poéticos assim. Para mim, eram importantes, eu queria que entrassem nessa antologia. Foi uma trabalheira, como se pode imaginar, escolher, mas eu tentei pegar o extrato mais representativo dos últimos 20 anos da minha poesia, reuni nesse livro que saiu pela editora Amo, essa editora formidável, e fiz um lançamento em Belém, também fiz um lançamento aqui em Altamira, e devo fazer um lançamento também na Colômbia, em Medelín, na ocasião da “Jornadas Literárias Andrés Bédio”.

Nesse momento, eu tenho trabalhado no meu livro novo, que deve sair em breve. Ele já está pronto, eu já estou em outros processos. Mas esse livro sobre o qual eu acabei de ler alguns poemas, esse livro novo talvez seja realmente o livro que mais me liga ao Oeste do Pará, a esse que eu chamo de coração da Floresta Amazônica, que é onde a gente vive, na beira do Xingu.

É um livro que traz os poemas que são fruto dessas reflexões dos últimos anos. Todos os poemas escritos nesse livro são poemas que eu escrevi depois de estar vivendo aqui, de estar trabalhando aqui, de estar envolvido com as questões socioambientais daqui, com os estudantes daqui, com a floresta daqui, com a vida daqui. Então esse livro é um livro muito muito importante para mim, que, eu espero, esteja ajudando a abrir uma nova perspectiva de criação literária útil para o prazer do leitor, mas também útil para a conservação da floresta e da vida.

Amazônia Latitude: Por que é importante pensar a Amazônia pela literatura?

Paulo Vieira: Pensar a Amazônia pela literatura é, também, pensar a Amazônia pela história da Amazônia. Pensar a Amazônia pela literatura é, também, pensar a Amazônia pela natureza amazônica, pensar a Amazônia pela importância que essa natureza tem para nossa própria vida. A literatura não apenas nos transporta para o mundo da fantasia, para o mundo das quimeras, para uma fuga da realidade, mas ela também nos coloca no centro vital dessa realidade, ela nos coloca as questões mais importantes e relevantes da atualidade, e, no caso da Amazônia, não há nada no mundo mais relevante na atualidade do que a própria Floresta Amazônica.

Então, pensar a Amazônia pela literatura e pensar a literatura por meio da Amazônia se faz urgente, necessário e vital para a gente conseguir ter as duas coisas: ter, ainda, a Amazônia e conseguir ter, ainda, o prazer da arte e da literatura vinculada a ela.

Termino com um poema que talvez fale sobre a tua última pergunta. Talvez não responda, porque a poesia não é muito de responder as questões, mas talvez esclareça, traga luz para essa copa de árvore. “Que vós sejais como a árvore”.

Que vós sejais como a árvore

que vendo a morte chegar

deixa as cascas do chão

para proveito das sementes

 

Que vós sejais como embaixo da terra

Por fios de açúcar

Os fungos que unem raiz a raiz

Todas as árvores

Até que bata na selva

Uma brisa de mar

 

Que vós sejais pássaros contadores

Histórias hilárias, terríveis,

felizes Araras de riso frouxo

Serpentes fingindo cochilos

 

Que vós sejais como cem mil borboletas

Que arrastam pro fundo da terra

Tratores e motosserras.

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