Por um combate interdisciplinar à emergência climática

Placa de trânsito com a imagem de um semáforo quase totalmente submersa em uma enchente
Foto: Kelly Sikkema/Unsplash

No 3º Congresso Internacional de Cidadania Digital, Pedro Roberto Jacobi alerta para a necessidade de uma ciência que dialogue com todas as áreas do conhecimento para a mitigação dos danos ambientais e sociais

Durante a 27ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP27), que aconteceu no Egito em novembro, sentimos expectativa e preocupação em relação aos acordos que poderiam ser feitos sobre o tema perdas e danos. As decisões poderiam envolver, por exemplo, investimentos na redução das emissões de gases de efeito estufa e instrumentos que permitam reduzir os impactos da emergência climática.

Desde o primeiro registro das medições de temperatura média global e da quantidade de gases causadores de efeito estufa emitidos, os últimos cinco anos foram os mais quentes da história, sinalizando algo cada vez mais preocupante. Estamos com a meta de não ultrapassar 1,5ºC de aumento da temperatura planetária, mas a perspectiva é de que haverá temperaturas mais altas, que promovem, entre outros danos, problemas de saúde associados às vias respiratórias, perda de biodiversidade, da floresta e de sua regulação do clima, afetando a evapotranspiração e sua relação com os rios voadores.

Ao mesmo tempo, é importante destacar a relação extremamente desigual que observamos: 1% da população mundial emite o dobro da quantidade de gases de efeito estufa emitida pelos 50% mais pobres do planeta.

Existem elementos centrais quando falamos dos impactos sociais e ambientais que agravam as mudanças climáticas. O primeiro é a perspectiva otimista de que o desmonte dos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro e seus impactos na Floresta Amazônica, incluindo o desmatamento e os riscos de perda da biodiversidade, não terão continuidade.

Outros aspectos associados a eventos extremos são as ondas de calor, as secas e os furacões. Há a disrupção da circulação atmosférica global, com fenômenos como El Niño e La Niña, e, contraditoriamente às ondas de calor, o frio mais intenso. Houve um aumento significativo do número de eventos extremos registrados. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), de 2000 a 2019, ocorreram 7348 grandes desastres, um aumento acentuado em relação aos vinte anos anteriores.

Esses eventos geram sérios riscos aos seres humanos e multiplicam o número de refugiados climáticos. Os impactos sobre a agricultura e a segurança alimentar também promovem o aumento da fome entre refugiados.

A segurança alimentar é um tema que gerou preocupação ao longo dos últimos quatro anos e se intensificou em virtude da pandemia. Existem regiões onde o problema é endêmico e precisa ser enfrentado com o apoio de organizações internacionais e dos países centrais, não apenas dos países do norte.

Os desastres relacionados ao clima e suas consequências mostram que o desenvolvimento global está lidando com o crescimento antieconômico, em que os prejuízos prevalecem sobre os benefícios. É o que o sociólogo alemão Ulrich Beck aborda em seu primeiro trabalho, sobre vivermos em uma sociedade de risco. Cada vez mais, observamos conflitos ecológicos, que são referenciais de negatividade, perdas, devastação e ameaças.

Os impactos diretos desses desastres são mais fáceis de identificar quando associados à variabilidade climática regional. É o caso dos indivíduos afetados por inundações, deslizamentos de terras e impactos indiretos, quando a variabilidade climática pode interferir na dinâmica de transmissão de doenças causadas por diferentes tipos de vetores.

Os impactos dos fenômenos climáticos podem sofrer interferência de determinantes sociais e/ou ambientais, como crises regionais associadas à oferta de recursos hídricos, que pode ser permeada por conflitos sociais.

As cadeias causais relativas à mudança climática tendem a interferir em processos que evoluem negativamente ao longo das escalas de tempo e espaço, avançando em magnitude dos danos e do número de afetados, podendo acarretar profundas crises e rupturas nos sistemas socioambientais. A ampla combinação de fatores determinantes da saúde e da qualidade de vida humana pode ilustrar o desafio interdisciplinar de se analisar o contexto das mudanças climáticas globais.

É possível relacionar a epidemiologia humana com as mudanças ambientais e, portanto, a clara sobreposição da influência dos fatores ambientais e distintas categorias, como o precário saneamento básico, a poluição atmosférica e os riscos inerentes a desastres climáticos, principalmente sobre os grupos de habitantes urbanos mais pobres dos países em desenvolvimento. No Brasil, mais de 85% da população vive em áreas urbanas e periurbanas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Todos esses fatores relacionados às mudanças climáticas chamam a atenção para o tema da inter e da transdisciplinaridade. Se de um lado nós devemos ressaltar a complexidade dos eventos e a necessidade de diálogo entre ciência, gestores e sociedade, chama atenção a prevalência de uma racionalidade cognitivo instrumental. Essa racionalidade agrava a situação ambiental do planeta, mantendo uma relação abissal tanto com as desigualdades materiais como com a diversidade de saberes. Muitos dos quais, embora marginalizados, apresentam-se com elevado poder de aplicação para os desdobramentos locais oriundos dos processos globais.

Há o desafio de ruptura com a compartimentação de conhecimento e a marginalização da diversidade dos saberes, o que envolve um conjunto de atores do universo educativo em todos os níveis. Em um encontro como este, torna-se extremamente positiva a possibilidade de abordar a necessidade de potencializar outra racionalidade para engajamento dos diversos sistemas de conhecimento, da formação e profissionalização docente de profissionais em geral e da comunidade universitária. Assim, conteúdos e conhecimentos baseados em valores e práticas sustentáveis indispensáveis para estimular o interesse, o engajamento e a responsabilização são fortalecidos.

Esta reflexão sobre as práticas sociais em um contexto marcado pela degradação dos ecossistemas e de seus serviços envolve uma necessária articulação da produção de sentido sobre a educação para a sustentabilidade. A produção do conhecimento deve contemplar as interrelações do meio natural com o social, incluindo análises do papel dos diferentes atores envolvidos e das formas de organização social que aumentam o poder das ações alternativas de um novo desenvolvimento, um grande desafio.

Uma sociedade cada vez mais descarbonizada, que precisa substituir os combustíveis fósseis por formas alternativas de energia, alcançar uma menor dependência em virtude do problema da escassez hídrica e da hidroenergia. Precisamos pensar em um novo perfil de desenvolvimento com ênfase na sustentabilidade socioambiental. Para isso, é necessária uma reflexão sobre os desafios existentes para mudar a forma de pensar e agir em torno da questão ambiental em uma perspectiva contemporânea.

O antropólogo francês Edgar Morin nos fala sobre a impossibilidade de resolver os crescentes problemas ambientais e reverter suas causas sem que ocorra uma mudança radical no sistema de conhecimento dos valores e do comportamento racional existente, nos quais prevalece o aspecto econômico do desenvolvimento.

A busca por respostas na interdisciplinaridade deve-se à constatação de que os problemas que afetam e mantêm a vida no nosso planeta são de natureza global, e que suas causas não podem se restringir apenas aos fatores estritamente biológicos, pois revelam dimensões políticas, econômicas, institucionais, sociais e culturais.

É importante que a interdisciplinaridade seja vista como um processo de conhecimento que busca o amplo diálogo com a sociedade e a interação entre disciplinas, superando a compartimentação científica provocada pela excessiva especialização. Quando há a combinação de várias áreas do conhecimento, pressupõe-se o desenvolvimento de metodologias interativas, configurando a abrangência de enfoque.

Pedro Roberto Jacobi, um homem idoso branco, com cabelos brancos, durante o #º Congresso Internacional de Cidadania Digital.

3º Congresso Internacional de Cidadania Digital/Reprodução

A preocupação em consolidar uma dinâmica de ensino e pesquisa a partir de uma perspectiva interdisciplinar enfatiza a importância dos processos sociais que determinam a forma de apropriação da natureza e suas transformações através da participação social na gestão do meio ambiente. A dinâmica interdisciplinar fortalece a conexão das dimensões física, química e biológica com a dimensão cultural, com a prática dos diversos atores sociais, bem como o impacto da sua relação com o meio ambiente.

Na COP27, é importante observar a mobilização da sociedade civil, das organizações não governamentais, das comunidades tradicionais e dos governos em relação à pressão para que se avance em respostas concretas que reduzam os riscos de incerteza em relação ao futuro do clima.

Ao falarmos da interdisciplinaridade e da intersetorialidade, o caminho a ser desenhado passa por uma mudança no acesso ao conhecimento e por transformações em instituições, na lógica da ação governamental e corporativa e na formação de lideranças. As mudanças serão focadas na construção de uma sociedade sustentável a partir de uma cidadania exercida de forma ativa.

Para tanto, é importante que se promova o conhecimento e se incentive a reflexão crítica em torno do contexto dos impactos da sociedade risco. É necessária a decodificação das métricas que são a essência do conhecimento científico, biofísico e geoquímico para uma linguagem mais compreensível. Para a maioria das pessoas, não há uma compreensão clara sobre os impactos da emergência climática. Quando acontecem, os eventos extremos provocam maior percepção do problema, mas não das ações do governo.

O aumento dos problemas ambientais impõe temas a diversas disciplinas científicas para os quais estas não estão preparadas e cujo enfrentamento demanda reformular os parâmetros de ensino e pesquisa. A noção dos problemas socioambientais recoloca o ser humano no centro das preocupações e dos problemas científicos. Portanto, a sustentabilidade como novo critério básico e integrador precisa estimular as responsabilidades éticas. A ênfase nos determinantes extra-econômicos serve para reconsiderar os aspectos relacionados à equidade, à justiça social e à ética com os seres vivos.

O maior desafio é o de religar os saberes, como explica Edgar Morin, e romper com o reducionismo, abrindo espaço para a reforma do pensamento – um pensamento que sabe do seu limite e da realidade das incertezas.

Quando os enfoques de conhecimento têm como referências os estudos sobre os efeitos da problemática ambiental nas transformações metodológicas e nos diálogos interdisciplinares, abrem um novo horizonte para o diagnóstico das mudanças socioambientais. Essa interdisciplinaridade propicia a formulação de diferentes abordagens em torno das diferentes dimensões da sustentabilidade ambiental.

Nesse sentido, gosto de me referir à abordagem de Silvio Funtowicz e Jerry Ravetz, que apresentam um método baseado no reconhecimento da incerteza, da complexidade e da qualidade de uma “ciência pós-normal”. Em eventos como este [congresso], nós temos a oportunidade de reforçar essa abordagem, que tem, nas comunidades ampliadas de pares, descritas por diferentes dinâmicas, fóruns nos quais os atores e envolvidos tenham alto grau de legitimidade e influência. São atores estratégicos para estimular e legitimar o diálogo e respeito entre diferentes campos de saber e possibilitar maior qualidade e validade para o saber científico.

Não existe apenas uma visão de ciência. A abordagem dos processos de discussão científica não pode permanecer restrita à comunidade de pares acadêmicos. É preciso haver, cada vez mais, a possibilidade de prover explicações para situações complexas e fenômenos emergentes, com risco de levar a consequências que demandem ações urgentes, como os que estamos observando atualmente.

Frente às incertezas sistêmicas, como as mudanças climáticas, é demonstrado que prevalece elevado grau de juízo de valor e até mesmo ignorância na forma como a comunidade científica subsidia os processos políticos. Isso também introduz uma questão fundamental: o ceticismo em relação à ciência, assim como observamos durante a pandemia, com a vacina. Precisamos observar que valores controvertidos, fatos incertos e situações de elevados conflitos de interesse também agregam condicionantes que incidem sobre apostas elevadas, com forte antagonismo entre atores sociais.

A abordagem interdisciplinar demanda uma resposta baseada no diálogo entre ciência, atores governamentais, sociais e agentes econômicos, no sentido de que estes sejam capazes de orientar planos de ação diante das ocorrências inesperadas.

A ênfase em práticas que estimulam a interdisciplinaridade e a transversalidade revela o potencial que existe no trabalho com temáticas que incitam mudanças no comportamento, na responsabilidade social e na ética ambiental. Trata-se da importância de compreender a complexidade do processo e o desafio de ter uma atitude mais reflexiva e atuante. Assim, os cidadãos podem se tornar mais responsáveis, cuidadosos e engajados em processos colaborativos com o meio ambiente.

A interdisciplinaridade não é um fetiche, mas é uma opção de conhecimento. O pensamento interdisciplinar tem que ser visto como uma forma de integrar o conhecimento e de humanizar a ciência. A interdisciplinaridade busca responder às necessidades colocadas pela demanda e às questões que a contemporaneidade promove quanto às insuficiências do paradigma dominante, explicando as novas emergências socioambientais.

Nossa argumentação se baseia no sentido de que o conhecimento muda. Disciplinas desaparecem, perdem sentido. Houve o estabelecimento de um hiato muito significativo entre as humanidades e as ciências naturais. Agora, há a necessidade de um avanço que promova cooperação e confiança entre os envolvidos, superando os obstáculos colocados às práticas interdisciplinares.

Este saber complexo demanda avanço das fronteiras disciplinares – aquilo que Boaventura de Sousa Santos denomina de troca fertilizadora e de ordem do saber complexo. A nova perspectiva colocada pela expansão do enfoque interdisciplinar consiste em tentar restituir, ainda que de maneira parcial, o caráter de totalidade, de complexidade e de hibridização do mundo real, no qual pretendemos atuar.

Precisamos promover respostas à realidade em que ciência e experiência pessoal dos autores fortalecem as barreiras simbólicas entre os diferentes extratos sociais, cada vez mais hierarquizados. Nesse sentido, os espaços formativos e educativos devem ser reconfigurados, inclusive no que diz respeito à produção hegemônica dos saberes.

É importante destacar essa hegemonia para mostrar o quanto as comunidades tradicionais têm ampliado o seu espaço. Eu sempre cito um livro reconhecido, que é “Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak, que traz à luz o quanto o conhecimento originário precisa ser levado em consideração para pensar a dimensão da inter e da transdisciplinaridade.

Face à imprevisibilidade das consequências das mudanças climáticas, diversas questões se colocam nos dias de hoje. Como traçar a estratégia para enfrentar as mudanças climáticas? Como tornar a sociedade mais reflexiva e, portanto, mais resiliente aos efeitos diretos e indiretos das mudanças climáticas? Como sensibilizar e criar condições para promover ações pautadas pelo reconhecimento dos riscos? Como promover uma capilarização das questões inerentes a práticas de educação ambiental que deveriam estar cada vez mais inseridas no cotidiano das pessoas?

Nesse sentido, é necessário que se promova a democratização do conhecimento, que exista diálogo entre os saberes acadêmicos e a sociedade. O diálogo entre os dois saberes permite que os mais distintos atores sociais, inclusive aqueles sujeitos aos riscos de desastres, possam se apropriar de elementos das inter-relações entre a variabilidade climática regional e outros problemas socioambientais, incluindo a saúde humana.

Quanto mais as ações educativas dialogarem com visões pautadas na existência dos riscos promovidos pela sociedade humana, maior será a possibilidade de formar atores sociais mobilizadores nos diversos setores da sociedade. Para quebrar o hiato existente entre o reconhecimento da crise social e ambiental e a construção real de práticas capazes de estruturar as bases de uma sociedade sustentável, é necessário fortalecer a comunidade prática e a aprendizagem social.

Este texto é uma adaptação da fala de Pedro Roberto Jacobi na Mesa 4: “Interdisciplinaridade e emergências climáticas na Amazônia” do 3º Congresso Internacional de Cidadania Digital, cujo tema foi “A comunicação da floresta e a conexão de todas as coisas”. O evento aconteceu entre os dias 21 e 25 de novembro, nas cidades de Manaus e Parintins, no Amazonas. A mesa completa pode ser assistida clicando aqui.
Pedro Roberto Jacobi é cientista social e economista pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Graduate School of Design – Harvard University (1976), Doutor em Sociologia pela USP (1986). Livre docente em Educação na USP. Foi professor da Faculdade de Educação da USP (1988-2018). É Professor Titular Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP.

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »