Regatão sagrado: o valioso manuscrito de Euclides da Cunha

Manuscrito de Euclides da Cunha é pouco conhecido e foi traduzido para o espanhol - Foto: Arquivo pessoal/Ana Varela Tafur
Manuscrito de Euclides da Cunha é pouco conhecido e foi traduzido para o espanhol - Foto: Arquivo pessoal/Ana Varela Tafur
Manuscrito de Euclides da Cunha é pouco conhecido e foi traduzido para o espanhol - Foto: Arquivo pessoal/Ana Varela Tafur

Em 2016, enquanto lia a literatura brasileira e escrevia minha tese de doutorado sobre os personagens que ocuparam a Amazônia durante a época da borracha, encontrei o polêmico personagem do regatão.

Fiquei intrigada com sua representação como tipo literário em uma série de contos intitulada Cenas da vida amazônica (1886), do escritor José Veríssimo (Óbidos 1857-Rio de Janeiro 1916), e na novela O missionário (1988, publicada em 1981), do novelista Herculano Marco Inglês de Sousa  (Óbidos 1853-Rio de Janeiro 1918).

Mesmo que Euclides da Cunha não tenha concluído a escrita do seu ensaio Regatão Sagrado*, é possível ler em tom crítico e irônico sobre o inviável projeto de construir um Navio-Igreja, uma espécie de basílica flutuante, o bem-aventurado Cristóforo, para levar civilização à Amazônia brasileira.

Esta ideia foi proposta pelo bispo do Grão-Pará, Dom Antônio de Macedo Costa, em um discurso intitulado A Amazônia, meio de desenvolver sua civilização. Conferência recitada em Manaus, durante a Assembleia provincial, diante do excelentíssimo senhor presidente da província e de um grande número de pessoas, no dia 21 de março de 1883. 

Agradeço profundamente o meu orientador, Dr. Leopoldo M. Bernucci, por mencionar a mim a existência deste valioso e pouco conhecido manuscrito de Euclides da Cunha e por compartilhar a imagem dele comigo. O Regatão Sagrado é uma joia literária que tive o prazer de traduzir do português para o castelhano para o público falante de espanhol da Revista Amazônia Latitude.

Leia a íntegra do Regatão sagrado:

Manuscrito tem tom crítico e irônico - Foto: Arquivo pessoal/Ana Varela Tafur

Manuscrito tem tom crítico e irônico – Foto: Arquivo pessoal/Ana Varela Tafur

Há uns vinte anos, o bispo do Pará, d. Antônio de Macedo Costa, comovido diante da decadência dos costumes amazônicos, planeou construir o Cristóforo – navio-igreja ou vasta basílica fluvial com os seus campanários, os seus púlpitos, os seus batistérios, os seus altares e o seu convés afeiçoado em nave – flutuando perpetuamente sobre as grandes águas, indo e vindo em constantes giros dos mais populosos rios aos paranás mais desfrequentados, por maneira que, das cidades ribeirinhas aos vilarejos mais tolhiços e sem nome, onde ele ancorasse nas escalas transitórias, se difundissem os influxos alentadores da fé, e descessem sobre as gentes simples, relegadas da cultura humana o consolo, a surpresa magnífica e o encanto das repentinas visitas do bom Deus em viagem.

A ideia não se efetuou; e foi pena. Ela denunciava, documento sobre a índole romântica do prelado, um lúcido conhecimento dos homens, e tato sutilíssimo de verdadeiro apóstolo sabedor do império surpreendente dos símbolos e das imagens.

Imagine-se a cena: um arraial longínquo, adormecendo ao cerrar da noite, entristecedoramente, na quietitude daquelas solidões monótonas; e despertando na antemanhã seguinte com uma catedral ao lado, feito a metrópole de um dia da civilização errante. No alto da barranca, despertas pelos sinos, as gentes surpreendidas, em massa, vistas pasmadas, já não reconhecem o próprio chão onde nasceram e assistem. Um milagre tangível: ao invés da [interrompido]*

Regatón sagrado

Hace unos veinte años, el obispo de Pará, don Antônio de Macedo Costa, conmovido frente a la decadencia de las costumbres amazónicas, planeó construir el Cristóforo –navío-iglesia o vasta basílica fluvial con sus campanarios, sus púlpitos, sus baptisterios, sus altares y su cubierta moldeada en forma de nave –fluctuando perpetuamente sobre las grandes aguas, yendo y viniendo en constantes giros de los más populosos ríos a las cascadas menos frecuentadas, de manera que, de los pueblos  ribereños a las aldeas más modestas y sin nombre, donde se anclaría en las escalas transitorias, se difundieran los influjos alentadores de la fe, y descendieran sobre las gentes simples, relegadas de la cultura humana el consuelo, la sorpresa magnífica y el encanto de las repentinas visitas del buen Dios en viaje.

La idea no se realizó; y fue una lástima. Ella delataba, como prueba de la índole romántica del prelado, un lúcido conocimiento de los hombres y tacto sutilísimo del verdadero apóstol sabedor del imperio sorprendente de los símbolos y de las imágenes.

Imagínese la escena: una aldea distante, adormeciéndose al cerrar la noche, entristecedoramente, en la quietud de aquellas soledades monótonas; y despertando en las primeras horas de la mañana siguiente con una catedral al lado, hecha una metrópoli de un día de una civilización errante. En lo alto del barranco, despiertas por las campanas, las gentes sorprendidas, en masa, con los ojos pasmados, ya no reconocen el propio suelo donde nacieron y donde viven. Un milagro tangible: en lugar de…**

* Transcrição feita do manuscrito original de Euclides da Cunha por Leopoldo M. Bernucci e Felipe Pereira Rissato. Disponível na obra “Euclides da Cunha: Ensaios e inéditos”, Editora Unesp, São Paulo, 2018. 

* Manuscrito traduzido para o espanhol por Ana Varela Tafur. 

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