Socorrendo a multidão: O desafio da Cruz Vermelha no Círio de Nazaré
Na maior procissão religiosa do Brasil, a união de romeiros e voluntários transforma as ruas de Belém
Atendimento da Cruz Vermelha durante o Círio de Nazaré. Foto: Agência Pará
No meio da multidão formada por dois milhões de pessoas, alguém pede socorro. A dor é agravada pelo empurra-empurra, típico das aglomerações. Imagine passar mal no meio de um mar de gente? Como pedir ajuda? Como o socorro pode chegar até quem precisa em meio a um dos maiores eventos religiosos do Brasil, se cada centímetro dos 3,6 quilômetros da principal procissão do Círio de Nazaré é disputado?
É essa a missão dos voluntários da Cruz Vermelha Brasileira do Pará. Seis mil pessoas que devem estar a postos durante as 14 romarias do Círio de Nazaré 2024 para atender qualquer um dos mais de 2 milhões de romeiros, 89 mil deles, turistas que estão “de passagem” pela cidade durante este mês de outubro.
Este ano, com a proximidade da COP 30, a expectativa é que o número de visitantes aumente em cerca de 10%, em relação ao ano passado, quando chegaram a Belém 80,5 mil visitantes de outros estados, de acordo com o levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em parceria com a Secretaria de Turismo do Estado do Pará (Setur).
A atenção e cuidados dos órgãos de segurança e promoção à saúde é justificada. No Círio 2023, o balanço divulgado pela Cruz Vermelha, órgão que lidera os primeiros-socorros aos turistas e romeiros, indicava que foram realizados pelo menos 625 atendimentos durante a Transladação e 726 no domingo do Círio de Nazaré.
Nas duas romarias foram necessárias 33 transferências de pacientes para unidades hospitalares, inclusive de quatro pessoas que chegaram a ser pisoteados depois que um palanque improvisado desabou durante o Círio de Nazaré, causando um tumulto na esquina das Avenidas Presidente Vargas e Nazaré, em um dos pontos considerados críticos durante a procissão do domingo.
Projeto Círio
“Esperamos um volume maior de turistas do que nos anos anteriores. Por isso, estamos oferecendo treinamentos mais específicos. Nossos voluntários estão sendo preparados para atender a grande quantidade de visitantes que a cidade vai receber”, revela Junior Corrêa, Coordenador de Comunicação da Cruz Vermelha Brasileira – Pará.
A ação da Cruz Vermelha para o “Projeto Círio” é um trabalho que, na verdade, dura quase o ano todo e se mantém há mais de 40 anos. Nos meses de abril e maio começam os planejamentos, essenciais para obter patrocínios e definir onde serão realizados os treinamentos dos voluntários.
Das seis mil pessoas que atuam de forma espontânea na Cruz Vermelha, pelo menos três mil se inscrevem especificamente para atuar no Círio de Nazaré, mesmo que, depois, a participação de alguns se amplie.
Esse foi o caso do Júnior Corrêa, que começou em 2012 e participou de todos os Círios desde então. Depois, se efetivou na Cruz Vermelha em outros eventos e atualmente tem papel na gestão do órgão.
Nosso projeto Círio é o maior que temos dentro da Cruz Vermelha. Ele precisa de uma logística maior devido ao espaço e ao número de atendimentos. Geralmente, começamos os treinamentos em julho, com aulas práticas que envolvem tanto os efetivos, quanto os voluntários do projeto Círio.”
Especialistas em atender multidões
O trabalho da Cruz Vermelha no Círio de Nazaré é único no mundo. Nenhuma outra filial enfrenta anualmente o desafio de atender multidões na escala de milhões, o que torna a experiência de Belém uma referência em termos de atendimento em eventos massivos.
“Em 2022, tivemos a presença de um membro da Cruz Vermelha Mexicana que estava conosco para um treinamento realizado pela Cruz Vermelha Nacional do Brasil. O curso era voltado para a formação de equipes de intervenção em eventos massivos. Como nossa sede é um destaque em todo o Brasil nesse tipo de evento, fomos escolhidos para sediar”, comenta o coordenador, ressaltando a raridade de lidar com um público tão numeroso.
Experiência que também atrai quem ainda está estudando para se especializar em primeiros socorros. Um grupo de voluntários formado por professores e alunos de uma instituição que forma profissionais para atendimento médico vai participar pela primeira vez do Círio. São cerca de 100 pessoas que vão trabalhar com a Defesa Civil de Belém.
“Eu gostaria de ajudar, porque nem todo mundo aguenta, tem pessoas que ficam desidratadas. Acho que vai ser algo bem exaustivo, mas quem está ali, pagando promessa, está literalmente entregando tudo de si pelo que acredita. Eu quero poder ajudar de alguma forma’, conta Anayã Manaia.
Pontos “vermelho e branco”
A estratégia do órgão é clara: chegar até os pacientes o mais rápido possível, levá-los até um posto para os primeiros socorros o quanto antes e, quando for o caso, encaminhar para atendimentos especializados nas unidades de saúde de referência.
Ver os coletes “vermelho e branco” andando entre os romeiros significa alívio e segurança para os fiéis, mesmo quando o paciente está acostumado a ser a pessoa que ajuda.
Nayana Rodrigues herdou do avô, Antônio Rodrigues, a tradição de “sair no Círio”. Ele seguia Nossa Senhora de Nazaré durante a grande romaria sempre com os pés descalços, em sinal de humildade e proximidade com a Virgem.
Em 2015, quando o avô adoeceu, Nayara prometeu ser voluntária, quando ele melhorasse. Promessa feita, promessa cumprida. Ela foi parar na Cruz Vermelha do Pará como socorrista voluntária e continuou assim, mesmo nos últimos dois anos, após a perda do homem que a inspirou.
Acostumada a socorrer, ela já foi a pessoa que precisou de ajuda em meio a Transladação quando torceu o tornozelo após o pé cair em um buraco durante a remoção de uma vítima.
Fui atendida pela própria Cruz Vermelha e o médico da instituição falou que não tinha mais como participar. Foi muito difícil. No domingo, assistindo pela televisão, eu chorei porque nos preparamos o ano inteiro para estar lá e, quando a gente não consegue, se torna algo muito difícil. Esse ano eu quero dar o meu máximo, já que ano passado eu não consegui estar ali presente”.
É o que assegura a voluntária para quem estar na Cruz Vermelha é um momento de renovação pessoal. “Apesar de já ter cumprido a minha promessa e de ter continuado, vou renovando aquela energia todo ano, me sentindo grata por muitas coisas. Eu me sinto cada vez mais próxima e feliz em ajudar as pessoas”.
O sacrifício, o calor e a multidão
As ocorrências mais frequentes durante a procissão incluem desmaios e luxações, que estão relacionadas a correria na disputa por um lugar mais perto da corda do Círio e também a falta de hidratação e de alimentação adequadas.
“Às vezes, a pessoa não conhece seu próprio corpo e acaba passando mal. A gente ‘pega’ muitos desmaios [por isso]. Temos muitas luxações por conta da pressão enfrentada por quem fica no entorno da corda. As mulheres, por ficarem abaixo do nível dos homens, frequentemente, ficam sem oxigênio, o que pode levar também a desmaios e lesões”, explica Júnior Corrêa.
Além disso, a questão do clima é uma preocupação constante. Isso porque o aumento da temperatura em Belém nos últimos anos afeta a condição de saúde de quem caminha no meio da multidão.
Temos equipes de atendimento de intervenção, de gestão de riscos e de desastres que são treinadas especificamente para alguns tipos de casos, como fraturas ou como insolação.Trabalhamos diretamente com os hospitais para socorrer, nestes casos”.
Primeiros a chegar, últimos a sair
São mais de 20 postos da Cruz Vermelha distribuídos ao longo do percurso, que é o mesmo nas duas romarias que mais atraem romeiros: a Transladação, que ocorre no sábado à noite; e o Círio de Nazaré, agendado sempre para as primeiras horas do segundo domingo de outubro.
“Na Trasladação terminamos tarde, então, acaba que não dormimos direito, porque de madrugada já tem que estar no Círio”, lembra Nayana Rodrigues.
Na madrugada do domingo, as equipes são distribuídas entre os postos. Alguns voluntários trabalham sempre nos mesmos lugares. Isso acontece principalmente com os profissionais da área da saúde, como enfermeiros, técnicos de enfermagem e médicos, enquanto outros voluntários seguem pelas ruas, sempre atentos aos romeiros.
A ideia é que eles estejam o mais perto possível de qualquer um que possa necessitar de socorro.
“Trabalhamos com equipes de até 10 voluntários; quatro cuidam da padiola – material utilizado durante a procissão – e o restante fica como ‘abre caminho’. Por ser uma zona quente – onde há muitas pessoas e, por isso, temos dificuldade de fazer um atendimento ali mesmo, o ideal é fazer o transporte rápido dessa vítima para longe da aglomeração”, comenta Júnior Corrêa.
Além da Cruz Vermelha, médicos, enfermeiros e profissionais de várias áreas da saúde ficam a postos em pontos considerados estratégicos ao longo do trajeto do Círio. Em 2023, apenas a Secretaria Estadual de Saúde (Sespa) montou 14 pontos com mais de 200 profissionais para fazer os atendimentos que incluem, principalmente, mal estar e ferimentos leves.
A estrutura para os primeiros-socorros também inclui vários órgãos que apoiam os atendimentos em saúde na medida em que permitem a comunicação dos casos e a indicação de como chegar o mais rápido possível até eles.
A rede conta com as Polícias Civil e Militar e demais integrantes da Secretaria de Segurança Pública (Segup), agentes de Trânsito, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil, Guarda Municipal de Belém e Secretaria Municipal de Saúde da capital (Sesma), entre outros.
Apoio para além da Saúde
Outra dor recorrente entre os promesseiros não é física, mas ainda requer ajuda. Muitos dos que acabam nos postos da Cruz Vermelha sofrem com o sentimento de falha ao não conseguir cumprir a promessa feita à Santa.
Nessas horas, os voluntários também estão lá para ajudar. Nayana Rodrigues conta que conversar é importante.
“Sabemos que é muito difícil quando a pessoa não consegue cumprir o seu objetivo. Então, quando isso acontece, lembramos que é possível voltar no ano que vem, que Nossa Senhora entende e reconhece o esforço de cada um e que também é preciso fé e humildade para reconhecer seus limites para, depois, superá-los”.
Ainda assim, quando possível, os voluntários estão dispostos a ajudar no cumprimento da promessa
“Em 2022, uma moça que estava na corda cortou o pé. A levamos para o posto e ela fez o curativo, mas falou que a única coisa que ela realmente queria era chegar até a Basílica. Então, minha equipe decidiu intervir. Ela não conseguia andar direito, então, fomos com ela caminhando, apoiando e conversando. Podíamos ter feito apenas o curativo, mas ela precisava de mais e nós conseguimos, daquela vez, fazer mais”.
A gratidão de quem recebe ajuda reverbera na gratidão que cada voluntário sente em poder ajudar. O trabalho sem remuneração dos voluntários, assim, recebe o melhor dos pagamentos.
“O que [nos] paga é o amor, aquele carinho, aquele gesto de fé da pessoa que está pagando a sua promessa. Estamos ali para cuidar da pessoa e a pessoa nos agradece. Não tem dinheiro que pague cada um daqueles ‘obrigados’, enfatiza Junior.
Na próxima publicação da Série sobre o Círio de Nazaré vamos saber mais sobre as três imagens de Nossa Senhora que fazem parte do Círio e como uma santa com características amazonidas foi encomendada para caminhar à frente da multidão de romeiros.
Texto: Alice Palmeira
Revisão e edição: Glauce Monteiro
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón