Com quantos búfalos se faz uma tragédia? O custo milionário que ameaça ecossistemas e espécies nativas de reservas na Amazônia
O que começou como um projeto de desenvolvimento com búfalos na década de 50, em Rondônia, acabou se tornando uma bomba-relógio ambiental que o Estado ainda não conseguiu desarmar


Rebanho de búfalos selvagens causa danos ambientais em reservas na Amazônia. Foto: Cícero Pedrosa Neto / Amazônia Real.
Qual o custo de uma ideia ruim? Ao Estado de Rondônia, tem custado a preservação de três unidades de conservação ambiental e uma indenização de R$20 milhões determinada pelo Ministério Público Federal (MPF).
O motivo: um rebanho de aproximadamente 5 mil búfalos selvagens que vem causando graves impactos ambientais, como a desertificação de campos, alteração do curso natural de lagos, e a ameaça às diversas espécies da fauna e da flora, aos ecossistemas de áreas protegidas, e a um território de indígenas isolados.
Os bubalinos circulam livremente entre a Reserva Biológica (Rebio) Guaporé, a Reserva Extrativista (Resex) Pedras Negras e a Reserva de Fauna (Refau) Pau D’Óleo, no oeste de Rondônia. Diante do quadro, o MPF estima que, se nada for feito, a população de búfalos pode chegar a 50 mil até 2030.
A introdução da espécie exótica no Estado começou em 1953, por iniciativa do Governo Estadual da região, que ainda se chamava Território Federal do Guaporé (o Estado de Rondônia só foi criado em 1981), durante a gestão do então governador Petrônio Barcelos.

Manada de búfalos selvagens tomou conta de área vizinha a território onde vivem indígenas isolados. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude.
Um estranho gigante no ninho
A ideia, em tese, era simples: impulsionar a economia local com carne, leite e força de tração. Porém, o que começou como um experimento, na Fazenda Pau D’Óleo, situada entre a Rebio Guaporé (uma Unidade de Conservação Federal) e a Resex Pedras Negras, transformou-se em um pesadelo ambiental e jurídico.
A iniciativa foi capitaneada pelo engenheiro agrônomo Edgar de Souza Cordeiro, diretor da então Divisão de Produção, Terras e Colonização do Território Federal do Guaporé. Ele trouxe da Ilha de Marajó, no Pará, os primeiros 36 búfalos da raça Carabao. Mais tarde, em 1956, vieram mais 30 da raça Jafarabadi, totalizando 66 búfalos acomodados na Fazenda. Logo, os problemas começaram a se acumular.
A Fazenda ficava em um local extremamente isolado, a 130 quilômetros do município mais próximo, Costa Marques, acessível apenas por via fluvial. Isso encarecia o transporte e dificultava qualquer operação logística.
Além disso, uma extensão significativa dos 11 mil hectares do terreno permanecia inundada durante grande parte do ano, inviabilizando o uso de maquinário agrícola e restringindo o pastoreio do gado a apenas 300 hectares em épocas de cheia.
O Estado de Rondônia jamais conseguiu transformar a Fazenda Pau D’Óleo em um projeto sustentável. Faltava infraestrutura, planejamento e até mesmo um balanço financeiro – não há registros de que um controle contábil formal tenha sido feito em toda a existência da propriedade.
Em complemento, relatórios técnicos que alertavam para os riscos e sugeriam alternativas foram ignorados. Enquanto isso, a falta de pessoal e a deterioração das instalações deixavam claro que o empreendimento estava condenado ao fracasso.
Na década de 1970, a situação saiu completamente do controle. As cercas, corroídas pela umidade e frequentemente destruídas pelos próprios búfalos, foram sendo abandonadas. Sem contenção, os animais começaram a se espalhar pelos campos alagados da região. Criados sem manejo adequado, os animais passaram a se reproduzir livremente e, com o tempo, formaram populações inteiras vivendo em estado selvagem.
A inércia do poder público em relação ao problema se prolongou até o final dos anos 1980. Na época, estimava-se que a Fazenda abrigava cerca de 1.500 bovinos, 96 equinos, 400 búfalos domesticados e um impressionante número de 5.000 búfalos asselvajados – uma estimativa imprecisa, já que nunca tinha sido feita uma contagem oficial até então.

Trinta e seis búfalos levados do Marajó, no Pará, para Rondônia se multiplicaram em um rebanho que já alcança mais de 5 mil cabeças. Foto: Cícero Pedrosa Neto / Amazônia Real.
Um deserto criado a casco e chifre
Imagens feitas em sobrevoos na região mostram que onde antes havia vegetação nativa, agora existem trilhas pisoteadas e lagos desviados. A Rebio Guaporé conta com áreas naturalmente alagadas pela chuva ou pelos rios que cortam a Unidade de Conservação. Entretanto, em um estudo publicado em 2024, um grupo de pesquisadores aponta uma perda de 48% dessas áreas na região ocupada pelos búfalos ferais. Os animais criaram um labirinto de trilhas que espalha a água de forma artificial, alterando completamente o ciclo hídrico da região.
Segundo os autores, isso acontece porque os búfalos andam em manadas e percorrem sempre os mesmos caminhos. O peso e o tamanho dos animais, que podem chegar até 900 quilos, abrem trilhas nas áreas alagadas, espalhando a água para locais onde naturalmente ela não chegaria.
Os registros também mostram um “deserto” onde antes existiam diversas espécies da fauna e flora. O comportamento e o porte dos búfalos causa a desertificação de campos gigantes dentro da Rebio Guaporé.
Crise ambiental acontece no encontro de dois biomas ameaçados
A pesquisa “Búfalos Ferais (Bubalus bubalis) em Áreas Protegidas: um estudo de caso na Reserva Biológica do Guaporé, RO”, publicada na Revista Eletrônica do ICMBio, reforça que os animais estão em uma região de transição entre a Amazônia e o Cerrado, dois dos biomas mais ameaçados do país.
Espécies nativas, como o cervo-do-pantanal e a onça-pintada, correm sérios riscos. Como os búfalos não são nativos do Brasil, não possuem predadores naturais que controlem sua população. Essa característica favorece o crescimento populacional e prejudica outras formas de vida.
A expansão da população de búfalos também se aproxima cada vez mais da Amazônia Boliviana, que faz fronteira com Rondônia.
Após a análise de imagens aéreas e da distribuição dos animais, a pesquisa conclui que “a presença dos búfalos ferais é uma ameaça às populações, comunidades e ecossistemas naturais da Rebio Guaporé. Há indícios de que os búfalos interferem na dinâmica das populações animais e vegetais, além de contribuírem para a alteração dos ecossistemas”.
Junto a isso, um agravante. A Rebio Guaporé é vizinha da Terra Indígena Massaco, onde vivem povos isolados.

Cervo do pantanal, animal ameaçado de extinção, sofre os impactos da presença de búfalos nas reservas de Rondônia. Foto: Wikimedia Commons.
Tentativas desastrosas de controle causaram mais danos
Nos anos 1990, o Estado de Rondônia finalmente decidiu agir, mas com métodos questionáveis.
Em 1991, o governo contratou, em condições obscuras, um empreiteiro chamado José Remy Santiago para capturar e remover parte dos búfalos e bovinos da Fazenda.
O pagamento pelos serviços foi feito em arrobas de búfalos e cabeças de gado, mas não há registros transparentes do destino dos animais retirados. Além disso, a operação ignorou completamente qualquer preocupação ambiental ou científica.
Os métodos utilizados foram brutais. Com explosões de rojões, os trabalhadores afugentavam os búfalos para áreas cercadas, provocando um efeito desastroso: os animais, aterrorizados, fugiram da Fazenda Pau D’óleo para territórios ainda mais afastados, invadindo a Reserva Biológica do Guaporé.
Para capturá-los na Reserva, Remy abriu uma estrada de 23 quilômetros em plena Unidade de Conservação, ergueu cercas e construiu currais utilizando madeira retirada ilegalmente da própria floresta protegida. As atividades destruíram habitats e causaram o desaparecimento de populações de aves, incluindo um grande ninhal de araras-canindé.
A resposta do Governo foi tão caótica quanto a operação. Em 1993, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) revogou a autorização de captura dentro da reserva, mas no ano seguinte, sob nova gestão, a permissão foi concedida novamente.
Entre 1991 e 1994, cerca de 2.000 a 3.000 búfalos foram retirados da região, mas o problema só piorou.
Com os danos causados à reserva e a multiplicação descontrolada dos animais remanescentes, o Ministério Público interveio, levando o caso aos tribunais. Em 1997, uma Ação Civil Pública (ACP) foi movida contra o Ibama e o Estado de Rondônia pelos danos ambientais causados na tentativa fracassada de controle.
Por que nada foi feito?
A resposta é uma combinação clássica de burocracia, falta de recursos e desinteresse.
O problema dos búfalos na Rebio Guaporé é conhecido há pelo menos 40 anos, mas as soluções sempre esbarraram em dificuldades operacionais e na disputa de responsabilidades entre órgãos estaduais e federais.
A área onde os búfalos vivem é de difícil acesso, sem caminhos terrestres ou fluviais. A remoção dos animais, vivos ou mortos, é praticamente inviável.
Além disso, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a falta de controle sanitário, como vacinação, torna a carne imprópria para consumo. Os custos logísticos para lidar com os animais também são elevados.
O MPF alerta que a situação pode se tornar irreversível, manchando inclusive a credibilidade da cadeia pecuária de Rondônia, já que os búfalos sem controle sanitário podem representar um risco epidemiológico.
Em 2016, a Lei Estadual nº 3.771 autorizou o abate dos búfalos, mas, como as reservas federais não são geridas pelo Governo de Rondônia, a ideia nunca saiu do papel.

Rebanho formado por gigantes de até 900kg ameaça reservas que ficam no limite entre a Amazônia, Cerrado e Pantanal. Foto: Cicero Pedrosa Neto / Amazônia Real.
Nova ação
No início de 2025, o MPF ajuizou uma nova Ação Civil Pública contra o Estado de Rondônia e o ICMBio, responsável por fiscalizar as reservas brasileiras. O processo se deu após o órgão constatar a morosidade de ambos na resolução do problema.
Segundo a denúncia, os búfalos estão ocupando 12% da Rebio Guaporé.
O MPF pediu que a Justiça Federal determine um Plano de controle e Erradicação da Espécie Exótica Invasora em, no máximo, 10 meses, a ser elaborado pelo ICMBio. Cabe ao Governo de Rondônia executar o plano em dez dias após o recebimento do documento.
A gestão estadual deve, ainda, arcar com os custos da elaboração pelo ICMBio de um plano de recuperação de área degradada para a Reserva Biológica do Guaporé.
A Ação Civil Pública assinada pelo procurador Gabriel Ferreira pede que o Estado de Rondônia seja obrigado a pagar R$20 milhões em indenização pelos danos. Os recursos devem ser usados para medidas de reflorestamento das unidades de conservação situadas em Rondônia.
“Em 2030, em 2040, quantos animais vão existir no Vale do Guaporé sem qualquer controle? Qual vai ser o tamanho do dano ambiental? São riscos que hoje são até pequenos, mas pode ser que seja incontrolável, pode ser que seja irreversível e precisamos agir agora. O que nós queremos é que haja um compromisso do IMCBio e do Estado de Rondônia e um cronograma de ações, porque nós não podemos mais esperar para ver o que vai ser desse problema”, pontua o documento.
Outra questão importante abordada na ACP é a afirmação de que os problemas na Rebio Guaporé não se restringem apenas aos impactos sobre a fauna e flora locais, mas podem comprometer também a imagem do Brasil em relação a compromissos internacionais de preservação ambiental.
O que dizem os envolvidos?
O governo rondoniense afirma estar “trabalhando na elaboração de um projeto que envolve o levantamento dos impactos ambientais causados pela presença dos búfalos” e que, a partir desse estudo, pretende criar um plano para mitigar os impactos e avaliar alternativas à erradicação.
Em nota, o ICMBio, pontua que “a compactação do solo, por sua vez, promove o escoamento e redução drástica da disponibilidade de água, afetando diretamente a vegetação nativa desses ambientes, que podem desaparecer completamente com o passar do tempo”.
Sobre a solução, o órgão afirma que analisa tecnicamente uma alternativa mais viável para a retirada dos búfalos, tendo em vista as dificuldades logísticas para a destinação dos animais selvagens. Além disso, alega que estão em andamento pesquisas para coletar informações detalhadas sobre a população de búfalos, sua origem, impactos ambientais e possíveis métodos de manejo e erradicação.

Presença de Búfalos causa desertificação em reservas na Amazônia. Foto: NGI CAUDÁRIO GUAPORÉ
Cadê a floresta que estava aqui?
Enquanto isso, os búfalos continuam livres, crescendo em número e ampliando seu domínio sobre a região.
A cada ano que passa, o problema fica maior, os custos aumentam e a chance de uma solução viável parece cada vez mais distante.
Resta saber se o Estado de Rondônia finalmente assumirá a responsabilidade por esse legado de abandono ou se vai continuar empurrando o problema com a barriga, enquanto os búfalos empurram a floresta para o desaparecimento.
Texto: Jaine Quele Cruz / João Felipe Serrão
Edição e revisão: Juliana Carvalho
Montagem de Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón