Corda do Círio de Nazaré: cordão umbilical que une fiéis à imagem de Nossa Senhora
Ela é o elo entre o sagrado e o mundo físico para milhões de pessoas que "pagam promessa" e "vão na corda" todos os anos na maior festa religiosa da Amazônia e que é reconhecida como Patrimônio Imaterial da Humanidade, pela Unesco
Mulher segura a corda do Círio. Foto: Divulgação Setur-PA
Ela tem 400 metros, pesa cerca de 700 quilos e, desde a segunda metade do século XIX, é um dos principais símbolos do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Quem olha a imagem aérea da grande procissão realizada todos os anos no segundo domingo de Outubro consegue ver, no mar de gente, o ponto destacado que é a Berlinda que leva a imagem peregrina de Maria de Nazaré. Em volta dela, estão os guardas de Nossa Senhora da Basílica Santuário que cuidam da proteção da imagem e, ao redor deles, estão os promesseiros da corda.
Gente que está ali agradecendo bênçãos recebidas ou que, em sacrifício, caminha e pede ajuda e proteção à Santa. Eles disputam cada centímetro do objeto que permite que eles conduzam a imagem de Nossa Senhora de Nazaré pelas ruas de Belém do Pará em duas das principais procissões: a Trasladação e a “Grande Romaria” no “Domingo do Círio”.
Um ato que exige resistência e esforço físico em um dos lugares mais disputados para quem “sai no Círio” todo ano. Um ato de fé reservado a quem recebeu ou quer ser agraciado com grandes milagres e um sacrifício considerado difícil até para romeiros experientes.
Conexão Materna com a Virgem de Nazaré
É o caso de Tom Vilhena que, em 2024, vai completar 15 anos acompanhando o Círio de Nazaré “na corda” para pagar a promessa que fez quando a mãe dele, dona Maria José, passou três meses em coma, em 2009. Foi quando, pela primeira vez, ele se viu sem o seu principal porto seguro e, em um momento de desespero, Tom recorreu ao colo de outra Maria – a “de Nazaré” – para pedir ajuda.
Eu me emociono só de imaginar em perder a minha mãe. Mas, graças a Deus, eu tenho uma outra mãe, que também se chama Maria, que cuida de mim lá de cima. São essas duas Marias que me dão força pra continuar e repetir este gesto de fé e devoção por quase 15 anos. É um sentimento que não tem explicação”.
É por meio da corda que os promesseiros exercitam um dos principais laços que mantém junto ao Círio de Nazaré: A relação “materna” com Maria.
Para o historiador e cientista da religião, Márcio Neco, a corda passou por um processo de “sacralização popular”. Embora a igreja não a encare como um amuleto a ser venerado, o mesmo não pode ser dito sobre os fiéis. Uma das explicações para isso seria um processo antropológico manifestado de forma específica durante as romarias do Círio de Nazaré.
A figura da mãe é aquela que sempre conduz o filho, mas no Círio este papel se inverte. A corda proporciona o papel invertido: é o filho que mesmo pedindo ajuda, pagando promessa, fica na condição de conduzir a mãe. Por isso que a corda, então, vai passar por um processo de sacralização, vai se tornar um dos maiores ícones do símbolos do Círio. E o filho, automaticamente, vai se sentir também atrelado na corda, que forma uma espécie de cordão umbilical”.
E, quando o Círio acaba, levar um pedaço da corda para casa, tem um profundo significado. O romeiro Valdo Ferreira acredita que:
Quando o Círio acaba, todo mundo quer levar um pedaço da corda. Eu nunca entendi o porquê, mas eu acho que a corda tem esse poder de transmitir – para outras pessoas – aquilo que só é vivido no Círio”.
De fato, dias após o Círio do ano passado, o governador do Pará, Helder Barbalho, presenteou o Papa Francisco com um pedaço de um centímetro e meio desse símbolo do Círio de Nazaré durante uma visita ao Vaticano para convidar o líder da Igreja Católica para participar da programação da COP 30, agendada para 2025, em Belém.
Ligados à Santa
Mas nem sempre a Corda esteve presente no Círio. Na verdade, foi apenas por volta de 1868, que ela se integrou à festividade. Até então, a Berlinda com a imagem era puxada por uma carruagem guiada por tração animal. Mas naquele ano, uma cheia na Baía de Guajará alagou a orla de Belém, afetando o trajeto da procissão.
O carro de bois responsável por fazer a tração da berlinda ficou atolado em uma área de igapó próxima a feira do Ver-o-Peso. Um dos comerciantes teve a ideia de usar uma corda para ajudar a mover a Berlinda. Vários fiéis, então, se empenharam nessa missão de puxar a corda para conseguir fazer o veículo com a Berlinda andar.
O plano deu certo, o carro desatolou. Mas aquela sensação de “ajudar” a levar Nossa Senhora se tornou uma necessidade coletiva. A partir de então, os organizadores passaram a levar uma corda durante a procissão, por garantia. Enquanto os devotos passaram a fazer questão do uso dela. Até que décadas depois, por volta de 1885, ela, finalmente, foi oficializada como parte do rito do Círio.
Mas a presença desse símbolo nem sempre foi bem vista pela igreja. Segundo o pesquisador Márcio Neco, o uso da corda sempre foi uma figura polêmica no Círio. Em 1926, o arcebispo Dom Irineu Jofilly publicou uma carta circular para regulamentar a realização do Círio de Nazaré. O documento, entre outras coisas, abolia o uso da corda na procissão. A ideia da corda como um “lugar” de devoção, sacrifício e recompensa não agradava a Igreja.
A proibição encontrou resistências populares e também políticas. Ainda assfim, durou cinco anos. A corda só voltou ao Círio quando o interventor Magalhães Barata assumiu a intendência de Belém e intermediou, junto à igreja, para o retorno do símbolo de fé em 1931.
Corda 100% Amazônida
Até 2022, as cordas do Círio eram produzidas em Santa Catarina, na região Sul do país. O material utilizado era fibra de sisal, uma fibra vegetal muito resistente, mas dura, o que resultava em muitos machucados para os milhares de fiéis que acompanhavam o Círio na corda.
Em 2024, pelo segundo ano consecutivo, as cordas que serão usadas no Domingo do Círio e na Transladação foram confeccionadas na cidade
o Pará. Além de serem produzidas na Amazônia, a matéria prima das cordas também foi alterada. Agora, elas são de fibras de malva e juta, matérias primas típicas da região amazônica que também proporcionam um maior conforto para os promesseiros, por serem mais leves e macias.
Pesquisas realizadas pelo engenheiro mecânico Nagib Charone, professor do Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Pará (Itec/UFPA) estimam que pelo menos sete mil pessoas de cada vez tocam na corda ao longo do Círio. Mas ele explica que ainda mais gente “vai na corda” porque:
Além dos sete mil que tocam na corda, há um sistema em formato de espinha de peixe formado por aqueles que seguram a corda, os que seguram as mãos que seguram a corda e o terceiro grupo, que fica mais atrás, segurando onde pode naqueles que seguram a corda. Não exatamente, os mesmos sete mil tocam a corda o tempo todo ao longo da procissão, mas os indivíduos desses grupos se revezam nessa caminhada tentando ficar o mais próximo possível dela [a corda]”.
Juntos, eles exercem uma resistência de cerca de 12 toneladas sobre o objeto feito para suportar o dobro disso: quase 25 toneladas em suas cerca de 60 milímetros de diâmetro. Uma força tão grande que, na época em que os testes foram realizados, levava a corda a terminar o trajeto mais “larga” do que começou. “Ela chega a esticar e aumentar seu comprimento em até 10% pela força que essas mãos a seguravam e puxavam”, lembra o engenheiro da UFPA.
A imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré é transportada dentro da Berlinda que, por sua vez, está sobre um veículo especial. Nele são atreladas estruturas metálicas chamadas de “estações”, que conectam a corda em um sistema que utiliza aros e ganchos especiais.
As estações que já foram produzidas a partir de vários materiais, atualmente são feitas de ligas típicas da aviação para criar objetos mais resistentes e leves, para facilitar o seu transporte pelos promesseiros. Porém, os materiais usados estão sempre sendo reavaliados. No ano passado, as cordas passaram por problemas mesmo antes do início das procissões. Vários pontos de rompimentos foram registrados ao longo das cinco estações de cordas atreladas à Berlinda.
Segundo Antônio Souza, diretor de procissões do Círio, o incidente aconteceu por conta do rompimento das argolas utilizadas na atracação da Berlinda. Ele garante que em 2024 o problema não vai voltar a acontecer porque novos nós e formas de conexão foram testados para prevenir o problema.
A corda é paraense, com matéria-prima amazônica. Tudo isso, pra gente, é um presente. Afinal, o Círio é de Belém do Pará. Então, nada mais bacana do que produzir a corda no nosso estado. A gente fez vários testes e detectamos o problema. A partir daí chegamos em um protótipo e acreditamos que não vamos enfrentar rompimentos neste ano’.
À espera do Círio 2024
Em contagem regressiva para as festividades do Círio 2024, a Corda que será usada no Círio e a que vai para a Transladação foram entregues pela Companhia Textil de Castanhal à Diretoria da Festa de Nazaré no dia 4 de setembro e atualmente estão guardadas na na Estação Padre Luciano Brambilla, no estacionamento da Basílica Santuário, no Centro Social de Nazaré. O momento desta entrega já foi marcado por emoção para quem mal pode esperar pelo início do Círio.
Valdo Ferreira foi um dos promesseiros que chegou cedo para acompanhar a cerimônia de chegada da corda. Em 2022, ele fez uma promessa à Nossa Senhora de Nazaré para ser aprovado no curso de educação física da Universidade do Estado do Pará (UEPA). O pedido foi atendido. Segundo ele, a aprovação não veio apenas por conta dos estudos. Ele garante que a Santa intermediou.
Eu tenho uma brincadeira que eu digo que ela é a ‘fofoqueira raiz’ da minha vida, porque ela sabe de tudo. Não existe nada que aconteça na minha vida que não passe pelas mãos dela”.
A emoção tomou conta até mesmo de quem está acostumado a viver bem perto dos símbolos da Festa de Nazaré. Mesmo com mais de 10 anos dedicados à Guarda e ao Círio, o Oscar Pimenta conta que todos os anos sente a mesma emoção, como se fosse o primeiro. Ele estava entre os responsáveis por escoltar a corda até Belém. Segundo ele, o trabalho da Guarda de Nazaré não se limita ao segundo domingo de outubro.
A gente costuma dizer que o Círio é apenas a cereja do bolo. O nosso trabalho na guarda é dia a dia na Basílica e nas comunidades. Então, querendo ou não, a gente entende como uma grande festa e a gente se prepara para isso. Então, não é algo físico ou mental, mas sim espiritual. Essa preparação é feita diariamente na Basílica, nas missas, nas nossas orações, nas nossas espiritualidades”.
As cordas passarão ainda por uma revisão final no dia 28 de setembro e, então, devem ficar expostas ao público na Estação das Docas, na orla de Belém.
Na próxima publicação da Série sobre o Círio de Nazaré, conheça cada uma das 14 Procissões do Círio em uma fotogaleria especial organizada pela Amazônia Latitude para te explicar o porquê de o Círio ser, na verdade, mais de um.
Reportagem: Elielson Almeida
Montagem de Página: Alice Palmeira
Revisão e edição: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Cólon