O grito do Guamá: movimentos globais conectam a insurgência da Cúpula dos Povos à luta por Justiça Climática na COP 30
Evento resgata a tradição das lutas globais, unindo o MST a militantes de todo o mundo em defesa da Justiça Climática e da Agroecologia Amazônica

O “grito do Guamá” conecta a insurgência da Cúpula dos Povos à luta por Justiça Climática e Agroecologia na Amazônia. Arte: Fabrício Vinhas.
Em meio à grandiosidade diplomática da COP 30 em Belém, onde líderes globais, representantes de países e grandes corporações negociam o futuro do clima, pulsa um evento paralelo com a força da terra e das águas: a Cúpula dos Povos. Reunindo militantes do mundo inteiro — de camponeses do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a líderes indígenas da Ásia, quilombolas e ativistas de justiça racial — o encontro, que acontece de 12 e 16 de novembro, se estabelece como um potente grito de resistência no coração da Amazônia.
É longe dos muros oficiais da “Zona Azul” da ONU que a sociedade civil organizada denuncia as “falsas soluções” de mercado e exige que a crise climática seja tratada não como um balanço técnico de carbono, mas como uma urgente e inegociável questão de Justiça Social, reparação histórica e demarcação de territórios.
A urgência desse contraponto em solo amazônico não é acidental, é estratégica. A realização da Conferência oficial em Belém traz para o centro do debate global a intrínseca conexão entre a floresta, o clima mundial e a sobrevivência dos povos que a mantêm viva. Os movimentos, em coro, insistem que qualquer solução climática que não garanta o Bem Viver das comunidades locais e dos povos tradicionais está fadada ao fracasso.
O conceito de Bem Viver – um princípio que transcende o mero crescimento econômico, priorizando a harmonia entre as pessoas e a natureza – torna-se, assim, a pedra angular da contrapauta popular. Para a Cúpula, a manutenção da Amazônia não é uma questão de tecnologia de monitoramento ou de balanço de carbono, mas sim de garantir que os modos de vida sustentáveis e a autonomia territorial de quem sempre conservou o bioma sejam respeitados e fortalecidos.
A genealogia da Contracúpula e a crítica ao multilateralismo
A Cúpula dos Povos, que será realizada em Belém de forma paralela à 30ª Conferência das Partes (COP 30), é a manifestação mais recente de uma tradição histórica de contraponto popular aos grandes fóruns globais. Sua genealogia remonta à Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro (Rio-92), onde a sociedade civil organizada, percebendo o viés oficialista das negociações da ONU, criou um espaço autônomo e democrático para denunciar a injustiça ecológica e propor soluções de base.
Desde então, em praticamente todas as COPs, esta “contracúpula” se estabelece como o caldeirão da militância mundial, articulando redes e movimentos internacionais para reiterar que o problema do clima é, sobretudo, político, social e econômico.
É nesse contexto de afirmação da vida sobre o lucro que se insere o protagonismo vibrante de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A participação articulada das coordenações do MST do Pará e do Maranhão, com forte engajamento de suas lideranças de bases e jovens, simboliza a fusão inseparável entre a luta histórica pela Justiça Social no campo e a urgência climática global.
Na visão desses militantes, a crise ambiental configura-se como a face mais aguda de uma profunda crise social e agrária, visto que os agentes responsáveis pelo desmatamento e pela poluição são os mesmos que, historicamente, perpetuam a negação do acesso à terra e a exploração do trabalho. Consequentemente, a proteção efetiva da Amazônia transcende os fundos de investimento ou a mera financeirização da floresta, alicerçando-se, fundamentalmente, na implementação da Reforma Agrária Popular e na irrestrita garantia da soberania alimentar.

Para o historiador Pablo Carvalho Neri (MST), a Cúpula dos Povos é um esforço coletivo de mais de mil organizações do mundo para “convergir lutas e processos transformadores protagonizados pelos povos”. Foto: Acervo pessoal.
Essa percepção encontra respaldo na articulação global dos movimentos. Pablo Carvalho Neri, jovem integrante do MST, historiador e especialista em economia e desenvolvimento agrário, analisa: “A ‘Cúpula’ se inscreve em um esforço coletivo, de mais de mil organizações do mundo, para convergir lutas e processos transformadores protagonizados pelos povos”.
O especialista defende que “esse levante se faz imperativo em face da comprovada ineficácia do multilateralismo da ONU e da emergência dos efeitos climáticos extremos, os quais atingem parcelas cada vez mais amplas da população, sendo as classes mais vulneráveis as que suportam, invariavelmente, os ônus mais severos”. Para a militância, essa mobilização é uma resposta direta à falência das negociações oficiais em entregar soluções justas.
O protagonismo da agroecologia maranhense e paraense
O enfrentamento da crise climática exige a proposição de soluções populares e soberanas. Esta premissa se materializa na Cúpula dos Povos, onde o MST busca conferir máxima visibilidade e materialidade à sua prática da agroecologia em larga escala.
A estratégia envolve a abertura de assentamentos regionais, a exemplo do Abril Vermelho e do Mártires de Abril, ambos no Pará. O objetivo é permitir que delegações internacionais e a imprensa conheçam in loco a produção de alimentos saudáveis e os processos de recuperação de áreas outrora degradadas. Tais assentamentos são apresentados como laboratórios vivos, demonstrando o modelo agroecológico como uma solução concreta para o sequestro de carbono e um contraponto direto ao modelo predatório do agronegócio, que historicamente impulsiona o desmatamento na região.

A verdadeira engenharia climática está nas mãos de quem cultiva a terra, garantindo a regeneração do solo, a soberania alimentar e a defesa efetiva do bioma amazônico. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil.
A tese central defendida pelo MST é que a defesa da Amazônia está intrinsecamente ligada ao assentamento das populações rurais pelo Brasil e à garantia de que a terra cumpra sua função social e ecológica.
A exigência de que a terra cumpra sua função social e ecológica, aliás, transcende a pauta de distribuição fundiária; ela se estabelece como um imperativo climático. A agroecologia, neste contexto, é vista não apenas como um método de cultivo, mas como um projeto civilizatório que reorganiza as relações de produção, consumo e convívio com o bioma. Agroecologia pode ser entendido como um novo paradigma para os próximos anos e séculos.
Os assentamentos do MST, ao adotarem sistemas agroflorestais e o manejo sustentável, demonstram a capacidade de regeneração do solo, aumento da biodiversidade e, crucialmente, de produção de alimentos livres de agrotóxicos em um dos ecossistemas mais sensíveis do planeta.
Essa bandeira ganha relevância adicional também no Maranhão, cuja porção amazônica tem sido historicamente marcada pelo avanço da fronteira agrícola predatória e pela monocultura, principalmente de eucaliptos, e outros fatores que o colocam entre os maiores emissores de gases de efeito estufa do país.
A mobilização do MST maranhense na Cúpula dos Povos visa expor essa dupla face da crise: a violência da concentração fundiária somada ao impacto global da degradação ambiental. “Do Maranhão, teremos a participação de 200 delgados/as de todas as regiões do estado. Nosso foco é denunciar que o Agronegócio é um dos principais responsáveis pelas mudanças climáticas no Brasil”, acentua Divina Lopes, educadora popular, militante do MST da Região Amazônica, mestre em Desenvolvimento Territorial na América latina e Caribe (UNESP).
Divina reitera a conexão entre a luta local e a responsabilidade global. “Nós não podemos dissociar a luta pela Reforma Agrária Popular aqui no Maranhão do debate sobre a crise climática. As corporações que financiam o agronegócio destrutivo são as mesmas que se apresentam como ‘solução’ na COP 30”, pontua.
Para ela, a agroecologia é a prova material de que existe outro caminho: “É uma crítica viva ao modelo vigente, e isso é o que levaremos para Belém: a força da nossa produção e da nossa resistência”. A declaração sintetiza o espírito de contraponto: a exposição de uma alternativa concreta, baseada na vida no campo, frente às propostas tecnocráticas.

Divina Lopes, militante do MST da Região Amazônica, enfatiza que não se pode dissociar a luta pela Reforma Agrária Popular do debate sobre a crise climática. Foto: Acervo pessoal.
Reparação histórica: o eixo da dívida climática
A Cúpula dos Povos em Belém não se limita à defesa de seus próprios projetos; ela constrói uma contrapauta que exige a transformação radical do sistema global de governança climática. Um dos eixos mais enfáticos é a demanda por reparação histórica. Os movimentos, amparados pela experiência de seus militantes no campo, argumentam que o Norte Global, historicamente responsável pela maior parte da poluição e da emissão de gases que causaram o aquecimento global, tem uma obrigação moral e financeira inadiável para com o Sul Global.
Essa demanda se traduz na exigência de um financiamento climático robusto, que não seja calcado em empréstimos ou condicionalidades neoliberais. É preciso que as nações ricas honrem os compromissos para que os países em desenvolvimento possam financiar a adaptação aos efeitos climáticos, a transição energética justa e o desenvolvimento sustentável de suas comunidades.
A lógica é clara: a riqueza acumulada por séculos de extrativismo e industrialização irresponsável deve agora ser reinvestida na garantia da sobrevivência do planeta e na Justiça Social. “Para enfrentar a crise climática é preciso que os povos e seus territórios estejam no centro do debate, com soluções populares e soberanas. E é isso que estaremos fazendo na prática em Belém durante a Cúpula dos Povos da COP30”, reforça Pablo.
Além da reparação financeira, há o combate inegociável a projetos que mascaram a continuidade do extrativismo. A rejeição veemente à prospecção de combustíveis fósseis na região amazônica é um ponto de união na Cúpula, que a vê como uma contradição insustentável. A luta é por uma transição energética que seja popular, que respeite os biomas e que não sacrifique as comunidades locais em nome de uma falsa segurança energética global.
O clamor do rio Guamá e a rejeição às falsas soluções
Realizar a Cúpula dos Povos em solo amazônico confere ao evento um significado político e ecológico de profundo alcance. Pela primeira vez, a contracúpula acontece neste território vital, pressionando os negociadores da ONU a não ignorarem o elo direto entre o clima global e as violências locais do desmatamento, da grilagem e da exploração mineral.
A expectativa é que o evento mobilize mais de 10 mil ativistas, entre delegados internacionais, militantes locais e da sociedade civil paraense. Um dos momentos mais emblemáticos da Cúpula é sua abertura simbólica, marcada por uma barqueata no rio Guamá, com a participação de centenas de embarcações de comunidades ribeirinhas e camponesas. Este ato, que leva a voz dos povos da água para o centro da cidade, busca garantir que, enquanto os líderes mundiais negociam a portas fechadas na COP, o clamor da sociedade civil e das comunidades afetadas ecoe de forma inegável.

A abertura da Cúpula dos Povos com uma barqueata no rio Guamá busca garantir que o clamor dos povos da água ecoe em contraponto às negociações oficiais da COP 30. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.
A mobilização das bases, que inclui a organização de plenárias, debates e intercâmbios nos espaços acadêmicos e populares da cidade, serve como um motor de pressão sobre os compromissos oficiais.
O ponto fulcral da Cúpula reside na rejeição veemente aos mecanismos de mercado que, segundo os movimentos, apenas perpetuam a lógica extrativista arcaica sob uma fachada verde. O Mercado de Carbono, por exemplo, é denunciado como uma “falsa solução” que permite aos grandes poluidores do Norte Global seguir emitindo, ao comprar créditos de conservação no Sul. A crítica é incisiva: em vez de reduzir emissões na fonte, o sistema financeiriza a natureza, transformando o ar em um ativo negociável e, em última instância, privatizando o direito dos povos ao uso sustentável de seus territórios.
Esta oposição se estende a programas como o Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+) e a projetos de “Net Zero” corporativos. A militância argumenta que tais iniciativas frequentemente resultam em greenwashing (lavagem verde), deslocando a responsabilidade sistêmica para as comunidades tradicionais, que são forçadas a abrir mão do manejo de suas terras para que o carbono permaneça estocado, sem que haja uma transformação estrutural na matriz produtiva global.
Na contrapauta, a solução não é a gestão da crise pelo mercado, mas a transição sistêmica a partir da soberania popular e da Agroecologia.
A força da convergência global e a construção do futuro
A Cúpula dos Povos, ao congregar a Via Campesina e outras redes internacionais de base, reafirma o caráter transnacional da luta por Justiça Climática. A Via Campesina é uma articulação internacional de movimentos de organizações do campo que lutam pela terra, por reforma agrária e por uma vida melhor e, lógico, pela implantação de um novo modelo, fora do convencional, a chamada agroecologia. O MST, bem como outras organizações do campo no Brasil, faz parte dela.
A presença de delegações de outros países amazônicos, da África e da Ásia confere à agenda um peso de geopolítica popular, demonstrando que a solução para a crise passa pela solidariedade Sul-Sul e pela construção de alternativas econômicas que desafiam a “hegemonia neoliberal”. A experiência de produção agroecológica do MST no Pará e Maranhão, por exemplo, dialoga diretamente com as práticas de resistência camponesa nas Filipinas ou na Índia.
Nesse processo, a juventude emerge como vetor de esperança e radicalidade. Lideranças jovens, muitas delas assentadas e formadas nas escolas do campo, estão na vanguarda da articulação, utilizando o conhecimento científico-popular da agroecologia para fundamentar sua crítica política. Para esta nova geração, não basta adaptar-se à crise; é preciso preveni-la, atacando suas causas na raiz: o modelo capitalista e a violência colonial que ele impõe sobre a natureza e o trabalho. A vitalidade dessa juventude assegura que o projeto de Reforma Agrária Popular será o eixo de enfrentamento por décadas vindouras, redefinindo o futuro do campo e da floresta.
O objetivo final de toda a mobilização é forçar a adoção de medidas que valorizem a vida, os territórios e a Justiça Social acima dos lucros corporativos e das métricas de mercado. O grito que ecoa do Guamá, veiculado pela pluralidade de vozes que compõem a Cúpula dos Povos, é um recado irredutível. Ele confronta a formalidade protocolar da COP 30 com a urgência da sobrevivência.
A lição que Belém oferece ao mundo é que a verdadeira engenharia climática não está nos traders de carbono, mas sim nas mãos dos agricultores e guardiões da terra.
Portanto, o legado da Cúpula dos Povos será o de demonstrar que, enquanto a “Zona Azul” da ONU se ocupa de gerenciar o colapso, a “Zona Verde/Vermelha” do povo está dedicada à árdua e fundamental tarefa de construir, de baixo para cima, o único futuro possível: aquele onde a Justiça Social e a Justiça Climática são inseparáveis.
Texto: Zé Luís Costa
Revisão e Montagem de página: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón
