Discussão sobre legado de Noel Nutels e direitos indígenas abre webinar Amazonia Now

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Diretor de ‘O Índio cor de rosa contra a fera invisível’, Tiago Carvalho falou sobre a inspiração do sanitarista

Quando o médico Noel Nutels sentou-se em uma sala de Brasília para depor à CPI do Índio, em 1968, acumulava mais de 20 anos de experiência no tratamento de povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas.

Entre 1940 e 1970, o sanitarista nascido na Ucrânia e naturalizado brasileiro idealizou o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (Susa), vinculado ao Ministério da Saúde, cujo objetivo principal era combater a tuberculose entre populações no interior da Amazônia.

“A tuberculose vem matando índios desde Nóbrega, desde Anchieta, que tinham boas intenções, mas não sabiam que eles é que traziam, que contaminavam”, diz Nutels.

Seu depoimento à CPI sobre a questão indígena, momentos antes da radicalização da ditadura militar no Brasil, conduz o documentário “O Índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels” (2019), dirigido por Tiago Carvalho. A exibição do filme, ainda inédito no Brasil, no domingo (15) abriu a programação do webinar Amazonia Now, que começou nesta segunda-feira (16) e vai até o dia 19 de novembro.

“Essa expressão pacificar é do índio em relação ao civilizado. É o índio que tenta pacificar o civilizado há anos. E ainda não conseguiu”, diz o médico.

As primeiras imagens mostram diversos povos durante a sua rotina normal. Kayapós, Xavantes e Kuikuros trabalham, plantam, relaxam, conversam, as crianças nadam no rio. A montagem traz um argumento potente: o depoimento que acompanha as imagens já sinaliza nos primeiros minutos as ameaças aos modos de vida diferentes.

’Não é negócio ser índio’

“Noel era um médico nessa expedição que foi ao interior do Brasil para colonizá-lo, construir aeroportos e permitir acesso. E os exploradores, de certa forma, se encontraram pela primeira vez com um grande número de nações nativas, quase por acidente; e eles começaram a morrer por gripe e sarampo. Eu conhecia sua história por causa do meu interesse pela época, mas não sabia que ele era cineasta”, afirma o diretor.

Acontece que as imagens de “O Índio cor de rosa” são baseadas em uma vasta quantidade de arquivos do próprio Noel, que registrou em 16 mm e com fotografias as suas incursões e os trabalhos.

As ameaças estavam concentradas em duas frentes: as históricas missões religiosas e o progresso movido pelos coturnos.

“A técnica catequética consiste em abalar a estrutura cultural daquela gente, imbuindo a gente do espírito do pecado, coisa que não tinham”, segue o depoimento do médico. “Quando percebe que o deus ensinado tem seus problemas, o indivíduo já está prestes a morrer de tuberculose ou diarreia. E já não é mais índio, é um pária”.

Além do trecho, preocupações com a grilagem e as invasões de terra também já estavam presentes, assim como a ação do Estado para garantir os direitos dos invasores. Como diz o médico, comprar a terra não era problema. O problema era o Estado brasileiro vender e permitir a transação.

“Aí me disse um indivíduo, já com roupas da cidade: eu vou deixar de ser índio, não é negócio ser índio. Eles invadem a terra e têm os papeis”, lembra o médico durante o depoimento.

’Ali dorme o Pai-da-mata, ali é a casa das caiporas’

Enquanto as imagens mudam e o cotidiano dá lugar a danças de roda com freiras, fazendas e Brasília, o filme comprova a realização dos massacres ao longo dos anos.

Mostra a piora da saúde bucal de pessoas do povo Xavante, no Cerrado, que perderam os dentes de forma generalizada em 20 anos. Assim como exibe o chocante registro de Nutels, nas consultas que fez a um grupo de Pakaa Novos, que estava morrendo por inanição.

“Entre 1962 e 1963, na qualidade de setor de Saúde Aérea, fomos solicitados para atender um grupo de Pakaas que tinham uma doença misteriosa. Índios perseguidos desde o Tratado de Petrópolis com a Bolívia, em troca do Acre. É desde essa época que se mata Paakas Novos.”

E avisa o médico, antes de projetar a película, em 1968, aos ouvintes da CPI: “Vou projetar filme, o documento supera a má qualidade da película. A doença misteriosa, a causa de 300 mortes, de um grupo de 400, era a fome. Na verdade, morreram de fome”.

Legado

Além de explicar uma dedicatória a Bertha Nutels, filha do médico que permitiu a produção e pesquisa no próprio apartamento do médico, morto em 1973, Tiago Carvalho participou de uma conversa após a exibição do filme. O bate papo foi mediado pelo editor fundador da Amazônia Latitude e professor da Florida State University, Marcos Colón, com participação de Alice Lopes, estudante da mesma universidade.

“Foi uma experiência completa, fiquei curioso sobre o processo de seleção da música”, disse o professor Brian Deyo, da Grand Valley State University, de Michigan, EUA.

“Havia um desafio enorme de fazer um filme com imagens que não havíamos produzido, respondeu Tiago. As imagens do filme são compostas de arquivos cedidos por Bertha e pelo centro de documentação da Fundação Oswaldo Cruz, que financiou a produção.

“Tentamos achar alguma correspondência entre imagens e o depoimento. Mas parecia muito pouco. Então, quando começamos a montar a trilha sonora, deveríamos fazer de um jeito que ilustrasse Noel como um homem que pensava o Brasil. Usamos músicas de pessoas que também pensavam o Brasil: Villa-Lobos, Guilherme Vaz e Carlos Gomes”, contou.

Um dos grandes trunfos foi convidar cineastas indígenas para gravarem sons cotidianos e ambientes dos seus territórios, que podem ser ouvidos no filme e aplicam outra camada de sentidos à obra de Nutels.

Para o diretor, diferentes épocas dão diferentes interpretações aos registros feitos pelo médico, e mais do que isso: Noel Nutels é uma inspiração para pessoas que defendem que, enquanto sociedade, somos capazes de resolver nossos problemas.

A exibição e o bate papo abriram o webinar Amazonia Now. As próximas discussões acontecem de hoje até o dia 19 de novembro. O evento é transmitido via Zoom e as inscrições são gratuitas. Basta acessar o site da Florida State e fazer o registro. A íntegra da conversa com o diretor Tiago Carvalho está no link abaixo.

Acompanhe a cobertura completa do Amazonia Now neste link.

 

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