Conflitos socioambientais decorrentes da ação da empresa de papel e celulose em Imperatriz, Maranhão
[RESUMO] Com depoimentos e uma análise detalhada de empreendimentos, artigo mostra os efeitos de uma fábrica de celulose no ambiente e na economia de uma cidade maranhense.
Este trabalho é um desdobramento da monografia intitulada “A noção de desenvolvimento e a implantação da Suzano Papel e Celulose em Imperatriz (MA)” (2016), que refletiu sobre a dinâmica do processo de implantação de uma fábrica de papel e celulose, relacionando a situação com grandes monoculturas de eucalipto instauradas a partir da década de 90 e herança de uma lógica desenvolvimentista dos anos 1970.
Considero os conflitos socioambientais nos termos de Henri Acselrad, aqueles causados por “modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçadas
Nesse sentido, os conflitos socioambientais serão analisados a partir das interferências causadas aos modos de vida de povos e comunidades tradicionais que se viram afetados pela implantação de projetos de infraestrutura “afluentes” do Programa Grande Carajás (PGC): Projeto Celulose do Maranhão (CELMAR), de 1992, Ferro Gusa Carajás, em 2003, e Suzano Papel e Celulose, 2011 — sendo este último o foco da análise.
Os conflitos socioambientais são analisados conforme a compreensão de que as circunstâncias de implantação dos empreendimentos são definidas pelo contexto de políticas neoliberais adotadas em meados dos anos 90; ou seja, efetivando a execução de políticas defensoras da expansão e da modernização da agricultura por meio de incentivos ao agronegócio. No Maranhão, essa força se materializa nas monoculturas de soja e de eucalipto, inseridas na dinâmica de exportação de commodities.
A pesquisa identificou intensos conflitos, transformados em prejuízos às categorias sociais afetadas por empreendimentos ligados ao plantio homogêneo de eucalipto. Os projetos impuseram uma lógica de apropriação do território distante daquelas habituais a povos tradicionais e suas territorialidades. Isso porque essas propostas acionam um discurso “desenvolvimentista”, que traz para si a responsabilidade de levar os instrumentos para a “superação do atraso” às regiões em que se instalam, subjugando específicas formas de apropriação do território a partir de uma ótica evolucionista.
Levando em consideração o período de realização das pesquisas de campo, entre 2014 e 2016, quando a operação da Suzano Papel e Celulose se estabeleceu e gerou intensas discussões nas comunidades afetadas, a análise das representações de agentes sociais desses locais começou pelo contato de pesquisa com o trabalhador rural Daniel Nascimento e com a quebradeira de coco Maria Querobina, em eventos do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA).
O trabalho parte da compreensão de que a dinâmica representada por um modelo de desenvolvimento defendido pelo agronegócio e alicerçado em estratégias empresariais que se pretendem “modernizantes”, gera relações de desigualdade.
Tais estratégias têm causado interrupção dos modos de vida familiar e social, além de deslocamentos compulsórios nas comunidades próximas da sede do município de Imperatriz, especificamente no Projeto de Assentamento Vila Conceição I e nas comunidades Esperantina I e II, Nova Bacaba e São José da Matança, também localizadas nas proximidades da chamada “estrada do arroz” (MA-123). A via recebeu esse nome por causa da utilização de produtores para escoamento do grão, prática intensificada a partir da década de 60.
Portanto, a análise vai se desenrolar a partir dos pontos de integrantes das classes de quebradeiras de coco babaçu, posseiros e trabalhadores rurais, em diferentes momentos da implantação das fábricas e das mobilizações em resposta.
A coleta de dados foi realizada por meio da observação direta e de entrevistas pautadas em questionários semi estruturados. Procurei problematizar a realização da pesquisa a partir de uma sociologia reflexiva, conceito de Bourdieu, tentando relativizar ofício do pesquisador e a pesquisa durante o seu processo de construção. Além do mais, reitero o rompimento com os obstáculos epistemológicos enquanto exercício permanente ao processo de construção da mesma, possibilitando a problematização contínua de eventuais pré-noções relacionadas às situações estudadas.
Megaempreendimentos e monocultura: um histórico
As atividades de campo realizadas em junho de 2014, agosto de 2015 e março de 2016 evidenciaram situações geradas a partir da instalação da fábrica da Suzano Papel e Celulose nas comunidades Projeto de Assentamento Vila Conceição I, com acesso pela BR-010 (Belém-Brasília), e às comunidades Esperantina I e II, Nova Bacaba e São José da Matança, localizadas nas proximidades das antigas fazendas – aqui vale lembrar que representam concentração fundiária e determinam uma série de relações sociais no seu entorno – compradas para a construção da mencionada unidade industrial.
Percebi que não seria possível dissociar essas situações relacionadas à fábrica de um processo histórico delineado por projetos monocultores de eucalipto na região, também diversos entre si. Conflitos que até então estavam associados a grilagem e concentração fundiária na pecuária foram intensificados pela especulação de preço e consequente concentração da terra. Esse processo foi orientado por diferentes empreendimentos, que adquiriram pequenas e grandes propriedades para a implantação dos extensos plantios homogêneos de eucalipto.
Vale aprofundar a reflexão sobre os conflitos socioambientais relacionados aos empreendimentos com implantação parcial, CELMAR e Ferro Gusa Carajás. Além disso, problematizarei a instalação da fábrica da Suzano Papel e Celulose, observando conflitos específicos desta última.
O projeto CELMAR
No início da década de 80, o plantio de eucalipto já era experienciado numa fazenda adquirida pela então Companhia Vale do Rio Doce no município de Açailândia (MA). Contudo, a monocultura do eucalipto só tomou forma com a criação do projeto CELMAR, em 1992, em Imperatriz. Segundo Matias (1995), o projeto teve como sócios “os grupos Risipar S.A (55% do capital), Companhia Vale do Rio Doce (30% do capital) e a empresa japonesa Nissho
Pesquisas realizadas na década de 90 apontam que o processo de implantação do projeto CELMAR foi norteado por ideias da região como “cenário propício” para o desenvolvimento de suas atividades, passando, nesse sentido, a justificar a sua implantação na região de Imperatriz, como aponta Matias (1995):
A CELMAR encontra, portanto, na região tocantina o cenário ideal à sua definitiva implantação (…) existência de extensas áreas degradadas, adequadas à implantação do reflorestamento com eucalipto; pesquisas florestais com eucalipto na região, realizada pela CVRD, apresentam resultados excelentes para a produção de celulose; abundância de água (Rio Tocantins); de energia (hidrelétrica de Tucuruí, no Pará); disponibilidade de mão-de-obra barata; de serviços; transportes rodoviários e ferroviários.
Além do mais, aponto que o processo de implantação da CELMAR é compreendido como um braço da expansão florestal (de eucalipto), estendido a outros municípios tais como Cidelândia, Vila Nova dos Martírios, São Pedro da Água Branca, Senador La Rocque e João Lisboa, uma vez que este movimento de expansão foi marcado pela compra de grandes e pequenas propriedades agrárias.
Narrativas obtidas na pesquisa de campo confirmam algumas estratégias utilizadas pela CELMAR para as compras. Fora que, em meio à especulação impulsionada pela implantação do projeto, critérios para a compra de terras eram estabelecidos pela própria organização, como descreve o agente social Valdinar Barros:
“Eles só compravam se tivesse documento legal; se tivesse conflito não compravam. Eles tinham esse critério, né, mas foram comprando, comprando… e aumentou a valorização do alqueire da terra aqui. Antes, as terras eram desvalorizadas. Passou a ser valorizada (sic), com essa especulação da CELMAR comprando terra. Eles botaram corretor pra andar de fazenda em fazenda; fazendas que era (sic) plana, que era boa pra fazer plantio, eles foram e pronto. Então, chegaram a comprar mais de um milhão de terras.”., afirmou Valdinar Barros, 57 anos, morador do P.A Itacira I (Vila Conceição I), em entrevista de 4 de agosto de 2015.
É preciso considerar também a própria dinâmica regida pelos altos preços das commodities, que passaram a gerenciar um movimento de “compra e venda de terras, atos de arrendamento de imóveis rurais, bem como (…) ações de apossamentos ilegítimos por grupos empresariais interessados
.Durante as pesquisas de campo realizadas no P.A Vila Conceição I, pude compreender que o projeto da CELMAR passou a enfrentar resistências articuladas a movimentos sociais, como Cáritas, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU) e Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Imperatriz (STTRI).
Essas organizações buscavam confrontar a danosa ação aos recursos naturais e barrar a construção de uma unidade industrial em Imperatriz.
“Foi através de uma grande audiência para a aprovação disso aí [fábrica], tava convidado (sic) praticamente toda a sociedade (…) a gente conseguiu, através das organizações, que não foi só as forças de Imperatriz, mas a gente contou com gente do Pará, com gente de outros estados que veio bater junto, de sindicalistas do Maranhão todo, provar, nessa audiência, que a CELMAR era exatamente ao contrário do que eles estavam dizendo. A gente pode não ter convencido a sociedade, mas o pessoal que estavam (sic) lá, viram que existiu uma força né, que era contra a força da CELMAR.”, disse Luís Preto, morador do P.A Itacira I (Vila Conceição I) e vinculado ao MST, em 5 de agosto de 2015.
As mobilizações engendradas por movimentos sociais e sindicais são compreendidas como um dos fatores ligados ao enfraquecimento da integralização do projeto CELMAR. Classes de quebradeiras de coco, agricultores familiares, trabalhadores rurais e posseiros perceberam a desmobilização das atividades agrícolas e extrativistas enquanto avançava a operação do projeto florestal.
A implantação da Ferro Gusa Carajás
Depois da implantação inacabada do CELMAR, foi criado em 2003 o projeto Ferro Gusa Carajás pela Vale, que manteve a ampliação das plantações de eucalipto, sob a proposta de produzir carvão vegetal para suprir a demanda das siderúrgicas de ferro gusa localizadas em Açailândia, no Maranhão.
A atuação da Ferro Gusa Carajás acirra uma série de conflitos socioambientais motivados pelas formas desiguais de apropriação dos recursos naturais. Trabalhadores agroextrativistas, sobretudo quebradeiras de coco babaçu, viram suas atividades ameaçadas pela expansão dos plantios de eucalipto e por outra prática utilizada no empreendimento: a queima do coco babaçu inteiro para ser fonte de energia nos fornos das siderúrgicas, ação adotada a partir da insuficiência do carvão de eucalipto.
Não é preciso dizer que isso atingiu frontalmente a lógica de beneficiamento integral do coco babaçu, tradicionalmente realizada por mulheres.
Trabalhos realizados no âmbito da Nova Cartografia Social, especificamente as pesquisas que fundamentaram a construção do Fascículo 27, publicado em 2008, descrevem as situações que as quebradeiras passaram a enfrentar por causa da atuação das siderúrgicas de ferro gusa. Nele, Maria Querobina relata as situações vividas quebradeiras de coco babaçu em meio às interferências causadas pela operação do projeto Ferro Gusa Carajás:
“De 75 a 80 por cento da renda dos pequenos vem do babaçu. E hoje, se a gente fizer um levantamento a bico de lápis, isso não é mais. Porque a Ferro Gusa tá levando todo nosso babaçu (…) Olha, é interessante essa coisa que a gente descobriu. Como eles chegam nas pessoas. É praticamente uma compra do agricultor. Eles tão comprando o agricultor. Chega aí, eles diz: rapaz, tu vai quebrar cinco quilo de coco, tu passa o dia todo e aí tu não faz nada no correr do dia, e correr do dia, se tu ir fazer carvão, tu faz de 10 a 15 sacos de carvão por dia, que nós fica com esse carvão a 4,50.
Tu tá perdendo teu tempo. No final do mês, tu tem dinheiro que tu nunca viu. Então eles tão comprando os agricultores (…) As quebradeiras hoje tão ficando sem essa matéria prima (…) Tinha quebradeira que vendia, por semana 60, 70 litro de óleo, hoje elas não tão mais fazendo isso. Porque hoje a matéria prima ta difícil, tão cortando até os cachos das palmeiras antes de cair. Então tá ficando muito difícil pra nós quebradeira.”, disse Querobina.
Dessa maneira, é possível compreender que os conflitos, também aqueles dentro das comunidades, foram intensificados com a negociação do carvão por agentes da empresa, sendo a “cooptação” uma das principais estratégias para garantir a produção do carvão vegetal.
Sobre o projeto da Suzano Papel e Celulose
A crise no setor das indústrias guseiras mudou o eixo para uma reestruturação do projeto de monocultura de eucalipto no oeste do estado do Maranhão. Esse movimento ganhou forma com a criação de um projeto para produção de celulose a partir do beneficiamento do eucalipto. Em Imperatriz, o contexto favoreceu a implantação do projeto da Suzano Papel e Celulose. Primeiro, havia uma base florestal remanescente dos antigos projetos Celmar e Ferro Gusa Carajás. Segundo, a Estrada de Ferro Carajás (EFC) e a Ferrovia Norte-sul, importantes meios para a comercialização internacional da celulose.
O processo de implantação da fábrica de papel e celulose, iniciado em abril de 2011, fez surgir concentração fundiária. Esse processo desestabilizou os meios tradicionais para o roçado e, com as vendas de terra, causou o deslocamento de famílias da comunidade Bacaba. O escoamento de toras de eucalipto para a fábrica por meio da estrada do arroz e da BR-010 também impactou atividades locais.
As implicações da concentração de terras
O processo de concentração de terras motivado pela expansão da base fundiária da empresa Suzano Papel e Celulose foi estruturado a partir de estratégias similares às usadas por megaempreendimentos que antecederam a implantação da fábrica. Conforme aponta Daniel Nascimento, agente social da comunidade São José da Matança, o poder econômico, vitrine da atuação da empresa, é percebido como sendo um dos principais elementos que avalizaram o processo de implantação da fábrica:
“Acarretou assim, porque aqui tinha mais fazendeiros, tinha mais emprego também, aí quando a CELMAR veio e comprou as terras todas, comprou muita terra e plantou o eucalipto, então desempregou muita gente que trabalhava nessas fazendas. (…) Quando eles chegaram aqui [o grupo Suzano], primeiro eles compraram as terras da CELMAR, que tinha plantação de eucalipto, e compraram as outras que tinham restado, dos outros fazendeiros que não tinham vendido pra CELMAR. (…)
O valor da terra aqui girava em torno de quatro a cinco mil reais o alqueire, então o que acontecia, eles chegaram aqui colocando treze mil reais (…) Depois foi pra quinze, aí depois subiu pra vinte, aí foi subindo pra trinta, quarenta, isso para os mais ricos! Os fazendeiros ricos, onde eles tinham mais interesse, que era onde ia instalar a fábrica, mas os pequenos produtores que tinha (sic) de dez alqueires, quinze, vinte, esses a gente sabe os valores que foram comprados, porque acharam muito dinheiro; aqui tava valorizado em cinco mil reais, aí o cara chega botando vinte e cinco, trinta…”, contou Daniel em entrevista feita na casa de seus pais no dia 8 de junho de 2014.
Em seu depoimento, Daniel relembra a atuação do projeto CELMAR para apontar a continuidade do processo de concentração de terras, compreendido a partir da força exercida pelo poder econômico representado à época pela Suzano Papel e Celulose, que realizou a compra de pequenas e grandes propriedades rurais a partir de uma especulação intencional do preço da terra.
O agente social aponta ainda a desmobilização das atividades que eram realizadas nas chamadas fazendas, nas quais eram desempenhadas algumas funções, a exemplo de vaqueiro, tratorista [que dirige trator] e diarista, que se articulavam na conquista de espaços cedidos por meio de combinado verbal de arrendamento — contrato que estabelece contrapartida para a terra cedida — para a colocada de roças.
A opinião sobre os efeitos da concentração fundiária é endossada por Maria do Tibério, agente social da comunidade Esperantina I, diretamente inserida nesse processo:
“Trabalhando nessas fazendas aí ó, cortando pé de mato mesmo, foi sofrido. (…) ali onde tá aquela sede dela ali assentada [refere-se à fábrica], nós moramos naquela fazenda ali, meu marido era vaqueiro, ali eu conhecia pé de pau por pé de pau. Agora se soltar eu lá dentro, se não tiver quem tire, eu não saio mais, porque eu não sei nem o que foi que virou, bem ali onde tá aqueles negócio grande, era local da gente botar roça, aí eu não sei pra onde é que vai pro Alonso [fazendeiro], mas não sei mais nada ali dentro, tá tudo infeliz do jeito que tá”, disse Maria do Tibério no dia 10 de junho de 2014, em entrevista realizada em sua casa na comunidade Esperantina I.
Famílias que venderam as propriedades começaram a chegar com maior intensidade no assentamento Vila Conceição I, processo impactado pela especulação fundiária em meio à implantação da Suzano Papel e Celulose.
De acordo com o agente social Luíz Vaz, o assentamento assume uma identidade de “povoado dormitório”, uma vez que a falta dos chamados lotes — locais com espaço para atividades produtivas características da região —, sobretudo por aquelas famílias que chegaram no assentamento depois da sua constituição, passa a motivar a busca por emprego em setores comerciais do Imperatriz e nas gatas da Suzano. No local, as gatas são as empresas que prestam serviços terceirizados pela fábrica.
Além da desmobilização e desestruturação de atividades produtivas, a pesquisa também identificou a situação das famílias pertencentes à comunidade nova Bacaba, forçadas à mudança pela instalação da fábrica.
O deslocamento das famílias da comunidade Bacaba
De acordo com as entrevistas realizadas, as famílias da antiga Bacaba já viviam há mais de cinquenta anos às margens da “estrada do arroz” (MA-123).
“A Bacaba era localizada na área da servidão da estrada, no coxão de alagação, ficava entre a cerca do fazendeiro e a estrada do governo”, lembrou o agente social Jozivan Silva em entrevista no dia 9 de junho de 2014.
O processo de territorialização da comunidade Bacaba está associado a uma dinâmica de busca por espaços para roças, diretamente articulada às atividades desempenhadas nas fazendas, também por meio de arrendamento, como nos locais citados acima. Além do mais, a prática da quebra do coco babaçu e a produção de carvão vegetal para as siderúrgicas a partir da queima do fruto também são referenciadas como práticas que asseguravam a permanência e a reprodução das famílias no território.
Iniciado o processo de implantação da fábrica de papel e celulose, transformações ocorreram e foram intensificadas na comunidade. Isso foi materializado durante diversas reuniões organizadas por representantes da Suzano, que utilizaram diversos argumentos para fundamentar a proposta de deslocamento. De acordo com Francimar Moura, o deslocamento era justificado pelos impactos de construção e funcionamento da fábrica:
“Eles começaram a fazer reunião com a gente, a Suzano, começou a fazer reunião dizendo que nós ia sair né, eles falaram que era por causa dos impactos né, impacto ambiental, por causa da estrada que ia ser muito movimentada ia ter mil carros passando diariamente e nós corria riscos de ficar na beira da estrada, corria risco de se acidentar né, com os caminhão (sic) e com a poluição da Suzano que ia ter.”, explicou Francimar Moura, 46 anos, em entrevista no seu bar, na comunidade nova Bacaba, em 9 de junho de 2014.
Após investidas da Suzano Papel e Celulose, as negociações de deslocamento seguiram e o processo aconteceu no dia 15 de julho de 2013, quando as famílias receberam suas residências na nova Bacaba, localizada nas proximidades da comunidade São José da Matança, numa estrada vicinal à “estrada do arroz” e que carregou o mesmo nome a partir de reivindicações feitas pelas famílias.
O processo de deslocamento das famílias não deve ser entendido como um consenso. É o que revela o depoimento de Francimar Moura, que foi contrário à proposta.
“Eu mesmo falei, os outros não se importaram muito não, só quem falou que não queria sair era eu e a professora né, que era diretora da escolinha que nós tinha lá né, eu e ela, nós falava (sic) que não ia sair de lá, lá eu não queria sair, já tava acostumado, tinha meu ponto comercial, tinha meus colega (sic) que vinha todo dia que passava lá na porta da gente. (Eu) achava que se mudasse de lá, eles não ia visitar mais a gente né, pra comprar as coisinhas da gente. Aí eu falava que não ia sair não. (…)
Resultou saindo, porque eles falavam que, eles chegaram a falar pra mim, se você não sair, vamos entregar pro governo do estado, o governo do estado vai vim vai só lhe indenizar, bote tempo pra você receber a indenização. A indenização daquele tamanhozim, ele dizia [se refere a um agente da Suzano]. Aí foi a gente ficou com medo”, lembrou Francimar.
O depoimento do agente social permite inferir que seu ponto de vista parte de relações sociais estabelecidas para descrever a sua relação com o território, ultrapassando os limites estabelecidos no discurso da empresa, que desconsiderou as relações sociais com o território ao impor um processo de deslocamento.
É o que diz Alfredo Almeida, em “Refugiados do desenvolvimento: os deslocamentos compulsórios de índios e camponeses e a ideologia da modernização”, de 1996, quando fala em imposição para “deixar suas moradias habituais, seus lugares históricos de ocupação imemorial ou datada, mediante constrangimentos, inclusive físicos, sem qualquer opção de se contrapor e reverter os efeitos de tal decisão, ditada por interesses circunstancialmente mais poderosos”.
Ainda com base no depoimento de Francimar, podemos analisar que a empresa utilizou como estratégia o discurso de que a condição em relação ao território, no caso dos posseiros, não garantia o atendimento de suas reivindicações a curto prazo. Tal estratégia pode ser compreendida como uma tentativa de imobilizar iniciativas que pudessem barrar o processo de deslocamento, mas o resultado não impediu a exposição das famílias ao impacto da operação.
“Não mudou nada não, tá incomodando… tem hora que a gente acorda de noite, uns quinze dias atrás eu acordei de noite com aquele cheiro mais ruim do mundo, um cheiro assim de esgoto, mais tarde vinha um cheiro de foguete, foguete queimado, aí, assim, não achei que mudou não… negócio de impacto não ambiental”, contou Francimar Moura na entrevista de 9 de junho de 2014.
O odor percebido pelas famílias da nova Bacaba foi um dos diversos transtornos, apontado inclusive como elemento que desafia o discurso de “imunização dos impactos”, que fundamentou o processo de deslocamento das famílias. Além do cheiro, os impactos do transporte afetam, além das famílias de nova Bacaba, as de Esperantina I e II e São José da Matança.
Mobilizações e resistência em Imperatriz
Em face dos impactos da Suzano Papel e Celulose, vale destacar algumas frentes de mobilização, como as impulsionadas pelas autodesignadas quebradeiras de coco babaçu (MIQCB) e por trabalhadores, trabalhadoras rurais e moradores das comunidades afetadas. Essas pessoas também compõem o Fórum de Defesa da Cidadania e do Desenvolvimento das Comunidades da Estrada do Arroz, conhecido como “Fórum da Estrada do Arroz”.
Tais mobilizações engendram processos de resistência que podem ser compreendidos a partir de práticas cotidianas, audiências públicas e reuniões com representantes da empresa e do governo local para reivindicar direitos e confrontar a atuação da empresa.
Como resposta, algumas estratégias são empreendidas pela Suzano. A criação do “Conselho de Desenvolvimento Comunitário”, por exemplo, que reúne quebradeiras de coco babaçu em espaços físicos construídos em algumas comunidades, a exemplo de Coquelândia e Petrolina.
Tal situação gera alguns conflitos internos, pois os incentivos que regem a associação ao “Conselho da Suzano” são compreendidos como uma tentativa de desmobilizar outros movimentos já atuantes na região. Estes se negam a receber os ditos “benefícios” apresentados em projetos de compensação social e ambiental.
De acordo com a quebradeira Maria Querobina, integrante do MIQCB, a atuação da Suzano cria conflitos ao criar movimentos paralelos.
“Está sendo muito pior do que o conflito da época que a gente se escondia com medo da espingarda. Esse conflito, esse grande conflito político, que aí entra o social, entra tudo, esse daí é que é o problema sério e ideológico. Os companheiros deixaram de acender a vela pra o meio ambiente pra acender a vela da grande empresa. É uma das coisas que deixa a gente muito revoltada, que eles estão tomando o espaço das organizações dos trabalhadores aqui na região, o espaço do movimento das quebradeiras, eles tomaram, criaram até um conselho das quebradeiras de coco aqui na estrada do arroz (…) estava tratando de organizar grupo, implantando grupos de produção, e eles chegaram; pegaram aqui da Bacaba Nova, que a (Bacaba) velha eles acabaram, né?
Pegaram da Bacaba Nova até Petrolina, criaram um conselho das quebradeiras. E quem é o carro chefe desse conselho? É o sujeito da Suzano, foram cadastrando e chamando, fazem festa hoje pras quebradeiras de coco, dão presente, fazem premiação, o conselho das quebradeiras”. (Maria Querobina Silva Neta, entrevista realizada no Museu Casa Branca, hoje designado Centro de Ciências e Saberes Museu Casa Branca, localizado no P.A Vila Conceição I, 04/03/16), disse Maria em entrevista no Museu da Casa Branca, hoje Centro de Ciências e Saberes Museu Casa Branca, no Projeto Vila Conceição I, em 4 de março de 2016.
Assim, mesmo com a tensão e as tentativas de desmobilização geradas pela empresa, respostas da comunidade continuam a surgir, seja no MIQCB ou pelo “Fórum da Estrada do Arroz”, ou por outros grupos e segmentos inseridos no processo.
Repetições e respostas
Como analisado, o pacote de ações formulado pelo Programa Grande Carajás esteve diretamente ligado a megaempreendimentos de monocultura do eucalipto no oeste do estado do Maranhão, especificamente no município de Imperatriz, palco de intervenções ocasionadas pelos empreendimentos CELMAR, Ferro Gusa Carajás e atualmente pela fábrica da Suzano Papel e Celulose.
Esse último empreendimento, vale destacar, intensificou lógica e ritmo dos primeiros, que não conseguiram se implantar integralmente.
A desestruturação dos modos de vida das famílias fica evidente na escassez de espaço para implantação das roças, na situação de deslocamento compulsório das famílias da comunidade Bacaba e nos efeitos ocasionados pelo transporte das toras de eucalipto.
Também se desvela o processo na percepção e nos relatos dos agentes sociais da Vila Conceição I sobre os efeitos do funcionamento da fábrica. Esses depoimentos permitem compreender que os interesses empresariais são estruturados a partir de aspectos que se colocam em contraposição às dinâmicas específicas dos chamados povos e comunidades tradicionais.
Como apontado, diferentes mobilizações têm sido organizadas desde a implantação do projeto CELMAR. Trabalhadores rurais, quebradeiras de coco, movimentos sociais, lideranças sindicais e de organizações não governamentais se articulavam para o enfrentamento das situações impostas pela atuação dos empreendimentos.
Entretanto, no caso da empresa Suzano Papel e Celulose, tais mobilizações vivenciam recorrentemente estratégias de desmobilização e de cooptação, criando e acirrando conflitos entre os movimentos da região.