Amazônia e seus arredores em progresso: cinema na Transamazônica

Para decifrar a “questão ambiental” no cinema brasileiro há que se transmutar o papel de analista para o de público. Numa aproximação de alguns filmes dos anos 70, a partir do que neles é tocante, até mesmo pela afinidade, pode-se assumir um posicionamento perante a experiência vivida e registrada dessa época. Como no cinema processo, pode-se reelaborar o presente, através dos testemunhos de emoções vividas no início do discurso ambientalista no Brasil, para entendimento dos filmes e dessa “coisa ambiental” neles presente, especialmente relacionada à região amazônica brasileira, o que muitas vezes é invisibilizado na mídia convencional.

Os dois filmes aqui selecionados não estão engessados pelo tempo histórico-cronológico e são de uma época onde não existia o subgênero cinema ambiental, antes desobstruem a leitura da história em sua homogeneidade e linearidade, de modo que a presença dessa tal coisa ambiental se mostra indissociável da vida. A vida aqui é tomada de saída na sua expressão mais simples, nos pequenos acontecimentos cotidianos e nos efeitos ali experimentados, entre catástrofes socioambientais previsíveis.

Trabalhando na ressonância entre eles, esboçam-se os contornos de uma época com suas verdades e seus silenciamentos, com seus ditos e não ditos, com suas explosões de euforia e seus abafamentos da vontade. Desse modo, vão se mostrando as maneiras de subjetivação e, nelas, a coisa ambiental crescendo, sendo alimentada. As florestas, as matas, a água, os rios, o ar, a terra, as gentes, as práticas, tudo sempre esteve ali e aqui, mas não do mesmo jeito. Algo mudou, o discurso mudou e o meio ganhou ares de ambiente e este de mercadoria: uma coisa da qual devemos cuidar e que devemos preservar tal qual o fazemos com a casa própria – ainda que, na lógica imperante do capital, precisássemos de mais umas duas ou três Terras para que todos estivessem bem, pelo menos bebendo água potável. Algo mudou para que algo permanecesse igual. O discurso insiste e não desiste de nos angustiar ao continuar a operando algo irreparável como a morte. Mas não queremos desistir aqui e agora, porque a vida também persiste e as insurgências são possíveis. No artigo Limitar o limite: modos de subsistência,  Alexandre Nodari nos lembra como o capitalismo se estabelece e de que forma condiciona os seres humanos a viver de acordo com a sua lógica.

[…] capitalismo se funda sobre uma limitação de acesso aos recursos, por meio do cercamento de terras, da redução à propriedade dos inúmeros direitos reais (das coisas), e da criação da forma jurídica vazia do sujeito de direito. Mas o fundamento “ontológico” do consumo capitalista foi a conversão das coisas do mundo em recursos […]

Daí porque é preciso olhar para o que pode “sub-vir” quando o cinema, no caso, revira nossa percepção bem comportada e nossas existências, como Nodari aponta no mesmo artigo “mesmo o fazer poético da subsistência é um adubamento da existência, um cultivo de possíveis, uma cultura das virtualidades e suas diferentes consistências, que não tem como parâmetro o real […], concedendo primazia […] aos efeitos e aos afetos”.

O modo usado na tentativa de “destrinchar” (e destrincheiramento) desse cinema ambiental aponta para novas possibilidades de observação. É possível sentir certa angústia ao perceber tantos esforços que são direcionados em favor desse subgênero cinematográfico, sem que sejam questionadas as múltiplas formas de observância das suas inúmeras expressões. O cinema pode nos mostrar e evidenciar aquilo que ameaça o processo, o andamento das engrenagens que nos trituram ou o que resta desse processo. Na raiz das lógicas normativas há barreiras. Ultrapassá-las é sinal de que as normas foram cumpridas ou então que foram puladas. De qualquer forma, a barreira normativa foi reconhecida e o que resta é considerado lixo. Desse resto pode ser feito uma porção de coisas e ele está presente em inúmeros filmes, de diferentes categorias. Segundo Nodari, como a arte é uma “reinvenção de hábitos, de modos não-métricos de habitar o mundo”, ela pode aparecer numa outra economia, na ecologia do possíveis. Há filmes que lidam com os limites e os restos de outros modos.

Poster do filme Iracema – Uma transa amazônica (1975). Foto: Divulgação.

Os filmes Iracema, uma transa amazônica (1974), dos diretores Orlando Senna e Jorge Bodanzky, e Bye Bye Brasil (1979), do diretor Carlos Diegues, todos dos anos 70, podem ser observados a partir da intensificação do fluxo de matéria com a construção da Transamazônica. A entrada e saída de pessoas e de caminhões, transportando, principalmente, madeira, gado, prostitutas, indígenas, artistas, trabalhadores, tecnologias, desejos, emoções e ideias, são observáveis nesses produtos fílmicos. Esses enredos pertencem a uma época em que ainda falávamos sobre a natureza desconhecida e selvagem com seus povos e línguas igualmente desconhecidos atravancando o caminho. Era preciso mostrar ao mundo que éramos os donos da terra, das verdes matas em cima e do ouro e dos minérios embaixo, unificar a linguagem, pacificar em nome da união. A natureza era chamada de recurso, ou seja, era considerado como algo que era nosso e estava dado. Máquinas e pessoas somavam a ideia de esse conjunto era o que proporcionaria  um país que ia para frente. Mas não há nada que entre e saia sem deixar marcas.

Na ocasião, a estrada simbolizava o sonho de um Brasil grande. O personagem Tião dizia frases como: A natureza é o meu caminhão, a natureza é a estrada e Onde tem madeira tem dinheiro. O cenário inicial nos mostra um imenso rio navegável, embarcações e muitos trabalhadores na cena do mercado na chegada à Belém.

Da boca do chefe e controlador da entrada e saída de madeira das embarcações, em algum porto da região, ouvimos: O Brasil é uma terra rica e A natureza é mãe, cria todo mundo . Tião rebate, zombando da crença ingênua na mãe natureza: Natureza é mãe coisa nenhuma! Natureza é meu caminhão, natureza é a estrada – trecho retirado do encarte do filme Iracema, uma transa amazônica, 1981.

Tião se tranca na estrada a procura de dinheiro. Onde tem madeira tem dinheiro, e esse é o negócio dele: Estou atrás de dinheiro. E me dei bem. Só não se dá bem neste país quem não sabe se virar, quem não tem cabeça. No bar, debocha de Iracema que acende cigarro no fósforo do outro e pergunta se ele tem o corpo fechado. Sinal de burrice: tu és burra mesmo, hein! Eu sou mais eu, sou o Tião, o Tião Brasil Grande, podes crer. Assim o Brasil de então: crente no progresso a qualquer custo.

A ideia inicial da história surgiu quando Bodanzky, nos anos 1960, teve de fazer uma reportagem sobre a rodovia Belém—Brasília e, na ocasião, percebeu o fluxo de matéria daquela região do país, tão distante do imaginário coletivo. Havia um movimento de entrada e saída de caminhões e de pessoas numa estrada a ser concluída. Exibia na história, o fluxo de caminhões transportando, principalmente, madeira, e o crescente índice de casos de prostituição de mulheres indígenas e não indígenas vindas de várias regiões.

De forma não proposital, a montagem do filme assumiu o papel de narrar os percalços da vida dos vários personagens. A riqueza da obra e da abordagem está na intensidade das imagens não ficcionais misturadas às cenas ficcionais, usando atores e não atores. Corpos cujos gestos denunciam uma falta de intimidade com as câmeras, o que faz com que o filme tenha um caráter quase documental, um semidocumentário, pelo estilo da narrativa e pelo uso de pessoas comuns – não artistas – exceto em poucas cenas. O filme esteve proibido e só pode ser lançado oficialmente no Brasil em 1981, o que contribuiu para que se tornasse um dos filmes-símbolo do cinema brasileiro pré-abertura política. Também levou o troféu Candango de melhor longa-metragem – prêmio mais importante conferido pelo Festival de Brasília, o mais antigo festival de cinema brasileiro.

A produção foi uma encomenda para a televisão alemã e realizada em 1974. Como a abordagem do filme caminhava na contramão da propaganda oficial que dizia que a rodovia Belém-Brasília levaria o progresso à região, a censura da ditadura militar proibiu a exibição do filme no Brasil por muitos anos. Os anos de chumbo alegava que era uma produção estrangeira. Durante os anos em que esteve proibido no Brasil, foi exibido em diversos países da Europa. No Brasil, foi apresentado clandestinamente, em 1978, numa mostra de filmes proibidos em Minas Gerais. Apenas no dia 30 de março de 1981, foi lançado no cinema Caruso, no Rio de Janeiro, e no Cinema1, em Niterói.

Jorge Bodanzky, diretor de Iracema – Uma transa amazônica (1975). Foto: Divulgação.

O entendimento crítico nos leva a ver pela ótica do outro e a repensar nossa maneira de estar no mundo e de nele agir. Bodanzky expressa sobre o seu primeiro grande filme, Iracema, uma Transa Amazônica, como produto que pretendia ser espelho do que acontecia na floresta.

Eu comecei a trabalhar mais esse tipo de cinema a partir dos anos 70, partindo de uma questão social. O tema de meu primeiro grande filme, Iracema, uma Transa Amazônica, foi a colonização da Amazônia, onde naquela época tinha início a devastação, no auge da construção da Transamazônica. Para se ter uma idéia, a propaganda governamental mostrava um trator derrubando uma árvore, simbolizando o progresso. Já naquela época nós tínhamos na cabeça que a coisa não era bem por aí, que esse era um caminho errado. Nós queríamos mostrar o outro lado desse pseudo progresso, a devastação da Amazônia. Então nós entramos na questão ecológica a partir da questão social. Nós queríamos denunciar a presença do homem no modo como a colonização estava sendo feita e acabamos denunciando a sua agressão à natureza. Era também uma questão política, pois queríamos denunciar um programa de governo com o qual não concordávamos – fala de Jorge Bodansky, disponível no livro O cinema ambiental no Brasil: uma primeira abordagem, de Beto Leão, publicado pela editora Agepel em 2001.

Considerado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) como um dos 100 melhores filmes brasileiros, Iracema foi apresentado em algumas mostras de cinema ambiental nas últimas décadas. A narrativa é marcada por diálogos enxutos e com a música de fundo, do próprio ambiente, em momentos específicos, como, por exemplo, a canção que Tião e Iracema dançam na cena do cabaré. A música “Você é doida demais”, exibida no filme é versão interpretada por Lindomar Castilho, é marcante e praticamente é um resumo sobre o contexto histórico da época. De autor e intérprete desconhecidos, a letra diz:

“Quero conhecer a Transamazônica
A grande tônica da evolução
Quero enxergar a grande floresta,
Transformada em festa para o meu irmão
Alô brasileiros de todo quadrante
Chegou o instante da grande arrancada,
Vamos desbravar, cultivando a terra
Quem canta não erra
A hora é chegada…”

No fluxo da estrada, os corpos mudam de lugar o tempo todo: caminhoneiros, madeireiros, madeira e mulheres. Estas últimas vão a pé, na boleia do caminhão e até mesmo de avião. A movimentação, no filme, era constante. A todo instante, as pessoas eram transportadas “para lá e para cá”, na direção da estrada. Neste ir e vir, uma amiga de Iracema confessa que saiu determinada a ir para São Paulo, mas numa das muitas caronas, se atrapalho, pegou o lado errado da estrada e, quando percebeu, estava de volta.

Todo esse movimento que promove novos encontros proporciona mundança de pensamento naquela sociedade. A multiplicidade de modos de viver está presente, embora constantemente na miséria. Revisitando os Anos de chumbo e o milagre brasileiro, Souza (2014) nos apresenta uma variação no modo de ver essa época. Muitos prosperaram e se incluíram na epopeia da conquista da Amazônia, mas a Transamazônica, para outros, representou a prostituição e uso abusivo de drogas. Foi justamente no cotidiano que tiveram de lidar com elementos até então desconhecidos. As dificuldades dos colonos não se restringiam às dificuldades de adaptação à floresta amazônica. O confronto com realidades sociais não conhecidas por eles e a grande movimentação de pessoas que chegavam e partiam teve efeitos violentos para as famílias de colonos.

 

Este post é a primeira parte de “Amazônia e seus arredores em progresso”. Você pode ler a segunda parte clicando aqui.

Solange Alboreda é doutora em comunicação e semiótica pela PUC SP, mestre em engenharia ambiental pela Unicamp – SP. Atua como produtora cultural no Sesc SP – unidade Santos, na programação de cinema e literatura.
A imagem em destaque foi tirada em outubro de 1973, por Orlando Brito, no ponto de partida da Rodovia Transamazônica, no entroncamento com a rodovia Belém-Brasília. Fonte: O Globo.

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