Amazônia e seus arredores em progresso – natureza e modernidade

Este texto é a continuação de Amazônia e seus arredores em progresso – Cinema na Transamazônica, publicado na terceira edição da revista.

Bye bye Brasil, eu vi um Brasil na TV

O olhar triste do jovem nordestino iluminado ao ver o caminhão da Caravana Rolidei voltando de ré.

A estrada de terra, deserta. Na boleia, vão o casal jovem e a família de índios: o cacique, sua esposa, mãe, pai e as crianças. A mãe com um radinho de pilhas ao ouvido, e o menino com um aviãozinho de madeira.

Salomé dançando seduz o jovem sonhador.

Caminhão novo com letreiro de neon onde se lê Caravana Rolidey, com Y no final.

A Transamazônica, uma estrada de aproximadamente 7.900 km, cortando o mapa transversalmente, mais uma vez aparece como protagonista de um filme que pretendia mostrar um Brasil distante e desconhecido que a rodovia desvelava ao mesmo tempo em que destruía. As filmagens de Bye Bye Brasil acontecem em três lugares: Belém, Altamira e Piranhas. Ao longo do filme, observamos a estrada de terra, empoeirada, vista de cima, sempre ladeada pela mata, sob o pôr do sol, a chuva ou a luz do amanhecer. O caminhão e a estrada, e a música de Chico Buarque ao fundo. A exuberância da floresta amazônica rasgada pelas estradas recém-abertas. Veem-se caminhões com cana-de-açúcar, poucas vezes um carro de boi passando e raramente um ônibus. Animais mortos, floresta deitada, tratores em plena atividade de derrubada de árvores, terraplanagem e um açude quase seco também compõem as imagens.

As obras de implantação da Transamazônica, a BR-230, tiveram início em 1966. A inauguração oficial da estrada ocorreu em 1970, embora tenha demorado mais uns cinco anos para ficar pronta. No auge da ditadura militar e da propaganda ufanista sobre a grandeza do Brasil e a exuberância das florestas e do território, ela cortaria os estados de Paraíba, Ceará, Piauí, Tocantins, Pará, Maranhão e Amazonas, chegando ao Acre. O enredo gira em torno de um casal de artistas mambembes, Salomé e Lorde Cigano, vindos da cidade grande em busca de dinheiro e desejosos de conhecer novos lugares. Numa das paradas da Caravana Rolidei, um jovem casal de agricultores passa a viajar com o casal mais experiente. Nessa jornada, é possível ver a modernidade chegando ao sertão do país.

As frases emblemáticas marcam bem o momento que o Brasil vivia:

– Ouvi falar de um lugar rico, desenvolvido e generoso: Altamira! Centro da Transamazônica. Tem gente do mundo inteiro. E abacaxi do tamanho de uma jaca!

– Posso fazer real o sonho de todo brasileiro: posso fazer nevar! Neve como na Suiça, Inglaterra, Europa e Estados Unidos da América do Norte. E como em todos os países civilizados do mundo, o Brasil também tem neve!

A música nordestina ao fundo nos envolve no paradoxo desta época. A artista Salomé arranha um portunhol encantando a plateia, com o objetivo de se desqualificar através do uso do português, ou ainda, deixar a plateia numa posição de inferioridade.

– Princesa do Caribe que já foi amante de um presidente dos Estados Unidos!

O jovem que toca na praça, e cuja esposa está grávida, apaixona-se por Salomé. A mulher é mais velha, sedutora, que fala outro idioma e parece ter experiência e histórias para contar. O fascínio pelo desconhecido é o que faz desenrolar a trama. Ele tem um olhar esperançoso, como se buscasse algo que ali não encontraria. A estrada, que é tão grande, mostra um Brasil imenso e desconhecido e faz com que os moradores acreditem no futuro.

Mas na praça principal dos pequenos vilarejos, por onde eles passam, há uma TV instalada e o público já não tem tanto interesse na Caravana Rolidei.

A música de Chico Buarque e Roberto Menescal oferece unidade em toda a narrativa e é forte elemento de envolvimento, ela impulsiona o desejo de também conhecer esse Brasil. Mas, na música e no filme, vemos o papel da TV na transformação da cultura brasileira, homogeneizando-a e diminuindo distâncias, integrando regiões mais profundas do Brasil aos centros urbanos. Descreve alguém que está em movimento, se deslocando pelo país, para regiões que vivem processos intensos, principalmente Norte e Nordeste.

Há ainda um diálogo entre um traficante e Lorde Cigano sobre o minério como sendo o futuro da Amazônia. No final, Lorde Cigano fala para Ciço que está partindo para Rondônia, pois estariam abrindo uma nova estrada lá – certamente referindo-se à BR-425 que substituiria a estrada de ferro Madeira-Mamoré.

Aquela aquarela

O presidente Emílio Garrastazu Médici visita a Agrovila Brasil Novo, durante a festa dos colonos, na cidade de Querência-MT, 1972. Foto: O Globo

Enquanto na Europa era discutida a Teoria do Crescimento Zero, proposta pelo Clube de Roma, e a Conferência de Estocolmo de 1972, que tornava-se um marco na história da construção da política ambiental em escala mundial, Giovanni Salera  explica que, nesse momento, o Brasil estava afundado nas promessas do desenvolvimento econômico:

[…] vivia a fase do “Milagre Econômico”, com grandes obras e empreendimentos fomentados pelo governo federal, e falar em reduzir o crescimento e seus consequentes impactos não agradou a delegação brasileira. Inclusive, um dos membros chegou a dizer: “se os países ricos não quisessem as indústrias por causa da poluição, todas elas podem se transferir para o Brasil“.

Essa e outras declarações de autoridades nacionais geraram enorme repercussão na opinião pública e, para tentar contornar os efeitos negativos da posição oficial do governo brasileiro na Conferência de Estocolmo, o presidente Emílio Garrastazu Médici determinou que algo fosse feito. Assim, o Secretário Geral do Ministério do Interior, Henrique Brandão Cavalcanti, foi designado para elaboração do Decreto que instituiria a primeira entidade nacional de defesa ambiental.

Assim, em 1973, foi criada a Secretaria Especial de Meio Ambiente (Sema) com a principal incumbência de disseminar a consciência ambiental na sociedade brasileira. O objetivo era tentar melhorar a imagem do Brasil perante o mundo e, enquanto isso, a TV exibia a tal imagem de um Brasil, cuja natureza era pródiga em recursos naturais, em ascensão econômica. Dávamos continuidade ao processo de valorização da “reserva”, instituída pelos colonizadores portugueses no século XVI, e que atravessaria o discurso ambientalista.

Um ano mais tarde, em 1974, o filme Iracema, uma transa amazônica é censurado. Cinco anos depois, no texto “Sem dentes e sem árvores”, originalmente publicado na revista IstoÉ, em 10 de janeiro de 1979, Antonio Callado comenta as razões que contribuíram para que não fosse autorizada sua exibição no Brasil: na exibição, que aconteceu na Alemanha, o adido militar brasileiro em Bonn ficou indignado com o denegrimento da imagem do Brasil que era Iracema, e os censores em Brasília alegavam que a película havia viajado sem ser submetida à “apreciação” do governo.

Diz Antonio Callado, em texto originalmente em 1979, fazendo uma comparação da Iracema que se degrada e se vende com a terra, a madeira e a floresta igualmente exploradas e vendidas. Fala da Iracema que, nesse momento, pode representar o Brasil e seu povo.

[…] com os gestos obscenos e palavrões que berra Iracema, correndo ao lado do caminhão. Ela não grita, não se queixa feito Moema na esteira do navio, a amaldiçoar, docemente, enquanto se afoga, o Caramuru ingrato, já todo voltado para a Europa.

A diferença, naturalmente, é que, para Iracema, desgraça e humilhação representam o pão, ou o açaí de cada dia. Ela redobra os impropérios, mas, enquanto corre, ri também. Vai correndo e rindo seu riso de criança cínica, um tanto feroz, de criança envelhecida, sem dentes, envolta no rastro de poeira que deixa o caminhão.

Na floresta em torno, os claros também são enormes. O boticão das motosserras e as queimadas que embrasearam antes a tela estão desdentando a mata. Os troncos calcinados no chão de cinza são os dentes podres da Amazônia, como nota Antonio Callado no encarte do DVD de Iracema, lançado em 2005.

O autor faz menção à Moema, índia do romance Caramuru de Frei Santa Rita Durão, escrito em 1781, pois o personagem Tião, nas cenas finais, parece não se lembrar e chama Iracema de Moema. Neste mesmo ano, 1979, Callado havia dito numa espécie de desabafo:

[…]

P.S. O Brasil está querendo pagar suas dívidas com as árvores da Amazônia, e não há árvore que chegue. A qualquer momento, como no caso da Light, saberemos que o negócio foi fechado. O Sr. Paulo Berutti, presidente do IBDF, demonstrou outro dia na televisão que sabe tanto sobre os tais “contratos de risco quanto eu ou o leitor”. Encabulado, nervoso, disse coisas como “a vocação da floresta amazônica é a árvore”, como quem dissesse que a vocação do oceano Atlântico é a onda. Devido  a essa má consciência geral é que não indultam Iracema.

Também em 1979, Bye Bye Brasil brinca, de certa forma, com a desconstrução dessa ideia desenvolvimentista. Ele fala sobre a construção de hidrelétricas, o milagre econômico e a presença crescente das espinhas de peixe, antenas de TV que mudaram a paisagem das comunidades e que assinalavam o auge e a queda da Caravana Rolidei como efeito dessas transformações. Os artistas, personagens do filme, se movimentaram, mas algo havia mudado. Ao chegar em Altamira, às margens do rio Xingú, no Pará, Lorde Cigano percebe que fora enganado, que ali ele terá que se associar aos oportunistas e exploradores de mão de obra, empresários ávidos por dinheiro. A chegada da Caravana já não atendia às expectativas de uma população excitada com as novas tecnologias. Agora, o povo se reunia na praça para assistir aos programas e às novelas na TV.

O filme mostra uma espécie de despedida, de passagem de um Brasil rural e arcaico para o modernizado. A Caravana se adaptou e americanizou-se a seu modo, exemplo disto é o “Y” no final do nome, que passou de Rolidei para Rolidey.

Bye bye Brasil e Iracema apontam na direção seguida pelo Plano Nacional de Integração (PIN), instituído pelo presidente Emílio Garrastazu Médici: avançar, desbravar, conhecer o Brasil e integrar sul e norte. O PIN visava à colonização e à “reforma agrária” com projetos agropecuários e agroindustriais a partir da iniciativa privada e de incentivos fiscais, em ações do Ministério dos Transportes, que construiu as rodovia Transamazônica e a Cuiabá-Santarém (mais portos e embarcadouros fluviais), e do Ministério da Agricultura que desapropriou e assentou colonos ao longo das margens delas. Na década de 1970, o assentamento de cerca de 500 mil pessoas em pequenas agrovilas, instaladas a cada 20 km à margem da estrada, ocorreu porque o governo se dizia preocupado, geopoliticamente, com “os vazios territoriais e demográficos”, uma vez que a população indígena sequer era reconhecida. Cabe lembrar, que, entre 1960 e 1970, não foram poucas as vantagens fiscais oferecidas aos grandes empresários e grupos econômicos nacionais e internacionais que quisessem investir capitais em empreendimentos na região. Esta foi então devastada em grandes extensões de terras cobertas por florestas que se transformaram em pasto para a criação de gado.

Tião Brasil Grande troca de caminhão e, no final do filme Iracema, aparece não mais transportar madeira, mas, sim, gado. A abertura de estradas visava garantir, também, a soberania nacional, já que, entre outras questões, havia propostas de internacionalização da Amazônia pelos Estados Unidos. Às margens das estradas, a devastação florestal foi rápida e a disputa por terras privilegiadas gerou conflitos de toda ordem, que só foram aumentando nas décadas seguintes, à medida que o modelo de desenvolvimento se estruturava. Somente quando a mata começava a ser queimada pelos novos proprietários, para formar pastos ou para vender a madeira, é que os antigos moradores se deparavam com o fato de que as terras onde moravam haviam sido vendidas. E era quase impossível falar com os novos donos que, em geral, viviam fora da região e eram representados por sociedades anônimas. A expulsão dos moradores tornava o conflito uma prática cotidiana. O extermínio de comunidades indígenas, segundo Tuiré, ex-funcionário da Funai, chegaria a 5000 desaparecidos naquele período, contra os 400 de que se tem notícia nas grandes cidades. Todos são desparecidos políticos.

Nesses dois filmes, abrir a mata, pôr a floresta no chão não é símbolo do progresso, como se costuma dizer, mas a persistência da crença numa ideia de grandeza e do progresso como destino, em que é preciso sacrificar coisas, povos, modos de vida para beneficiar o que ditam ser a maioria. Essa “maioria” não se sabe quem é, mas se sabe bem quem são os tantos que passam por sacrifícios. Enquanto isso, as Iracemas com seu riso amplo e desdentado, no seu corpo aberto, tal a qual a estrada por onde Caravanas Rolideys seguem passando, acreditam na possibilidade de inventar a vida com o que resta.

 

Solange Alboreda é doutora em comunicação e semiótica pela PUC SP, mestre em engenharia ambiental pela Unicamp – SP. Atua como produtora cultural no Sesc SP – unidade Santos, na programação de cinema e literatura.

 

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