Cultura amazônica: uma diversidade diversa

O qual — posto na linha do conflito —
há de sobreviver: o Homem ou o Mito?
(In, Porantim, do autor)

A Amazônia saiu do isolamento por um movimento centrípeto, e não centrífugo. Uma recorrente e paradoxal situação de fronteira, em que o alargamento se faz de fora para dentro, conflitando a cultura. Ela vem sendo incorporada por uma estratégia de ocupação, sem que possa definir um horizonte que seja de iniciativa de sua sociedade. O resultado é a paisagem de cobiça, violência e saque, que têm sido as bússolas que orientam a expansão a ela dirigida pelo grande capital.

No caso da Amazônia brasileira, a partir da década de 60 a relação entre o novo e o antigo passa a se estabelecer com base na oposição entre um e outro, e não mais na simples convivência complementar, como acontecia anteriormente. Para esse quadro, a concepção política foi fundamental, já que antes as políticas visavam preservar a Amazônia da cobiça internacional. A partir desta nova fase, o objetivo passou a ser o de explorá-la produtivamente, integrando-a ao contexto nacional e eliminando o caráter “primitivo” da região. É daí que o novo tenta esmagar e substituir o anterior, tornando a relação antagônica.

A especulação fundiária tem sido o gatilho da concentração da terra que, à medida que esta vai para as mãos de poucos, expulsando centenas de milhares de agricultores, pescadores ou índios de suas terras. São legiões de pessoas que passam a vagar pelos campos, garimpos e cidades em busca de sobrevivência, prostituindo-se, trabalhando em condições de escravidão ou semi-escravidão e inchando de miséria populacional as pequenas cidades, onde faltam saneamento básico, moradia, escola, emprego e comida.

As profundas alterações na sociedade amazônica, certamente geradoras de impactos culturais irrecuperáveis, advêm de fatores que estão no conhecimento já repertoriado em estudos sobre a região: a ocupação concentrada da terra, há tempos em curso; a não delimitação das áreas apropriadas ao sistema de produção; as injustiças do modo de expansão da fronteira agrícola, sem atenção a uma agricultura autossustentável; o processo acelerado de desmatamento; a destruição de seringais; o consumo considerável da floresta como carvão vegetal; a usura dos projetos mínero-metalúrgicos quanto à multiplicação de empregos, agregação de valor à matéria-prima e danos ao meio ambiente; o sucessivo plantio de desertos; a falta de garantia às condições de saúde, de resguardo da terra indígena e das áreas de preservação ecológica; a presença de trabalho escravo; a não observação de procedimentos no uso de aparelhos condensadores na queima de amálgama de mercúrio na mineração, envenenando homens, peixes e rios; a entrada desordenada de capitais nacionais e internacionais, promovendo a violência, conflitos, migração interna e atração da externa desorientada e sem condições de aculturação, na maioria dos casos gerando nomadismo populacional em busca de um destino; a destribalização do indígena; a desestruturação da vida e economia dos habitantes da gleba; a deterioração das relações sociais; o menosprezo e o desrespeito pela diversidade, complexidade, fragilidade e superabundância da natureza; o caráter frequentemente autoritário e lesivo das políticas públicas; a progressiva perda da identidade cultural e desenraizamento de grupos.

cultura amazônica

Extração de madeiras nativas da floresta amazônica. Ilustração: Sandro Schutt.

De fato, as políticas de desenvolvimento que vêm sendo aplicadas à Amazônia mostram menosprezo evidente pelas culturas de caboclos, indígenas e das comunidades negras, simplificando-as a expressões ingênuas, primitivas e pobres, próprias de um tempo social que deve ser substituído. É uma visão clara ou disfarçada, mas perceptível nos planos econômicos e culturais – consideram que essa espécie de substituição cultural não significa nenhuma perda. Pelo contrário, abandonar a cultura tradicional da terra representa espírito de renovação, modernidade e civilização. Um processo de conversão dos atores dessa cultura em coadjuvantes ou espectadores de um novo processo alienígena, uma vez que, segundo esse tipo de ideologia, eles não representam o novo, nem o moderno ou mesmo o civilizado.

Parece evidente que o problema atual da cultura amazônica contém uma dimensão pública fundamental, que se reflete não apenas na situação atual, mas também no seu futuro. O papel do Estado brasileiro, pela grande concentração de poder e de decisão que acumulou, tornou-se definidor desta dimensão. A contradição está no fato de que, afastando a sociedade nas suas decisões e sem valorizar a cultura popular, o Estado imprimiu uma política desenvolvimentista, que tem sido considerada uma das principais causas das agressões a esta cultura.

A história tem demonstrado que as culturas têm um substrato capaz de fazê-las resistir a situações danosas, mesmo sem sucumbirem. Assim, podemos esperar que a ação do Estado não seja tão determinante no futuro da cultura amazônica. Em primeiro lugar, vale considerar que a sociedade regional amazônica apresenta uma relativa capacidade de organização e de reação; e é nessa qualidade que tem repousado a resistência que até agora a resguarda.

No entanto, os impactos que essa cultura vem sofrendo, corolário da ação das políticas que a ela se destinam, ainda não deram tempo e fôlego para que o segmento caboclo/indígena – que é majoritário, mas não hegemônico – reelabore sua capacidade de organização num nível crítico e político que a situação atual exige. E como o progresso tem sido conflitivo, envolvendo a perda da posse da terra, a desorganização do sistema de vida, a violência, o banimento, a migração forçada e até a morte, a sociedade permaneceu atônita após os anos 60, perdendo os referenciais de sua história e sem apresentar uma reação proporcional à necessidade que essas transformações exigiam. Assim, houve uma perda cultural considerável decorrente dessa fase.

Tudo tem me levado a crer que a cultura das Amazônias, especialmente a brasileira, onde nasci, vivo e mergulhei meu coração e minha poesia, não é apenas mais um caso de diversidade a ser defendida e preservada como vida na voracidade globalizadora e mercadológica do mundo atual, mas a cultura amazônica é uma diversidade diversa no conjunto das diversidades do mundo. Isso lhe confere uma situação especial, que deve ser tratada com estratégias e cuidados especiais – no sentido de respeitar sua diversidade e reconhecimento à imanência de sua diferença. Que compreendam a fala amazônica como um grande gesto de amor à toda a humanidade.

A cultura amazônica é um manguezal cultural de si mesma e do mundo.

A visão hiperbólica sobre a região, desde os primeiros cronistas viajantes, e anterior a eles, assim como a dos intérpretes da atualidade, tem sua razão de ser decorrente das reais grandezas da Pan-Amazônia. Nela estavam, segundo o que a literatura universal consagra, El Dorado, o reino do ouro; a civilização fantástica de El Paititi, secreta sociedade continuadora dos Incas; o País das Amazonas, lugar da reencarnação de mitos ancestrais e universais; uma selva majestosa; uma floresta tropical exuberante e impenetrável; uma floresta virgem onde reina uma natureza insubmissa; uma paisagem mágica de obstáculos mitológicos, habitada por seres prodigiosos; o refúgio de reinos maravilhosos; síntese contraditória de inferno e éden; pulmão do mundo; espaço de riquezas incalculáveis; natureza cheia de cidades encantadas; realidade onde acontece a coincidência de opostos entre o real e o imaginário, onde a vida visível convive com as encantarias, que são as moradas dos deuses das crenças indígena e cabocla; hábitat de homens cobertos de ouro; signo verbal dos mais universalmente conhecidos; palavra individuada como valor de sonho e utopia, consagrada pelo marketing; sedução recorrente no imaginário dos habitantes do mundo.

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Onça-pintada caça jacaré no pantanal paraense. Ilustração: Sandro Schutt.

Além de todas essas referências magníficas na cultura dos homens, muitas coisas também são desmedidas nos planos científico e geográfico. O Amazonas é o maior rio do mundo, tanto em comprimento como em volume d’água; a bacia amazônica é a maior rede de rios do Planeta Terra; Marajó é a maior ilha fluvial do mundo; essa mesma bacia concentra grande parte da água doce que existe, sendo 20% do mundo e 80% do Brasil; contém o maior volume de água doce disponível no globo; nela está situada a mais extensa e a mais rica floresta tropical do planeta; contém de 4 a 5 mil espécies de árvores; em apenas um hectare são encontrados entre 100 e 300 espécies vegetais diferenciadas; há em média 300 mamíferos diferentes; mais de 2 mil tipos de peixes; mais de 60 mil espécies vegetais; as reservas de ferro chegam a 18 bilhões de toneladas, e as de manganês também são estimadas em 60 mil bilhões de toneladas; já as de cobre montam a 2 bilhões de toneladas; as reservas de ouro estão entre as maiores do mundo; além de sal-gema, caulim, calcário, diamante, cassiterita, gás natural e petróleo.

Diante de tantos dados incomensuráveis, até será cabível dizer-se: a Amazônia é uma hipérbole de Deus! Ninguém, diante dela, pode se deixar afundar nas areias movediças da indiferença. A região é um mito ainda não estruturado, segundo o sociólogo Octávio Ianni. Diante dela não se tem a sensação do todo acabado. Há o reconhecimento de se estar em face de algo que aparece diante de nós como uma concreta quimera, o kantiano sublime da natureza.

A cultura amazônica é uma rara reminiscência de cultura mítica marcada pela dominante poética do imaginário, como eu a venho caracterizando em outros estudos. Original cultura mítica sobrevivente neste terceiro milênio, onde ainda se constata uma incessante produção de narrativas fabulosas na oralidade que caracteriza a sociedade regional amazônica. São os deuses de uma teogonia cotidiana e operativa. Para abrigá-los, os caboclos ribeirinhos inventaram uma singular paisagem ideal, um lugar ameno situado no fundo dos rios ou nas brenhas das florestas. Trata-se das encantarias, lugar onde moram os seres encantados, os deuses e personagens do imaginário amazônico, decorrente do fertilíssimo devaneio do homem do lugar, diante do correr das águas doces de seus rios. A convivência cotidiana com seres fabulosos de seu imaginário passa a condicionar um sentido contemplativo de beleza na convivência dessa relação dos homens entre si e deles com a natureza, que, inclusive, estudei especificamente em “Cultura Amazônica – Uma poética do imaginário”. Percebo nos fatos dessa cultura todo um universo imaginal que aciona, além de uma estética, uma ética que reordena as relações sociais, a partir da maior ou menor relação de crença com essa realidade. Uma realidade diante da qual a melhor forma de agir é fazer uma suspensão da descrença. Além disso, é uma cultura que tem produzido amplos e originais processos de conhecimentos no campo da medicina natural, de formas alternativas de trabalho, amor, sonho, camaradagem, solidariedade, compreensão do homem e da vida. E quase tudo isso ainda continua à espera de fortalecimento concreto, reconhecimento conceitual, recriações literárias, configurações plásticas, registros reflexivos, sentimentos de mundo. Permanece à espera de reconhecimento e respeito como fonte de saber e sentimento, e não apenas como matéria a ser consumida ou riqueza expropriada. Diante do processo globalizador e mercadológico que avança pelo mundo, tudo na Amazônia parece estar em risco de perecer, não mais destruído por mãos bárbaras de guerreiros conquistadores, mas como consequência da racionalíssima decisão de ampliação mercadológica globalizadora, acionada pelo grande capital e pela comunicação, de um lado, e pela permanente ausência de projetos políticos que sustentem a sua diversidade, de outro.

Ribeirinho rema próximo a sua comunidade. Ilustração: Sandro Schutt.

Todos esses exemplos repertoriados sem preocupação sistemática é que tornaram a Amazônia aureolada na configuração mítica de uma verdadeira ilha de sonho no mundo, conferindo-lhe um sentido aurático. A aura, como sabemos desde Walter Benjamim, impregna a realidade de um caráter único, irrepetível, insubstituível, riqueza íntegra e auto-configurada, imagem que oscila entre o próximo e o distante, na medida em que dá ao próximo um sentido de distância e ao distante a dimensão de proximidade. Sendo assim, a percepção de uma Amazônia auratizada pelo imaginário dos homens ou acionada politicamente pelas organizações não-governamentais que tentam defendê-la, por exemplo, contribui na reivindicação para ela o respeito e a atitude exigida a tudo o que tem a dimensão essencial da aura. Torna-se uma espécie de obra-prima do mundo. Nessa dimensão, a Amazônia assemelha-se a uma Capela Sistina a céu aberto, objeto que possui aura de culto devocional. Porém, vista de outro ângulo, permanece como o eterno El Dorado da riqueza, objeto explícito do desejo e da cobiça. Sendo assim, creio que a cultura amazônica, entendendo a cultura como patrimônio construído e construtor do homem em seu trajeto antropológico, não é apenas figurante em um quadro geral das diversidades no mundo globalizado; é a cultura que representa uma diversidade de integridade única em seu universo complexo e seminal, razão pela qual eu a considero uma diversidade diversa. Uma diversidade diferente pela particularidade de seu conjunto integrado de diferenças; e é por força desse caráter diverso de sua realidade intercorrente entre o real e imaginário, das lutas, experiências e do destino dos homens nela configurados, que lhe reivindico a condição de um caso especial de diversidade.

À medida que ela for encarada como uma diversidade diversa, com suas diferenças internas e em relação ao mundo, passando a ser sustentada por um amplo projeto político-científico que a reconheça como tal, pode haver uma saída. Não como manutenção de seu isolamento nem passadismo, mas como integração ou relação transacional com o planeta, processo pelo qual existirão trocas sem que um desapareça no outro. O sentido transacional que aqui se coloca é o sentido de transação que se encontra em uma das notas de aula do professor Juan de Mairena, heterônimo do poeta espanhol Antonio Machado, “Lo inevitable es ir de lo uno a lo otro, en esto como en todo”. Transacional é o movimento de ir e vir de um lado a outro, sem que cada qual esteja acima ou abaixo de sua parceria

Talvez o sentido transacional de trocas sem anulações de um pelo outro, em face da fatalidade globalizadora e mercadológica do mundo atual, seja a possibilidade de a Amazônia garantir a sua diversidade diferente. Desse modo, ela poderá manter-se, como diversidade diversa que é, na relação diferenciada de uma digna transação com a globalização comunicacional e mercadológica, mantendo a integridade duradoura da cultura, sustentada por um projeto político a partir de sua diversidade. Uma fala da Amazônia e não apenas uma fala sobre a Amazônia. E que a Amazônia seja o locus de enunciação dessa fala.

Só pela afirmação e consagração do pluralismo no mundo é que a Amazônia – componente desse pluralismo, na condição de uma diversidade diversa – poderá deixar de ser vista como campo de martírios na vida ribeirinha, no espaço agrário, da terra dos índios, olhada na condição de permanente estado comatoso, como quem contempla um velório antecipado. No entanto, ao contrário, que ela possa continuar tendo a consagração de sua vida e da vida que ela pode multiplicar na humanidade do mundo.

 

João de Jesus Paes Loureiro é poeta e professor de Estética, Filosofia da Arte e Cultura Amazônica, na Universidade Federal do Pará. Mestre em Teoria da Literatura e Semiótica pela PUC/UNICAMP, São Paulo e Doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne Paris, França. Também exerceu as funções de Secretário de Estado da Cultura, Superintendente da Fundação Cultural do Pará, Secretário de Estado da Educação e Secretário de Educação e Cultura de Belém, capital do Estado.
A ilustração em destaque retrata duas crianças indígenas trajadas para festividades tradicionais. Ela e as demais ilustrações são de Sandro Schutt, jornalista e editor da Amazônia Latitude.

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