Resenha: Os povos do rio – natureza e identidade na Amazônia negra 1835–1945

oscar torre resenha identidade amazonia negra

resenha identidade amazônia negra

The People of the River – Nature and Identity in Black Amazonia, 1835–1945
Autor: Oscar de La Torre
Editora: The University of North Carolina Press
Ano: 2018

A historiografia sobre a escravidão negra na Amazônia brasileira sofreu um deslocamento de foco na última década, passando da posição de certa marginalização para tornar-se um dos campos mais explorados pelos pesquisadores. A maior parte desses estudos observa a região paraense, onde, a partir das abordagens iniciadas pelos historiadores Vicente Salles, Roza Azevedo, Ana Vergolino-Henry e Arthur Napoleão Figueiredo, buscou-se desmistificar o discurso de “ausência” e “insignificância” da presença africana e afrodescendente na sociedade amazônica.

Após essas pesquisas iniciais, os trabalhos de José Maia Bezerra Neto, Barbará Fonseca Palha, Marcelo Ferreira Lobo, Luiz Carlos Laurindo Junior, Marley Antonia Silva da Silva e Sidiana Macêdo, entre outros, destacaram as experiências da população escravizada e liberta, investigando suas mobilidades espacial e social, resistências contra a escravização e a escravidão urbana.

Apesar da maior parte desses trabalhos se concentrarem no período da escravidão, com uma necessária expansão para o pós-abolição, o conjunto é responsável por enfatizar a importância dos estudos sobre a presença africana e afrodescendente na história amazônica, assim como têm demonstrado como a região também faz parte da história da diáspora africana.

Nesse sentido, o livro The people of the river: nature and identity in Black Amazonia, 1835-1945, de Oscar de La Torre, contribui com essa perspectiva ao analisar o processo pelo qual escravizados, mocambeiros (nome dados aos quilombos na região Amazônica) e seus descendentes, habitantes da região do Baixo Amazonas, construíram espaços de autonomia e liberdade e se tornaram pequenos lavradores.

Na obra de 2018, o autor percorre a trajetória de negociação e luta iniciada ainda sob o signo da escravidão e demonstra como as vivências elaboradas naquele período foram essenciais para as lutas empreendidas em torno da cidadania no pós-abolição.
Com uma leitura enriquecedora, o autor elucida a conexão entre a história da população africana e afrodescendente e a formação dos mocambeiros paraenses com o meio ambiente e suas reivindicações por cidadania.

Importante ressaltar como a natureza não se configura apenas como o plano de fundo em que as vivências dessas populações são reconstruídas, mas como ponto de conexão com ações políticas que visavam a afirmação da liberdade, autonomia e cidadania.

Para isso, de La Torre utiliza ao longo dos quatro capítulos do livro uma vasta quantidade de fontes — documentos oficiais da província, inventários post-mortem, relatos de viajantes, e as muito importantes entrevistas. Por meio desses documentos, emergem personagens fascinantes que conduzem nosso caminho pelo livro.

Conhecendo o mapa

De la Torre inicia a jornada descrevendo as características da economia de plantation na região do baixo Amazonas, centrada na exploração do cacau e da cana de açúcar, enfatizando a importância da mão de obra escravizada nessas produções.

O comércio de africanos escravizados para a Província do Pará foi incentivado pelas políticas da Coroa portuguesa, intensificadas a partir da segunda metade do século XVIII, atingindo seu auge por volta das décadas de 1810 e 1820.

A maior parte dos africanos desembarcados no porto de Belém eram originários da Guinea e África Central-Oeste. Essa informação é essencial para compreender o mito da Cobra Grande mais à frente.

Ainda no capítulo inicial, De La Terra explica os impactos da revolta da Cabanagem (1835-40) — a maior revolta popular ocorrida na Amazônia no século XIX, que revolveu de fato as estruturas sociais da região — na produção regional e na população escravizada.

A partir desse quadro, o autor discute que a revolta cabana não teria causado grandes prejuízos à economia regional e à manutenção da escravidão, mesmo que alguns escravizados tenham se alistado nas fileiras rebeldes.

Na verdade, segundo o autor, ao provocar a diminuição de escravizados, principalmente homens, em idade adulta e produtiva, a revolta acabou por acelerar o processo de crioulização da população negra.

Ambiente é política

A partir de 1840, e durante as três décadas seguintes, a economia local de plantations buscou renovação e passou a investir na produção de alimentos para o mercado local, utilizando como mão de obra os escravizados.

Grande parte dessa adaptação teria sido propiciada pela aceleração do processo de environmental creolization — crioulização ambiental — vivenciada pela população africana e afrodescendente.

Oscar de la Torre explica esse conceito como um processo de conquista de “familiaridade com as oportunidades e restrições do ambiente local, um primeiro passo para a prática bem-sucedida da agricultura, coleta florestal, caça, pesca e comércio dos itens florestais” (p. 52).

No terceiro capítulo, o pesquisador reconstrói a ampliação dos espaços de influência e a melhora das condições de escravizados e mocambeiros a partir do conhecimento da floresta.

Esse conhecimento seria resultado da bagagem de habilidade e estratégias trazidas da África equatorial e do intenso compartilhamento com as populações indígenas e caboclas.

Nesse ponto, De la Torre poderia ter explorado com ainda mais detalhes essa rica relação e tornado mais claro sobre quais circunstâncias esse processo de aprendizado vivenciado no encontro com as populações indígenas aconteciam. A historiografia tem demonstrado como essas trocas foram marcadas por diversos níveis de relações que ora os aproximavam, ora os afastavam.

Esse conhecimento deu suporte para que escravizados e mocambeiros tirassem proveito das oportunidades geradas por meio das movimentações comerciais da exploração da borracha e, assim, desenvolvessem o que de La Torre chama de “slaves’ parellel economy”.

Essas atividades produtivas estavam baseadas na pequena produção de alimentos — mandioca, milho, feijão e outros — e no extrativismo — (copaíba e castanha, entre outros. Esses produtos eram comercializados principalmente com os regatões, comerciantes ambulantes dos rios que negociavam uma variedade de sortimentos com os habitantes dos sertões.

Nesse contexto, a formação de famílias entre os escravizados e os mocambeiros tornou-se uma importante instituição que complementava as estratégias por busca de autonomia e liberdade. O autor destaca como a formação de famílias e a “economia paralela”, ao possibilitarem acesso a dinheiro e ampliando suas redes de sociabilidade, propiciaram melhores condições de vida e sustento para suas famílias e comunidade — um caminho para a liberdade.

Dessa maneira, essas ações gradualmente acabaram erodindo a dominação inerente da escravidão, além de criarem barreiras para os anseios dos senhores. Todavia, De la Torre assevera lembra que os senhores também usufruíram, em certa medida, de tais conhecimentos. Ao tornarem a vida dos escravizados mais “palatável”, teriam prolongado a sobrevivência do sistema escravista na região.

Contudo, nem todos escravizados permaneceram sob o jugo de seus senhores. Muitos escolheram a fuga como estratégia de busca por autonomia e liberdade. Esses homens e mulheres negras e negros formaram diversos mocambos em torno dos rios Trombetas e Cuminá.

Grandes ameaças

Para descrever a história dessas comunidades, o autor recupera o incrível relato da Grande Cobra narrada por Joaquim Lima, descendente de mocambeiros. Por meio da história, De la Torre relata como a memória da conquista da liberdade estava intercalada com as relações desses sujeitos com a floresta.

Enquanto a Grande Cobra representava as ameaças da escravidão, o espaço da floresta para além do meio de sustento era também uma poderosa arma de resistência e autonomia. O meio ambiente propiciava aos mocambeiros ferramentas, tais como as cachoeiras, que criavam obstáculos para protegê-los contra as tentativas de reescravização. Além de oferecer castanha, entre outros produtos, com os quais poderiam negociar e melhorar a condição de vida de suas comunidades.

O assassinato da Grande Cobra pelo irmão simbolizava o fim da escravidão, em 1888, que permitiu aos mocambeiros iniciar a descida dos rios, abaixo das cachoeiras, e assim ficar mais próximos das rotas comerciais. O autor conecta as raízes desse mito a elementos da cultura Bantu Africana e a influências indígenas, principalmente da etnia Kaxúyana.

Por meio desse processo de cruzamento entre “tradições locais e importadas, os quilombolas do Baixo Amazonas embutiram sua história nas paisagens locais, apropriando-se dela para realizar um processo cultural, e quase político, de gerar um sentimento de pertencimento por meio da natureza”.

O autor defende que esse discurso continuará muito forte na Primeira República. E será central nas lutas de descendentes de escravizados e mocambeiros pelo pertencimento e direito a terra e cidadania no período.

Novas barreiras

O colapso da borracha, por volta dos anos 1910 a 1920, acelerou a procura por outros produtos extrativistas. As castanhas foram alçadas ao primeiro lugar entre as mais requisitadas. O alto preço da semente no mercado internacional culminou em um acelerado e violento processo de privatização dos castanhais, que abalou as expectativas dos mocambeiros e dos lavradores negros de finalmente poderem explorar os produtos nativos, principalmente os castanhais, com maior liberdade.

Os comerciantes de castanha conseguiram manejar a lei a seu favor e acionar diversas práticas coercitivas — endividamento, apreensões ilegais e outros — para controlar a mão de obra disponível e acessar a produção gerada pelos habitantes locais.

Esse período, marcado por crescimento da violência, repressão e restrição de liberdade e autonomia ficou gravado na memória social dos descendentes mocambeiros com um momento de “pobreza, desapropriação e a imagem de uma ‘nova escravidão” (p. 75).

Todavia, como Oscar de la Torre apresenta nos capítulos 4, 5 e 6, os “black peasants” do Baixo Amazonas não ficaram parados nesse processo. Reconstruíram suas estratégias de sobrevivência por meio das redes de compadrio, e pelo reconhecimento de sua cidadania e também por diversos protestos e revoltas contra a demarcação dos castanhais

Luta que conta história

Os últimos três capítulos são ricos em fontes e informações, que permitem reconstruir a trajetória da população negra habitante na região do Baixo Amazonas no período imediato do pós-abolição e até a primeira metade do século XX.

No processo de sobrevivência e resistência contra os avanços dos comerciantes e das práticas compulsórias ao trabalho, umas das estratégias criadas pelos mocambeiros do rio Trombetas, descrita no quarto capítulo, foi usar “os cursos de água da região para encontrar castanhais escondidos e [depois] vender castanhas pelas costas dos gerentes comerciais e fiscais”, diz o livro. Tática já bastante empregada pelos escravizados nos tempos da escravidão.

Outros, como os do mocambo do Pacoval, encontraram nos laços com os políticos locais e membros da elite local uma forma, mesmo precária, de manter uma influência sobre as instituições locais e assim assegurar a sobrevivência de suas comunidades.

De outro lado, os comerciantes se apropriaram do alto conhecimento especializado desses sujeitos, resultado do processo de environmental creolization, sobre a floresta e seus caminhos para abrir novas áreas de produção e expandir seus interesses.

Os protestos e revoltas contra autoridades governamentais, interesses privados e estrangeiros também foram articulados como forma de reivindicação por autonomia e, sobretudo, pelo reconhecimento da cidadania.

Foi o que fizeram os “negros de Pacoval”, em 1921, quando se viram pressionados pelo avanço das empresas estrangeiras pelo controle dos castanhais da região (capítulo 6).

Os pacovalenses clamavam para forças estatais que os castanhais da região continuassem “livres” e que as privatizações fossem proibidas. Por meio dessas reclamações, tentavam proteger suas redes de comércio tradicional, que lhes garantiam um alto grau de autonomia.

Todavia, assim como ocorreu em outras regiões brasileiras, o Estado não sancionou as reclamações e continuou financiando o projeto de privatização da região.

Cidadãos de Tauapará

Em 1930, início do governo de Getúlio Vargas, descendentes de escravizados e habitantes da fazenda de Santo Antonio de Campinas também buscaram defender seus direitos, sua luta descrita no quinto capítulo.

De La Torre afirma que, após a troca de proprietários, esses moradores defendiam seus direitos de continuar habitando no local sem pagar nenhum tipo de aluguel. A principal base da argumentação girava em torno do fato de ali terem nascido, assim como seus pais e seus avós, e por isso pertencerem ao lugar, de serem “cidadãos de Tauapará”.

Dessa forma, o autor defende que, para essas comunidades, as requisições de direito à terra e seus produtos estavam conectadas com seu reconhecimento de cidadão perante a sociedade brasileira.

Como descritas nas palavras do próprio autor “embora muitas vezes lhes fosse negado o direito ao voto, ser proprietários das terras que cultivavam representava ‘as bases para os marginalizados e sem-terra reivindicarem a cidadania’, tornando-se, em última análise, um ato de natureza política” (p. 114).

O livro apresenta como as comunidades negras do Baixo Amazonas participaram ativamente da política brasileira desde a década 1920, especialmente por meio da defesa de seus direitos de acessar os recursos naturais da floresta e de manter livre sua força de trabalho.

Essas requisições estavam no cerne da noção de cidadania cunhada pelos afro-brasileiros, na qual autonomia e liberdade estavam conectadas com sua relação com a floresta, os rios e os animais.

Dessa forma, ao reconstruir a história das comunidades negras do Baixo Amazonas da escravidão ao pós-abolição, De la Torre endossa a relevância das pesquisas acerca da presença negra na região paraense, atribuindo a esses sujeitos um lugar de destaque na paisagem e na sociedade amazônica.

Jéssyka Sâmya é mestre em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense e doutoranda em História Social na Universidade Estadual de Campinas. Atua com história do trabalho no Brasil do Oitocentos e história da escravidão na Amazônia.
Você pode ler outras resenhas aqui.

 

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »