A quem pertence o futuro da Amazônia?

A História de formação e ocupação da Amazônia ainda é pouco conhecida, amplamente influenciada pelo senso comum. Por isso, optamos por apresentar uma proposta que acumula dados de várias pesquisas diferentes e se beneficia de um amadurecimento das discussões de vários pesquisadores, principalmente arqueólogos, que trabalham na Amazônia nos últimos anos. A maneira como muitas pessoas enxergam a região Amazônica – uma gigantesca área de floresta tropical representando um dos poucos locais intocados da terra – é resultado de um discurso histórico estabelecido e ainda em construção. Ela é realizada, inclusive, por alguns dos principais tomadores de decisão dos países amazônicos. Esses gestores são responsáveis por decisões sobre o futuro ambiental e social da Amazônia, determinando quando comunidades tradicionais serão removidas de seus locais de origem para a criação de unidades de conservação biológica, ou em nome de um suposto desenvolvimento econômico nacional.

Uma busca refinada nos estudos desenvolvidos na região Amazônica nas últimas décadas nos permite afirmar que existem evidências da presença humana na região há pelo menos 12 mil anos. Ademais, os dados mostram que durante todo esse período a Amazônia vem sendo manipulada e sofrendo transformações a partir da ação humana. Entretanto, é imprescindível qualificar e explicar o que estamos chamando de “manipulação e transformação”. Conforme temos visto nos trabalhos de William Balée sobre a Amazônia desde os anos 1980, e nos estudos de um grande número de pesquisadores que trabalham com as premissas da Ecologia Histórica, existem diferentes tipos de possíveis impactos humanos no meio ambiente – alguns negativos, outros positivos. Estamos acostumados a ouvir falar de consequências negativas, como, por exemplo, o desmatamento, o esgotamento dos solos, a exploração desenfreada, etc. Contudo, existem também impactos positivos que são o produto de ações voltadas para aumentar a biodiversidade de um determinado local. O que vemos no passado amazônico são, principalmente, impactos positivos. Hoje em dia vemos principalmente efeitos negativos. Mesmo de difícil visualização, e nos lugares mais improváveis, o suposto tapete verde intocado (uma das descrições dadas à floresta amazônica), é o local de moradia e retirada de sustento de numerosas populações tradicionais. Estas populações não estão em concorrência com a Amazônia, elas interagem com ela e correm o risco de desaparecer antes mesmo de serem conhecidas.

Uma parte considerável do problema é que as primeiras tentativas científicas de explicar a relação entre os povos nativos e a floresta tropical partiram de perspectivas racistas do século XIX, nos escritos de Carl Friedrich Philipp von Martius (que é mais conhecido por conta de suas contribuições para a botânica), onde os povos da Amazônia representavam versões degeneradas de sociedades avançadas de outras regiões externas à floresta.

Quando as primeiras sínteses arqueológicas foram apresentadas, como os trabalhos de Betty Meggers e Clifford Evans, ou os trabalhos de síntese dos antropólogos Julian Steward e Robert Lowie, nos anos 1940 e 1950, o que vemos é uma ressignificação das teorias racistas do século XIX com rótulos mais adequados para a ciência do século XX. Para esses primeiros pesquisadores profissionais, o ambiente da Amazônia era tido como hostil e imprevisível, ele teria limitado o estágio de desenvolvimento cultural, social e tecnológico dos povos da floresta. Essas sociedades estariam condenadas a atingir, no máximo, a incipiência de qualquer outro modelo de administração política e econômica de outras partes do mundo ocidental. A explicação da não existência de estados amazônicos era atribuída ao Determinismo Ambiental. Sem um ambiente temperado, tido como adequado, e acesso a nichos extremamente diversificados e próximos geograficamente, as populações estariam fadadas a viver uma existência de precariedade, pois a disponibilidade de recursos seria demasiadamente limitada. Nesse momento, a Amazônia era vista como uma grande unidade, sem que suas diferentes particularidades regionais fossem de fato consideradas.

O Determinismo Ambiental (ou Geográfico), defendia que sociedades submetidas à condições ambientais não favoráveis seriam incapazes de se desenvolver. Foto: Renato Soares / Ameríndios do Brasil.

O contraponto da discussão arqueológica, apresentado por Donald Lathrap nos anos 1970, se apegou em outro extremo, fazendo acreditar que a Amazônia teria sido um berço de desenvolvimento agrícola na América do Sul, talvez comparável ao de outras regiões do mundo, como o Oriente Médio ou o Sudeste Asiático – mas sem nenhuma evidência arqueológica para sustentar essa proposta.

Conforme os dados arqueológicos tornam-se mais detalhados, ambos os modelos começaram a parecer insuficientes para explicar a história dos humanos na Amazônia. As evidências mais antigas de ocupação humana mostram um longo e duradouro processo de construção cultural de nichos e o florescimento de múltiplas e diferentes culturas. Sequências estratigráficas de sítios antigos, como a Caverna da Pedra Pintada, no Município de Monte Alegre (PA), mostram que após as primeiras ocupações, datadas por volta de 12 mil anos, os humanos retornaram diversas vezes para estes mesmos locais ao longo de milênios, se beneficiando dos manejos provocados pelas ocupações anteriores. Ou seja, as alterações causadas em determinados locais foram benéficas e promoveram um enriquecimento local de recursos florísticos.

Várias evidências de plantas Amazônicas importantes para a alimentação nos dias atuais já aparecem entre as evidências arqueológicas das ocupações antigas. Essa não é uma simples coincidência, os levantamentos botânicos mostram uma hiperdominância de espécies de plantas comestíveis na Amazônia, por exemplo, o açaí, que aparece como a espécie mais abundante da floresta tropical. Outro dado importante é que plantas domesticadas já aparecem como tais em períodos em que os dados arqueológicos ainda não apontam para evidências de vida permanentemente sedentária em nenhum local da Amazônia. São os caçadores e coletores responsáveis por domesticar as plantas? Sim, o manejo promovido por eles não era voltado para plantações de monoculturas, e sim para o aumento da biodiversidade local.

As evidências de assentamentos semipermanentes começam a aparecer por volta de 7 a 8 mil anos atrás. Os vestígios estão principalmente ligados a uma intensificação na exploração da fauna aquática – surgem sambaquis monumentais (que são grandes concheiros construídos), em vários lugares da Amazônia, indo do litoral até o rio Guaporé. Vários marcos importantes do ambiente começam a apresentar marcas permanentes da presença humana, como ao redor das cachoeiras. Muitos destes marcos ainda hoje são locais sagrados para as populações nativas. Sem sombra de dúvida, as evidências arqueológicas mostram que esses espaços têm uma importância mais do que natural para estas populações.

Temos evidências da intensificação da vida em assentamentos permanentes na Amazônia que remetem a 3 mil anos atrás. Entretanto, as evidências arqueológicas continuam mostrando basicamente a mesma diversidade de plantas evidenciada nas ocupações anteriores. A rápida dispersão de estilos cerâmicos, desenvolvidos nessa época por áreas de milhares de quilômetros, são vestígios de que já haviam grandes redes de contato e que longos caminhos já estavam consolidados entre diferentes nichos da Amazônia.

Por volta do ano 1000, em todas as partes da Amazônia, temos vestígios de grandes aldeias, muitos sítios arqueológicos deste período ultrapassam 50 hectares de área. As construções em terra, como aterros, montículos, valas e geoglifos, fazem parte das inovações desse período. Alguns arqueólogos consideram que essas aldeias eram verdadeiros centros urbanos – um urbanismo muito diferente do ocidental, um tipo de garden city, como propõe Michael Heckenberger. Algumas aldeias atuais ilustram, em escala um pouco menor, o que seriam estas garden cities. Muitas vezes, essas aldeias contemporâneas estão implantadas em cima de sítios arqueológicos muito maiores que o espaço utilizado na atualidade.

Instituto Mamirauá descobriu recentemente dez novos sítios arqueológicos na Amazônia. Fonte: Portal Amazonia.org.

Os benefícios criados pelo manejo milenar foram aproveitados por muitas populações que chegaram na Amazônia depois de 1500, como as comunidades quilombolas e os migrantes vindos do nordeste brasileiro. Estes se adaptaram rapidamente e se apropriaram dos eficientes e produtivos nichos milenares, onde são perceptíveis grandes concentrações de plantas comestíveis. Isso só foi possível porque o sistema de manejo adotado na Amazônia desde as primeiras ocupações foi cumulativo, e não de modificação total do ambiente por plantas exógenas ou monocultura. Por exemplo, quando alguns forrageiros decidiam se fixar de maneira mais permanente nos sambaquis, o ambiente continuou propício para aqueles que quisessem continuar em um sistema de ocupação com maior mobilidade. Mesmo nos dias atuais, os grupos indígenas ainda escolhem sistemas de maior ou menor mobilidade em ambientes mais produtivos que os encontrados pelos caçadores de 12 mil anos atrás.

Mas o futuro da Amazônia parece fadado a fechar este ciclo milenar de prosperidade e continuidade. O avanço do capitalismo global na Amazônia impossibilita qualquer retorno, o sistema está deixando de ser cumulativo. Não será possível voltar a ser caçador nestes ambientes com o aumento da pressão, através de desmatamento ou urbanismo, nos atuais sistemas de manejo.

Com as incertezas atuais do clima mundial, enchentes e secas cada vez mais extremas, um “plano B” deveria estar presente em qualquer estratégia que avança sobre a Amazônia. A cultura da soja elimina drasticamente a biodiversidade. Basicamente, só a soja cresce onde havia uma grande variedade de plantas e animais. Quais alternativas produtivas poderiam ser executadas no mesmo espaço de um campo de soja caso houvesse um colapso deste sistema? Mais do que nunca, precisamos pensar nesta questão.

O presente dá indicativos de que estamos prestes a colocar um término a um sistema que funcionou e foi resiliente por milênios. Sistema este que, além de ter produzido sustento para alguns milhões de pessoas, deixou a atual Amazônia como legado, ou melhor, como era até a primeira metade do século 20. Antes de condenar este sistema ao fim, seria prudente ouvir o que os últimos povos que ainda continuam promovendo estes impactos positivos na região têm a dizer. Assumir que a Amazônia como conhecemos hoje, além de fatores naturais, foi transformada pelos povos indígenas e tradicionais, e que os mesmos são imprescindíveis para a existência da floresta (assim como a floresta é indispensável para a existência desses povos), seria um grande passo para as políticas públicas de países amazônicos.

 

Anne Rapp Py-Daniel trabalha com ensino da arqueologia em nível superior desde 2009, primeiro na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e agora na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Tem experiência em projetos de arqueologia acadêmica e de contrato, particularmente na Amazônia, atuando nos seguintes temas: arqueologia da morte, processos tafonômicos, Arqueologia Amazônia, classificação de material, levantamento arqueológico, escavação e resgate. 
Claide de Paula Moraes é professor no programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará. Também foi coordenador do Bacharelado em Arqueologia entre 2014 e 2016, e doutor em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Arqueologia, com ênfase em Arqueologia Amazônica, atuando principalmente nos seguintes temas: levantamento arqueológico, estudo de sítios cerâmicos, estudo de tecnologia lítica e ensino de arqueologia.
Imagem em destaque: rodovia em processo de construção corta a floresta amazônica. Foto: Podalyro Neto.
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