Fronteiras internacionais e soberania

Situação fronteiriça brasileira está diretamente ligada a diversos problemas sociais em todo o território nacional

O Brasil ocupa a terceira posição no ranking de países com as maiores extensões de fronteiras internacionais – faz divisa com todos os países da América do Sul com exceção de Chile e Equador, totalizando 16,885 km. Por conta da vastidão de seu território fronteiriço, as políticas públicas não são capazes de dar conta dos inúmeros problemas ali existentes. Dentre as questões mais notórias, podemos listar o narcotráfico, o contrabando de mercadorias, armas, carros, altos índices de violência e a falta de desenvolvimento social nessas regiões.

No entanto, esses problemas não estão presentes na totalidade de nossas fronteiras, cada uma delas possui situações específicas e geram diferentes conflitos socioambientais. Na tríplice fronteira com a Colômbia e Peru, no estado do Amazonas, questões como acesso a serviços básicos, presença de crime organizado, tráfico de pessoas, ondas migratórias, grilagem, extração de madeira e garimpos ilegais permeiam a realidade da população. Essa situação é possível por conta da geografia peculiar da região, que conta com diversas vias hídricas e extensas porções de floresta amazônica que dificultam o monitoramento e a proteção das fronteiras nacionais.

Tríplice fronteira no Arco Norte

A cidade de Tabatinga é um caso interessante para compreender a situação das fronteiras internacionais do Brasil. Situada no interior do estado do Amazonas, na Microrregião do Alto Solimões, Tabatinga apresenta uma conurbação com a cidade colombiana de Letícia. Interligadas pela Avenida da Amizade, as cidades se fundem, extrapolando as atribuições legislativas de ambos os países. Isso propiciou a criação de regras específicas para ambas as cidades, que, infelizmente, não são capazes de dar cabo das reais necessidades de suas populações. Dados do IBGE mostram que dos 64 mil habitantes, apenas 2700 possuem carteira de trabalho assinada, o que representa 4,8% da população, enquanto 48,2% dos tabatinguenses sobrevivem com até meio salário mínimo por mês. Quanto a questões relativas a saúde e urbanização, o município apresenta apenas 21,6% das residências com saneamento sanitário adequado, 8% das vias estão devidamente pavimentadas, e a taxa de mortalidade infantil é de 20,88 óbitos para cada mil nascidos vivos, muito acima da média nacional de 12,8.

A situação peculiar encontrada nessa fronteira, a falta de presença do estado – brasileiro, colombiano e peruano – somadas à geografia amazônica, propicia a entrada de drogas, armas, entre outros produtos ilegais, frutos do crime organizado, no território brasileiro. Se no Sul os corredores para entrada de entorpecentes são controlados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), principal facção criminosa brasileira, no Norte é dominada por seus rivais, a Família do Norte (FDN). A facção nortista esteve diretamente envolvida nos massacres praticados em presídios brasileiros nos últimos anos, voltados contra integrantes do PCC. A rivalidade entre os narcotraficantes brasileiros se dá pelo domínio do mercado bélico ilegal e da venda de drogas em território nacional e internacional, assim como as alianças com organizações criminosas colombianas, peruanas e bolivianas – parcerias responsáveis por irrigar o mercado ilegal brasileiro, o que financia, em contrapartida, atividades de guerrilheiros, como era o caso das FARCs na Colômbia. Esse cenário colabora, em grande escala, para a alarmante estatística de 60.000 mortes violentas no Brasil todos os anos.

Além do faroeste moderno protagonizado pelos narcotraficantes, cabe ressaltar a situação de povos indígenas que vivem na região. Os conflitos socioambientais gerados pela peculiaridade geográfica e a negligência estatal forçam a migração de índios para pequenos centros urbanos, os quais partem em busca de atendimento médico, alimento e demais mantimentos – segundo matéria d’O Estado de São Paulo, muitos desses imigrantes, que partem em busca de benefícios com a promessa de regresso, não conseguem voltar a seus locais de origem por falta de dinheiro para a viagem. Essa questão é estritamente ligada à falta acesso à cidade, que se dá através de um pequeno aeroporto e por vias fluviais. Não há estradas que liguem o município à Manaus, capital do Amazonas.

Um caso particularmente preocupante é do Povo Ticuna, maciçamente presente na região do Alto Solimões, que viu sua condição de vida se deteriorar com a ausência do estado. A reportagem do Estadão, intitulada Favela Amazônia, mostra a realidade desumana vivida pelos Ticuna. Segundo o jornal, a proximidade de suas aldeias à Tabatinga, principal cidade da região, propiciou o nascimento de periferias indígenas com graves problemas sociais. A escassez de oportunidades de trabalho e assistência básica faz com que muitos deles tenham de “caçar” seu sustento nos lixões e aterros sanitários da cidade, disputando seu alimento diretamente com urubus e demais seres humanos em situação de fragilidade social.

Ainda segundo o Estadão, a produção agropecuária do município não é capaz de suprir a demanda de mercearias e supermercados – as hortaliças e verduras vem do lado peruano. Dira da Silva Silfuentes, produtora rural, 46 anos de idade, se queixa ao jornal a respeito de um lixão criado pela própria prefeitura no bairro de Santa Rosa, onde está instalada sua comunidade, a 10 km do centro de Tabatinga.

“Um riacho de chorume, uma água escura, desce pelos igarapés do Tacana e do Umurutama até desembocar no Solimões, na altura da comunidade indígena Belém do Solimões. Os pequenos agricultores usam água de poços artesianos para cuidar de suas hortas e criações”, afirmou Dira à reportagem do Estadão.

Discussão

Recentemente, o Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada (IPEA), desenvolveu estudos a respeito da situação fronteiriça brasileira. No terceiro volume, intitulado Fronteiras do Brasil: uma avaliação do Arco Norte, o estudo conclui que a presença de uma população diversificada, social e culturalmente, que carrega consigo práticas sustentáveis de manejo da terra e da floresta, deve ser levada em conta na elaboração de políticas públicas relativas às fronteiras amazônicas, uma vez que o ambiente não permite a reprodução de estratégias de desenvolvimento adotadas em outras partes do país com a mesma eficácia.

No entanto, os autores também elencaram problemas já mencionados neste texto, como a precária estrutura urbana; a falta de vias eficientes de transporte e integração com centros comerciais; a falha comunicação entre os agentes de segurança, que carecem de integração e compartilhamento de informações estratégicas para manter a segurança e a soberania nacional dos países na fronteira; a falta de interesse do Estado em promover o desenvolvimento econômico e social da região, aproveitando a biodiversidade local, em prol da simples administração e ocupação da área; a precariedade da saúde, que conta com baixo auxílio público, falta de saneamento básico e a presença de lixões a céu aberto; e por fim, a situação venezuelana que tem gerado grandes ondas migratórias e conflitos nas fronteiras com diversos países.

A situação das fronteiras brasileiras demanda maior atenção de seus líderes, pois estão diretamente ligadas aos problemas no restante do território nacional e internacional – como é o caso do narcotráfico, diretamente relacionado com o cenário de violência, superlotação de presídios, e a depredação da vida de pessoas que se tornam dependentes de drogas como o crack e a cocaína, sendo a última o principal produto a cruzar as fronteiras no Arco Norte. Essa situação ressalta a importância de debates com a presença de acadêmicos, lideranças governamentais e sociais, assim como a sociedade civil, para a solução desses problemas – caso do Seminário Internacional de Ecologia Política: Justiça Socioambiental e Alimentar na Tríplice Fronteira Amazônica, que reunirá toda essa diversidade de agentes sociais na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Tabatinga, e na Universidade Nacional de Colômbia (UNAL), em Letícia, para ampliar a compreensão da situação fronteiriça e buscar saídas viáveis para os problemas referentes a ela.

O seminário, que ocorre entre 03 e 05 de junho próximo, debaterá temas como migração, conflitos socioambientais, territorialidade, urbanização, globalização e segurança alimentar na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. A organização fica por conta da a Rede de Pesquisas Agrocultures, uma iniciativa interdisciplinar lançada em 2018 que envolve acadêmicos e não-acadêmicos de ambos os hemisférios Norte e Sul, interessados em conectar discursos disciplinares desconexos e aproximações analíticas díspares à cultura, alteridade e a história de fronteiras agrícolas na Amazônia.

 

Imagem em destaque – pixação da facção Família do Norte usada como demarcação de território na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, em Tabatinga-AM. Imagem: Sputnik Brasil.

Editado em 28/05/2019.

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