A morte dos polinizadores

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Em 2020, as colmeias da chácara João do Mel quase não têm abelhas; agrotóxicos danificam vida e papel dos polinizadores no ambiente. Foto: Gabriel Siqueira
Cemitério de colmeias indica risco ambiental em Belterra

“Quero saber quem derrubou a castanheira. As seringueiras, quem será que destruiu? Quem arrancou e tocou fogo nas palmeiras ganhou dinheiro, mas o mundo poluiu…” João do Mel

Cercada de soja por todos os lados, a Chácara João do Mel, em Belterra, Oeste do Pará, é como uma ilha de biodiversidade que ainda reflete a natureza amazônica em um cenário formado por áreas desmatadas a perder de vista. Apesar da expressão de resistência ecológica, o pequeno oásis pertencente a João Batista Ferreira já sofre os efeitos do modelo de monocultura regada ao uso de agrotóxicos em larga escala.

Esse e outros impactos socioambientais têm sido cada vez mais associados ao extermínio de abelhas e, consequentemente, à inviabilidade da produção de mel como atividade econômica dessa cidade que integra a Região Metropolitana de Santarém (Mesorregião Baixo Amazonas), localizada a 724 quilômetros de Belém.

Aos 59 anos, Ferreira passa por uma mudança de rumo profissional jamais imaginada para quem transformou um hobby, aprimorado desde a adolescência, em um bem-sucedido negócio de meliponicultura (cultivo de abelhas nativas sem ferrão) que o tornou reconhecido regionalmente como João do Mel.

Ele recorda que há vinte anos tinha mais de mil colmeias, abrigadas em caixas de madeira padronizadas que foi aprendendo a confeccionar a partir dos 17 anos. Estrategicamente espalhadas pela propriedade de 16 hectares, cada uma chegava a ter de 80 mil a 100 mil abelhas jataí e jandaíra, entre outras espécies nativas.

Conhecedor dos nomes científicos e principais hábitos das abelhas, o ex-produtor menciona que as chamadas de canudo (ou tucano), por exemplo, eram as campeãs de produtividade.

“Produziam de 5 a 6 quilos, por caixa. Mas, atualmente, a produção de cada uma não rende nem meio quilo”, calcula, correlacionando esse declínio à expansão gradativa da soja nas últimas duas décadas na região.

E acrescenta que o agronegócio mudou o comportamento e a dinâmica de reprodução desses polinizadores. “Quantas vezes encontramos caixas completamente vazias ou enxames mortos”, denuncia. Assim, o sonho de manter essa atividade comercial ruiu completamente depois de 40 anos dedicados à meliponicultura.

Com cerca de 100 caixas que restaram na chácara, João do Mel admite que naquele “cemitério de colmeias” jaz a meliponicultura como atividade de reconhecida importância socioeconômica e ambiental. As pequenas quantidades de abelhas que resistem precisam se alimentar do próprio mel produzido nas últimas colmeias que ele mantém somente para nutri-las.

“Se tirar o mel o enxame se acaba”, explica, acrescentando que além da redução da quantidade de áreas de florestas e, consequentemente, das floradas das quais dependem esses e outros polinizadores, a situação piora na temporada de chuvas intensas na Amazônia.

Como outro reflexo do desequilíbrio ecológico regional, o ex-produtor menciona que não faltam, ainda, as investidas de tamanduás que, ao farejarem a presença de abelhas, muitas vezes rompem as tampas das caixas em busca das colmeias que restam.

Com olhos marejados e voz embargada, ele confessa ainda estar sentindo o impacto emocional pelo extermínio das abelhas na sua propriedade e nas de outros produtores da região. Argumenta, ainda, que o fracasso dessa prática tradicionalmente vinculada à cultura indígena, à agricultura familiar e à agroecologia representa um sinal de risco, principalmente à segurança alimentar, embora considere que o problema seja pouco percebido por grande parte da sociedade em níveis local e regional.

“O agronegócio chegou como uma bomba atômica a Belterra e o seu impacto foi violento”, opina João do Mel. “O agrotóxico pulverizado nos plantios de soja se dispersa no vento e na chuva, afetando toda a cidade”, alerta. Segundo ressalta, seus efeitos podem atingir até mesmo as árvores mais altas, cujas floradas são buscadas pelas abelhas sem ferrão. Ele se queixa da falta de fiscalização ao uso desses produtos químicos que parece sem controle. Também destaca que são cada vez mais comuns os casos de câncer na região, doença praticamente inexistente antes da expansão dessa cultura agrícola.

O ex-produtor compara que enquanto a agricultura familiar é benéfica à presença de abelhas, as monoculturas, de forma geral, contribuem para ampliar a perda de habitat, entre outros impactos ambientais que têm dizimado esses e outros polinizadores. “O homem não vê o tempero da natureza”, lamenta.

Mas além dos sabores que a floresta assegura à sociedade, a partir dos alimentos e outros recursos, ele destaca também os benefícios da biodiversidade relacionados à saúde humana e exemplifica a partir de um tema que domina: “O mel da abelha jataí é bom para labirintite,”

Em um passeio com a equipe de reportagem pela chácara, João do Mel demonstra atenção a cada detalhe das conexões entre fauna e flora. “A cotia passou por aqui. Veio comer tucumã”, explica mostrando as marcas das patas do animal deixadas na terra molhada e aponta para o pé de tumumã carregado, com muitos frutos já caídos pelo chão.

Apaixonado por música e poesia, ele conta que também gosta de criar a partir da inspiração nas dinâmicas da natureza. Seus versos refletem a desolação e a revolta sentidas, diante do cenário de morte das abelhas, além de lançarem questionamentos: “A ecologia perdeu seu lugar. Lutar para quê, se a vida é matar ou morrer?”, diz em O Lamento do João do Mel, poema que tem tornado conhecida a sua história e despertado o interesse de estudiosos e outros profissionais atentos ao que acontece na região.

Filho de pais que vieram do Ceará para trabalhar no fracassado polo da borracha da Amazônia e se radicaram em Belterra, ele deixa escapar alguns sinais de força e esperança, apesar da amargura que confessa ainda sentir. Quando reconheceu a impossibilidade de tirar o sustento da produção de mel, João do Mel decidiu mudar de ramo, passando a produzir móveis e peças decorativas com restos de madeira em uma oficina que instalou na chácara.

Agora se autodenomina artesão e sua produção tem atraído as atenções na região pela criatividade e pelo design diferenciado. Também está prestes a ser pai e, ao falar sobre o filho que deve nascer em meados do ano, sorri e demonstra motivação diante da perspectiva de vida renovada.

Mas volta a demonstrar desânimo, quando indagado sobre as expectativas para o desenvolvimento da cidade que será a terra do seu filho: “Não vejo futuro nenhum em Belterra”, afirma. E se tivesse que dar um conselho para quem deseja se dedicar à meliponicultura na região? “Eu não aconselharia. É prejuízo na certa. Muitas abelhas já foram extintas e outras serão brevemente”, conclui.

No entanto, na entrada da propriedade e no entorno da casa, cercada por milhares de árvores que ele plantou pensando nas abelhas que desejava atrair, se percebe a presença de uma grande quantidade de vasos com plantas, cujas flores também exercem essa função. Tudo isso parece querer transmitir aos visitantes mais atentos a ideia de que, assim, o ciclo de polinização não se fecha completamente. Pelo menos, não na Chácara João do Mel.

Jandaíras contra a extinção

Em outra área de 16 hectares de floresta conservada, o pastor José Batista Ferreira, 57 anos, também tenta livrar as abelhas da extinção. Desde a adolescência, o pastor Natalino, como é mais conhecido, tem uma grande preocupação com a proteção da natureza, tanto que há cerca de 40 anos tem se dedicado à criação desses polinizadores. Assim como o irmão, João do Mel, ele tem predileção pelas abelhas sem ferrão. Ambos sorriem quando comparados à jandaíra, espécie resistente às condições adversas.

Para o pastor, o avanço do agronegócio pode ter sido importante do ponto de vista econômico para o Brasil, mas a julgar pela realidade de Belterra, o balanço não é positivo. Para ressaltar a gravidade da situação, relata que, há 20 anos, a sua produção de mel alcançava até seis toneladas, por ano. Em 2019, foram produzidos somente 100 quilos, mesmo tendo uma área de floresta com diversidade de espécies que contribuem para a proteção das abelhas. Dessa forma, a sua escala comercial também foi sendo gradativamente inviabilizada, assim como a do irmão e a de outros meliponicultores da região. Apesar disso, os esforços de reprodução continuam impulsionando as ações cotidianas na propriedade. “O que ainda fazemos é para livrar as abelhas da extinção”, afirma.

Durante a entrevista, o pastor aponta para os ingás e avisa: “Tá na hora da florada”. Nos arredores do sítio explica que espécies como cedro, murta, louro, pau-ferro e outras florescem em diferentes épocas do ano. Assim como na propriedade do irmão, apesar da queda da produção do mel, considera que o ambiente ainda pode ser considerado uma “ilha de vida silvestre”. Em torno das caixas de abelhas jataí, por exemplo, conta que são avistados morcegos, beija-flores, borboletas e mariposas. Nos arredores da casa também são vistos tamanduás, pacas, tatus e cotias. “A diversidade da floresta garante um mel de alto valor nutricional”, ressalta.

O pastor também considera que o uso de agrotóxicos nas plantações de soja tem relação direta com a perda gradativa da produção de mel, antes abundante na região. Ele relata que, encontrar colmeias vazias se tornou uma rotina, quando antes quase não cabiam de abelhas e mel, o que leva a crer em uma mudança na dinâmica de reprodução desses polinizadores. “Se as abelhas deixarem de existir, outras espécies vão desaparecer e o ser humano também”, alerta.

Com expressão preocupada, conta, ainda, que produtores de soja estão interessados em comprar as suas terras, mas fazem ofertas abaixo do real valor da propriedade. Tem sido assim com outros proprietários, conforme inúmeros relatos ouvidos sobre esse tipo de pressão provocada pelo setor que depende de grande escala para garantir lucro.

Assim como outros entrevistados, o pastor afirma que ainda falta liderança na cidade para questionar os impactos do avanço da produção de soja percebidos no ambiente, na saúde dos moradores e, sobretudo, na agricultura familiar. Para ele, embora o prefeito de Belterra seja médico não parece priorizar as questões ambientais que têm interface direta com problemas de saúde pública.

“O veneno está no centro da cidade”

Cortada por uma rua de barro, a casa de Lucivaldo Pimentel, conhecido como Seu Lúcio, 46 anos, é separada de uma área de mais de 60 hectares de plantio de soja por uma distância de cerca de dez metros. Ele conta que, há pouco mais de dez anos, quando veio morar naquela residência, a vista era tomada por uma floresta com ipês, seringueiras, castanheiras e tantas outras árvores amazônicas. “Pouco tempo depois, chegaram os gaúchos. Passaram o trator e derrubaram tudo”, recorda. Os novos vizinhos que, nada construíram, disseram que tinham documentos de titulação, mas os moradores da localidade tinham conhecimento de que aquelas se tratavam de terras pertencentes à União.

A derrubada da floresta foi denunciada à Secretaria Municipal de Meio Ambiente e ao Ibama, relata o morador. A área chegou a ser isolada pelos órgãos públicos, mas a partir de 2010, o plantio de soja tomou forma, de vez, sendo regularmente pulverizado com agrotóxicos. Enquanto os seus quatro filhos e os filhos dos vizinhos passaram a manifestar alergias na pele, náuseas e outros sintomas, Seu Lúcio conta que começou a amargar prejuízos causados pelos impactos dos produtos químicos em árvores frutíferas e animais que serviam de fontes de renda e alimentação familiar.

No ano passado mais de 60 galinhas do seu quintal morreram, segundo ele, afetadas pelo veneno trazido pelo vento e pela chuva. Os vizinhos produtores de soja prometeram pagar cerca de R$ 5 mil, mas o ressarcimento ainda não ocorreu. Mas além de não haver mais carne e ovos para comer e vender, o abacateiro, outra fonte de renda familiar, não produz mais frutos. As bananeiras estão secando e a mangueira têm folhas escurecidas, com mangas que apodrecem antes mesmo do crescimento. Seu Lúcio relata que perdeu a conta da quantidade de pássaros mortos que tem visto. “Abelhas e outros insetos desapareceram daqui”, lamenta.

Há nove anos, ele sofreu uma queda enquanto trabalhava em uma construção. O impacto na coluna vertebral levou à perda dos movimentos das pernas. Desde então, passou a usar cadeira de rodas e a viver com um benefício de um salário mínimo. Diante da dificuldade de locomoção começou a ficar mais tempo em casa e a sentir mais diretamente os efeitos dos agrotóxicos pulverizados na plantação de soja dos vizinhos. “O veneno é lançado na parte da tarde e tem um cheiro muito forte”, afirma. E acrescenta que pode ser sentido tanto pelas crianças na escola como pelos doentes no hospital da cidade. “Sabemos que veneno em área urbana é proibido. Mas não existe fiscalização. A gente denuncia, mas não há qualquer providência”, lamenta.

Ao ser indagado sobre o que espera para o seu futuro, Seu Lúcio responde com os olhos marejados que, brevemente, aquela terra “não servirá para mais nada”. Na sua percepção, a degradação ambiental será fonte de mais dificuldades financeiras, sobretudo para a população mais pobre que, consequentemente, deverá ter mais problemas de saúde. “Eu mesmo tenho medo de ter uma doença. Sabemos que têm morrido muitas pessoas com câncer na cidade. Aqui não existia isso”, ressalta.

Por fim, diz não sentir que Belterra evolui com a expansão da soja. “Aqui não fica nada. Vai tudo para a China”, comenta em relação às exportações do produto, cujo cultivo tem provocado inúmeras controvérsias, embora lamente pela falta de um processo de mobilização mais amplo da sociedade local diante do avanço das áreas plantadas e, consequentemente, dos seus impactos socioambientais. “A gente sente os efeitos na pele e percebe os problemas na natureza, mas o Ministério Público quer provas”, conclui.

Morte no ar

O comportamento dos agrotóxicos no ambiente representa uma das principais preocupações dos pesquisadores dedicados aos estudos sobre esses produtos químicos, segundo o biólogo Ruy Bessa, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). “Essas substâncias transitam por todas as matrizes ambientais. Estão no solo, na água, no ar, na biota e em nós”, afirma o especialista que atua em ecotoxicologia, uma área de pesquisa com interfaces entre os temas de saúde ambiental e saúde pública.

Ao tomar conhecimento dos relatos ouvidos pela equipe de reportagem, o professor concordou com as percepções dos entrevistados sobre os potenciais riscos de dispersão de agrotóxicos pelo ar, pela água da chuva, bem como por outros meios. “O apodrecimento ou enrugamento das folhas do abacateiro do morador de Belterra se deve a isso”, adianta. “A literatura científica nos informa que mais de 90% desses venenos, desses compostos, quando aplicados, atingem populações formadas por não alvos. É o abacateiro do seu João, a mangueira, a andiroba. São os roedores, os pássaros, as abelhas e somos nós”, acrescenta.

Como indicador de problemas relacionados à “saúde ambiental”, Bessa destaca que há um declínio nas populações de abelhas, em nível mundial, não causado apenas pelo uso de agrotóxicos. Na Região Metropolitana de Santarém são afetadas, especialmente, as abelhas sem ferrão. O especialista destaca que sem essas formas de vida, “as florestas encolhem”. A importância socioambiental e econômica dos serviços de polinização é apresentada no Relatório Temático sobre Polinização, Polinizadores e Produção de Alimentos no Brasil, lançado em 2019, pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES, na sigla em inglês)

Defensor da ampliação de monitoramento sistemático sobre os potenciais impactos causados pelos agrotóxicos na Região Metropolitana de Santarém, o professor também alerta para outros riscos que preocupam os pesquisadores. “O problema maior é que nós estamos no coração da região. No meio da área de produção [de soja] nós temos a Floresta Nacional (Flona) do Tapajós”, alerta. Essa unidade de conservação federal, de importância socioambiental e econômica central para a região, ocupa 527,3 mil hectares, abrangendo os municípios paraenses de Aveiro, Belterra, Placas e Rurópolis, embora a sua maior extensão (248,2 mil hectares, 46,94% da área total) esteja localizada em Belterra. O especialista defende, principalmente, análises de riscos de contaminação dos seus recursos hídricos.

O professor adverte, ainda, que alguns compostos químicos presentes nos agrotóxicos podem se movimentar com mais facilidade na Região Metropolitana de Santarém devido ao seu tipo de solo mais aerado. “Essa contaminação pode atingir o lençol freático”. Para o especialista, essa problemática precisa ser mais amplamente investigada.

Muito além da soja

O passado de Belterra foi marcado, no início do século passado, pela tentativa frustrada de Henry Ford, na época o empresário mais rico do mundo, de produzir borracha na Amazônia, a partir de concessões governamentais para exploração de cerca de 1 milhão de hectares. No Pará, o projeto de plantio de seringueiras para a fabricação de pneus dos automóveis da companhia norte-americana foi iniciado por Fordlândia, atualmente pertencente ao município de Aveiro.

O projeto falhou por uma série de razões: as particularidades naturais do bioma (incluindo a sazonalidade de seus rios), a praga que atingiu as árvores plantadas e a resistência cultural de seus povos aos hábitos estrangeiros. Por isso, Belterra foi a segunda escolha pela sua localização, solo e relevo, considerados privilegiados à expansão dessa monocultura.

Embora essa nova investida também não tenha dado certo, resquícios da presença norte-americana ainda são perceptíveis na atualidade. Os traços são visíveis na arquitetura de prédios públicos e da vila de casas construída para as famílias dos funcionários que vieram viver na cidade, fundada em 1934, com objetivo de abrigar um polo industrial. Seu nome deriva de Bela Terra, uma expressão de surpresa diante das riquezas naturais existentes em abundância, até então.

A família da professora Laura Chagas vive na casa número 2, construída em madeira de pequiá e castanheira, para hospedar o então presidente Getúlio Vargas, que visitou o mega projeto no início da década de 1940. Há 54 anos, a residência passou à propriedade da família já que o pai dela veio para a região, como agrônomo, para atuar no polo da borracha e, posteriormente, foi contratado pelo Ministério da Agricultura. A casa número 1, também erguida em madeira nobre, foi projetada para receber o empresário Henry Ford, que nunca veio à região temendo contrair doenças tropicais.

Ela conta que além da vila residencial a Ford providenciou a instalação de infraestrutura urbana de Belterra, cidade que foi projetada em quadras. Água tratada e canalizada, hospital, telecomunicações, entre outros serviços foram trazidos à cidade em caráter pioneiro na região.

“Esse passado deixou uma infraestrutura que continua servindo à cidade. E hoje o que a soja deixa para nós?”, questiona a professora, graduada em biologia e preocupada com os impactos socioambientais desse modelo de monocultura que se expandiu na região.

No documentário Beyond Fordlândia (Muito além de Fordlândia no título em português), dirigido pelo pesquisador Marcos Colón, é traçado um paralelo entre passado e presente da região, a partir de uma narrativa que ilustra como a cultura da soja se beneficiou do caminho aberto pelo projeto megalomaníaco de Ford, cujo desmatamento se deu em larga estala visando à substituição da floresta nativa pela monocultura de seringueiras.

Cortada pela controversa rodovia Santarém-Cuiabá, a BR-163, Belterra e seus 17 mil habitantes estão inseridos num polo regional de produção da oleaginosa, em expansão de produção e impactos nos últimos 20 anos.

Francisco Bezerra Oliveira, 80 anos, conhece bem a história de se tentar, sem sucesso, fazer de Belterra um laboratório a céu aberto de produção de borracha natural. Ele conta que seus pais vieram com a família do Ceará, atraídos por essa promessa não cumprida de progresso para a Amazônia.

Entre passado e presente, o aposentado também busca traçar um paralelo pela experiência de vida. “Assim como aconteceu com as seringueiras, a soja também não vai dar certo”, sentencia. “O solo não é apropriado”, acrescenta destacando a necessidade de uma grande quantidade de produtos químicos para viabilizar os plantios.

Francisco reconhece que a riqueza da Amazônia está na sua floresta de pé. “O solo é apropriado à floresta”, reforça ao reclamar que o desmatamento da região, também associado à expansão da soja, contribui para o desaparecimento das abelhas e de muitas outras espécies.

Considera inaceitável a expansão da soja e a pulverização de agrotóxicos na cidade. Ele diz conhecer famílias que sofrem diretamente “os efeitos dos jatos de veneno”, precisando vedar janelas e outras entradas de ar de suas casas durante essas aplicações nas plantações no entorno. Mas reclama da falta de fiscalização e de mobilização da sociedade para um enfrentamento mais enérgico do problema.

Lamenta, ainda, que, historicamente, seja recorrente na Amazônia a concessão de terras públicas para plantio de culturas que não são nativas da região. Sua visão crítica se reflete nas músicas e paródias que gosta de criar. Ao violão entoa: “…A soja plantada, a mata sumindo e o povo assistindo sem nada fazer”. Outros versos dão o tom do entendimento da interface entre desmatamento e o agravamento da crise climática: “Motosserra zoando e o clima só faz aquecer….”

O aposentado reconhece que existem leis para a salvaguarda da natureza, mas que não estão sendo cumpridas devido aos inúmeros interesses econômicos e políticos envolvidos. Suas ideias também se transformam em versos críticos que soam ao violão em questionamento: “… A lei protege, mas que proteção é essa, se o trator e a motosserra todo dia fazem festa?….”

A equipe de reportagem manteve contatos com o prefeito de Belterra, Jociclélio Castro Macedo, e com a assessoria de imprensa da ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina. Mas, até o fechamento desta edição, não houve retorno às solicitações de entrevistas para discutir possíveis soluções para os problemas relatados nesta reportagem.

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A professora Laura Chagas mostra sementes de Andiroba em Belterra, onde vive

Como comprovar a contaminação?

Relatos de problemas provocados pela expansão agrícola na Região Metropolitana de Santarém, dentre os quais, o uso de agrotóxicos nos plantios de soja, têm sido frequentemente ouvidos pelo biólogo Ruy Bessa, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), especialista na área de ecotoxicologia.

Embora indícios sobre os impactos socioambientais já tenham sido levantados por alguns estudos realizados e, outros em andamento, comprovar a relação de causa e efeito dessa atividade para fins de responsabilização e adoção de novos protocolos de controle não é tarefa fácil. Parte da solução depende de monitoramento sistemático do teor de resíduos de agrotóxicos. Mas instalar um laboratório para esse fim “é um sonho” que custaria pelo menos R$ 10 milhões.

Apesar do alto custo relacionado à instalação de um laboratório analítico de resíduos, “esse sonho” compartilhado pelo professor e outros atores sociais da região atenderia às demandas tanto dos órgãos de controle, que carecem de elementos comprobatórios, como da população exposta. Embora não haja nenhum acordo, no sentido de financiamento desse tipo de laboratório, Bessa considera fundamental que a iniciativa seja concretizada, futuramente, uma vez que seria benéfica para toda a sociedade.

Ele explica que a comprovação dos efeitos causados pela exposição a determinadas substâncias tóxicas é um processo que envolve grande complexidade, sendo comum, inclusive, a falta de respostas para a detecção da presença de resíduos em alguns organismos. Um exemplo nesse sentido se relaciona às análises a partir da coleta de sangue. Nesse caso, é difícil determinar se exposição a algum contaminante é recente ou se ocorreu no passado.

Por outro lado, os cabelos, as unhas, a saliva e a urina são matrizes biológicas importantes para a medição de contaminação do organismo por substâncias tóxicas. Entretanto, quando se realiza a verificação por uma dessas vias, é possível detectar o composto, ou não, ou mesmo, identificá-lo em baixas concentrações. Não por acaso, os custos desse tipo de investigação são altos e o monitoramento do problema precisa ser realizado mais ampla e continuamente, conforme recomenda o biólogo.

Diante das inúmeras dificuldades envolvidas com as análises de organismos vivos, incluindo o uso de métodos invasivos como a coleta de sangue, Bessa menciona que a água representa uma das matrizes mais fáceis de serem analisadas em processos de investigação sobre a presença de contaminantes.

Dos estudos pontuais ao ganho de escala, eis o dilema

Atento às demandas da sociedade sobre a necessidade de investigação mais ampla sobre os impactos decorrentes do uso de agrotóxicos nos plantios de soja da Região Metropolitana de Santarém, o biólogo e professor Carlos Passos, da Universidade de Brasília (UnB), destaca a importância de realização de pesquisas com metodologias mais arrojadas.

Passos esclarece que, as pesquisas já realizadas, na região, não são, ainda, suficientemente avançadas, elaboradas e aprofundadas. “São pesquisas-piloto, projetos iniciais, embora essenciais para se compreender as necessidades de estudos, de fato, elaborados com metodologias mais arrojadas”, opina. Ele acrescenta que esse tipo de avanço é fundamental para que se possa analisar, mais amplamente, o grau de distribuição e de ocorrência de contaminantes no ambiente, além dos seus potenciais riscos à saúde humana.

A articulação de projetos em rede, segundo Passos, representa uma das principais demandas para o enfrentamento da realidade ainda marcada por estudos pontuais sobre essa problemática. “Até para que seja possível compreender melhor, comparativamente, como as situações vão se diferenciando, de uma região para outra, esse tipo de articulação é fundamental”, analisa.

Na opinião do especialista, essa forma de atuação contribuiria para avanços no planejamento de estratégias de intervenção, visando à redução de riscos socioambientais decorrentes da expansão agrícola na Região Metropolitana de Santarém.

Pesquisas já indicaram a contaminação em leite materno

Mesmo diante de algumas limitações metodológicas referentes às pesquisas sobre os impactos do uso de agrotóxicos na Região Metropolitana de Santarém, incluindo suas escalas temporais e espaciais, além de seus altos custos, experiências já realizadas por universidades públicas sinalizam para alguns riscos que preocupam os pesquisadores.

Na dissertação de mestrado “Avaliação da presença de pesticidas organoclorados em leite materno e bovino dos municípios de Mojuí dos Campos e Belterra”, defendida em 2018 e coorientada por Ruy Bessa, foram identificadas cinco localidades rurais desses municípios, onde 15 amostras coletadas apresentaram resíduos dos organoclorados DDT e DDE (seu metabólito primário).

O DDT é um pesticida proibido no país há mais de 30 anos. Seu nome consta na listagem da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) referente aos princípios ativos de uso não autorizado no Brasil. Entretanto, na pesquisa realizada na UFOPA, as amostras positivas (26% com resíduos de DDT e 46% com resíduos de DDE) estavam acima dos valores estabelecidos como seguros para a saúde humana pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

O uso intensivo de DDT para o combate aos vetores de algumas doenças tropicais como a malária, medida que perdurou até a década de 1990, é cogitado como um dos possíveis fatores da contaminação identificada nos municípios paraenses. O solo também pode ter sido afetado pela utilização do DDT, na agricultura, até a década de 1980. Mas outras hipóteses são também mencionadas por Bessa.

“A dieta das populações rurais da Amazônia, fortemente concentrada no pescado, neste cenário, capturado próximo às áreas agrícolas, pode indicar provável contaminação dos ambientes aquáticos”. E alerta: “Não se pode descartar a entrada sem registro de produtos comerciais à base de DDT, ainda largamente usados em países da Pan-Amazônia.”

A situação tem paralelo com o que se apurou em pesquisa realizada em Lucas do Rio Verde, cidade do Mato Grosso considerada um dos principais polos do agronegócio brasileiro, onde foi detectada a presença de agrotóxicos no leite materno. Naquele caso, 100% das 62 amostras analisadas apresentaram resíduos de dez substâncias presentes em agrotóxicos. A repercussão veio com uma dissertação de mestrado na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) orientada por Wanderlei Pignati, referência brasileira no tema.

A pesquisa mencionada foi um dos principais desdobramentos científicos destinados à investigação de impactos decorrentes de pulverizações aéreas com agrotóxicos, realizadas em março de 2006, em Lucas do Rio Verde, por fazendeiros que estavam dessecando a soja para a colheita.

Naquela época, uma nuvem tóxica foi levada pelo vento para área urbana tendo dessecado plantas e provocado surtos de intoxicações na população. A UFMT e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realizaram um monitoramento no município, entre 2007 a 2014, para avaliar os impactos dessa dispersão no ambiente e na saúde humana.

As investigações de Pignati e da Fiocruz embasaram o documentário Nuvens de veneno. Pignatari e outros dois pesquisadores relataram o caso em um artigo de 2007. Paralelamente, um amplo movimento da sociedade civil ganhou força, exigindo soluções e ampliação das ações de fiscalização.

Glifosato preocupa pesquisadores

Presente em várias formulações, o glifosato é líder de mercado mundialmente. No Brasil, onde lidera as vendas, são comercializados 110 produtos contendo glifosato, conforme destaca a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Nas lavouras de soja, costuma ser aplicado para combater as ervas invasoras e dessecar a oleaginosa. O professor Ruy Bessa acrescenta que há estudos adiantados, na comunidade europeia, para o seu banimento na agricultura.

No entanto, em processo de reavaliação, oficializado em agosto de 2019, o governo brasileiro reduziu os níveis de toxicidade, ao ser humano, de 93 produtos contendo essa substância, conforme apurado em reportagens exclusivas divulgadas pela Agência Pública de jornalismo investigativo e a ONG Repórter Brasil.

Diante dessas questões e tendo em vista que nem todos os aspectos que preocupam os pesquisadores foram mapeados em escalas ampliadas, especificamente na Região Metropolitana de Santarém, Bessa alerta sobre a necessidade de desdobramento das pesquisas com essa e outras substâncias tendo esse enfoque espacial.

Nesse sentido, destaca a importância dos estudos liderados pelo biólogo e professor Carlos Passos, da UnB, que tem se dedicado às investigações sobre as águas, uma matriz que considera essencial a ser analisada em relação ao risco de contaminação por agrotóxicos.

Na dissertação de mestrado “Expansão da fronteira agrícola e presença de Glifosato e Ampa em amostras de água da Região de Santarém (PA): desafios analíticos para o monitoramento ambiental”, orientada pelo professor Carlos Passos, foram realizadas 63 amostras de águas, retiradas de córregos localizados em comunidades rurais adjacentes a grandes plantios de soja, dos municípios de Mojuí dos Campos e Santarém que, juntamente com Belterra, integram a Região Metropolitana de Santarém.

Embora as investigações não tenham confirmado a contaminação nessas amostras, foram aplicados mais de 20 questionários para agricultores “que indicam um provável risco de exposição humana a agrotóxicos, principalmente pela via respiratória”, conforme expresso no trabalho final. Como parte das conclusões dessa pesquisa é defendida a ampliação de ações de monitoramento para tomadas de decisão que visem à proteção da natureza e da saúde humana.

Em se tratando de monitoramento, Ruy Bessa destaca ser fundamental determinar o potencial de contaminação dos ambientes aquáticos por substâncias químicas que podem afetar sistemas importantes dos peixes como a visão e, consequentemente, o sistema nervoso central.

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Fordlândia, hoje um distrito de Aveiro, no Pará, foi criada a partir da monocultura de seringueiras, e hoje ainda é local de produção do agro

Ministério Público demanda pesquisas

A realização de pesquisas científicas representa uma demanda crucial para os processos de tomada de decisão do Ministério Público do Estado do Pará que já está investigando queixas da população de Belterra e região sobre impactos socioambientais decorrentes do uso de agrotóxicos. As manifestações têm sido apresentadas a partir de debates promovidos pelo Fórum Regional de Combate ao Uso de Agrotóxicos do Baixo Amazonas, movimento de articulação social, criado em 2017, que reúne pesquisadores e representações da sociedade civil com interesse no debate e na busca de soluções para o problema.

Ione Nakamura, promotora de Justiça com atuação no Ministério Público do Estado do Pará, informa que o processo investigatório, em curso, envolve coleta, tratamento e discussão de informações trazidas pelo Fórum para que seja possível avaliar qual a melhor forma de encaminhamento dessas demandas, se judicial ou extrajudicialmente.

A promotora que vem participando de diálogos com pesquisadores e outros integrantes do Fórum esclarece que, por meio desse espaço de debate e articulação, os especialistas têm buscado a construção de uma nota técnica a respeito de todas as metodologias de análises ambientais e humanas para se avaliar impactos dos agrotóxicos no ambiente e na saúde humana. Com base na literatura e nas evidências científicas, a ideia é apresentar orientações a partir da realidade da Região Metropolitana de Santarém.

“Essas evidências também vão nos ajudar nos trabalhos de acompanhamento de comunidades que têm tido a produção de frutas reduzida e a gente sabe que essa produção tem as abelhas como polinizadores. Nessa cadeia de troca de informações, o Fórum pretende ir construindo uma base de análises e monitoramento dos impactos dos agrotóxicos nessa região” adianta a promotora.

Ela percebe que há um processo gradativo de sensibilização da sociedade e de união de esforços para o levantamento de informações e acompanhamento dessa temática. “Talvez a gente só vá realmente perceber a importância disso daqui a algumas gerações. Mas a gente quer que não seja tarde demais e que se consiga fazer alguma coisa hoje”, analisa.

A promotora acrescenta que as ações dos envolvidos nessa missão são inspiradas no Princípio da Precaução, utilizado pelo direito ambiental internacional em situações de incertezas sobre os impactos de determinadas atividades ou substâncias, na tentativa de se evitar possíveis efeitos na saúde humana e no ambiente,

“Vamos tentar usar a precaução, quando não se tem certeza dos impactos, além da prevenção, quando já sabe que uma determinada atividade causa impactos para buscar reduzi-los a partir de políticas públicas e outras alternativas”, adianta. Nesse contexto, Nakamura considera importante até mesmo discutir ajustes na condução de políticas públicas, caso isso seja necessário, para se garantir a prevalência da vida e do direito das populações que podem vir a ser atingidas por atividades impactantes ao ambiente e à saúde humana.

O professor Bessa informou que todos os trabalhos acadêmicos que orienta ou coorienta serão depositados no Ministério Público. “Esse arsenal tem que existir para que apoie as petições, os documentos que são oriundos do judiciário para convocação, intimação, ou qualquer coisa desse tipo”, conclui.

Desafios para o controle

A expansão do agronegócio e a proximidade cada vez maior entre as plantações de soja e as comunidades rurais e urbanas dificultam controle e fiscalização do uso de agrotóxicos na Região Metropolitana de Santarém.

São dois desafios: a subnotificação de casos de intoxicação por contato com essas substâncias químicas e a desinformação, que tende a ampliar os riscos socioambientais causados pela manipulação ou aplicação inadequadas de produtos tóxicos nas lavouras.

O panorama é sintetizado por Gracivane Moura, liderança que tem buscado respostas para esses dilemas enfrentados pelas populações mais vulneráveis em três frentes de atuação na região. Como presidente do Conselho Municipal de Saúde de Santarém, secretária de Políticas Sociais do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém, além de secretária do Fórum Regional de Combate ao Uso de Agrotóxicos do Baixo Amazonas.

As ações são voltadas à orientação dos profissionais de saúde sobre como identificar possíveis interfaces entre sintomas relatados e a exposição dos pacientes às substâncias químicas usadas nos plantios, cada vez mais próximos às moradias das famílias que buscam atendimento médico. “Temos trabalhado nisso. Já estamos na terceira campanha de combate ao uso de agrotóxicos na região e desde a primeira temos trazido os agentes comunitários de saúde para atividades no Fórum”, afirma.

Ela reconhece que algumas queixas como vômito, tontura, dores de cabeça, entre outras, tendem a serem registradas, recorrentemente, como “virose”, seja por desinformação de alguns profissionais de saúde, ou por medo de retaliações à notificação compulsória de intoxicação por agrotóxicos.

Desde 2011, as denominadas intoxicações exógenas (envolvem substâncias químicas como agrotóxicos, gases tóxicos e metais pesados) devem ser notificadas, conforme determinado pela Portaria Nº 104 do Ministério da Saúde.

Mas o medo de retaliações ganhou mais força diante de um episódio ocorrido na região, há pouco mais de um ano, quando uma técnica de enfermagem que realizou algumas notificações de intoxicação por agrotóxicos foi exonerada. Por medida de segurança, o nome da profissional de saúde e outros detalhes sobre esse caso não foram divulgados. No entanto, foi esclarecido que o Fórum vai buscar uma forma de reverter a exoneração por meio de ação junto ao Ministério Público.

Quanto à falta de informação sobre os riscos associados ao uso inadequado de agrotóxicos nas áreas rurais, a gravidade da situação é exemplificada pelos casos de agricultores que aplicam esses produtos químicos nas próprias pernas.

Dessa forma, consideram que não serão picados por formigas durante o trabalho na lavoura. “Temos trazido essa discussão para o Fórum e também conseguido reverter alguns casos com campanhas educativas”, adianta a líder sindical.

Descalço e confiante na proteção divina

De pés descalços, vestido com roupas rasgadas e sem qualquer proteção, sob um sol a pino, o agricultor Antônio Carlos Alexandre do Nascimento, 51 anos, aplica na sua roça os jatos de agrotóxico lançados de um equipamento de pulverização carregado nas costas. Essa demonstração evidente de risco associado à falta de informação e à vulnerabilidade social foi flagrada às margens da BR-163, no sentido Belterra-Santarém.

Com jeito desconfiado, evitando entrar em muitos detalhes sobre a sua rotina, Nascimento relata que tem trabalhado como agricultor desde os 17 anos, sem nunca ter recebido nenhum tipo de instrução sobre como lidar com agrotóxicos. Não por acaso, as dosagens são determinadas pela sua própria intuição.

Entre ramas de abóbora, para onde lança os jatos de veneno, ele afirma que se sente protegido por Deus. Por isso, não teme problemas de saúde decorrentes do contato com esses produtos químicos que sempre “ajudam a afastar uns bichinhos” dos alimentos cultivados, segundo ele, para consumo da própria família.

O biólogo Ruy Bessa relata que costuma apresentar na UFOPA exemplos históricos de como nos campos de algodão, do sul dos Estados Unidos, a aplicação de agrotóxicos como o DDT ocorria sem nenhum tipo de segurança, nas décadas de 1930 e 1940. Pela experiência acumulada na área de ecotoxicologia, ele afirma que, o que acontecia naquele país, no início do século passado, “continua acontecendo de forma muito corriqueira, não somente na Amazônia, mas no Brasil, em geral.”

Além de “muita permissividade no consumo de agrotóxico no país”, alguns outros fatores contribuem para essa realidade, na opinião do professor, dentre os quais, uma relativa facilidade de aquisição. Há uma legislação específica, determinando que a compra de um produto dessa natureza somente seja permitida mediante receituário de profissional habilitado (agrônomo e engenheiro florestal). Mas Bessa ressalta que nas lojas de artigos de agropecuária não é difícil adquirir esse tipo de substância, muitas vezes manipulada e aplicada sem critérios técnicos e sem proteção individual como nesse caso do agricultor de Belterra.

Além de ampliação da disseminação de informações para os agricultores e de ações de fiscalização de aquisição e uso, o especialista defende estudos em novas tecnologias de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), fundamentais para quem atua com a manipulação de agrotóxicos. Da mesma forma, alerta para a importância de capacitação e mobilização dos agricultores paraenses para ampliar as práticas de produção agroecológica.

Exposição prolongada preocupa especialistas

Diante de inúmeras formas de exposição ao uso prolongado de agrotóxicos, sobretudo envolvendo aplicação em larga escala, profissionais de saúde estão interessados na investigação do histórico de casos de câncer na Região Metropolitana de Santarém. Na comunidade de Boa Esperança, por exemplo, 12 pacientes em tratamento da doença vêm sendo acompanhados há quatro anos por integrantes do Fórum e organizações parceiras.

Mas devido à intensificação desse debate, os agentes têm sido cada vez mais cobrados pelos sindicatos dos produtores rurais da região. Ligadas principalmente à cadeia de soja, as entidades demandam a apresentação de resultados concretos de contaminação do ambiente e de impactos na saúde pública provocados por agrotóxicos utilizados nas suas atividades.

Como especialista que tem buscado intensificar investigações científicas sobre essa problemática na Região Metropolitana de Santarém, o biólogo Carlos Passos, professor da UnB, diz que algumas pesquisas com esse enfoque estão em curso, embora os seus resultados não sejam alcançados de forma imediatista. São análises de longo prazo que, inclusive, precisam ser ampliadas em seus processos metodológicos para orientar decisões futuras.

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Produção de mel na Resex Tapajós Arapiuns. Foto: Alexandre Godinho/PSA

Abelhas onde a soja não chegou

O tripé da crise já identificada na região é formado por fatores como a contaminação ambiental, o agravamento de problemas de saúde pública e o acirramento de conflitos agrários. Tudo isso já se reflete na dificuldade de manutenção do cultivo de abelhas sem ferrão por agricultores familiares e, consequentemente, na inviabilidade da produção e do comércio de mel.

Nas 297 comunidades de origem dos 8 mil trabalhadores rurais filiados ao Sindicato de Santarém, quase ninguém mais cultiva abelhas para a produção de mel. Mas a atividade ainda existe na Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns, que abrange partes dos municípios de Aveiro e Santarém, “onde o agronegócio ainda não alcançou”, afirma a líder sindical Gracivane Moura. Seus argumentos reforçam a importância de manutenção da floresta de pé e da valorização dos conhecimentos das comunidades tradicionais para assegurar o futuro da meliponicultura e de todos os ganhos socioambientais e econômicos decorrentes dessa prática.

A Resex Tapajós-Arapiuns é uma das áreas onde a ONG Saúde & Alegria vem atuando, nos últimos três anos, em projetos de estímulo ao empreendedorismo comunitário, dentre os quais, o manejo de abelhas. Para que seja possível avançar no fortalecimento da produção de mel, estão sendo impulsionadas ações de capacitação e reflorestamento com espécies de árvores como cumaru, ingá e outras de preferência de abelhas nativas.

Com apoio de diversas organizações parceiras, outras comunidades incluídas nessas ações estão distribuídas ao longo da Área de Proteção Ambiental (APA) Alter do Chão, da Floresta Nacional (Flona) do Tapajós e no Assentamento PAE Lago Grande. Um levantamento indicou que essa mobilização contribuiu para a produção de 1,6 mil litros de mel, a partir de 1,7 mil colmeias, entre o início de 2018 e maio de 2019.

Alexandre Godinho, técnico agropecuário e morador da comunidade Anã, na Resex Tapajós-Arapiuns, tem atuado diretamente nas ações de capacitação dos meliponicultores das comunidades contempladas com as ações de empreendedorismo. Além do desenvolvimento de um plano de negócios para que o produto final seja reconhecido no mercado, outra demanda percebida no diálogo com os produtores envolve a criação de uma cooperativa.

Ele conta que a presença dessas áreas protegidas faz grande diferença na vida dessas comunidades, em contraste com a realidade de tradicionais produtores de mel da região. “Tenho amigos de Belterra que perderam em um ano tudo o que construíram em 20 anos”, lamenta.

Caetano Scannavino, coordenador da ONG Saúde & Alegria, destaca que a produção de mel nessas comunidades representa uma alternativa das mais promissoras e surgiu do desejo manifestado pelos próprios comunitários. Essa foi uma das cadeias produtivas identificadas, nos últimos quatro anos, quando foram traçadas estratégias de atuação para reflorestamento, além de mapeamento de vocações socioeconômicas regionais compatíveis com a manutenção da floresta e dos modos de vida das suas populações tradicionais.

O ambientalista conta que, além da possibilidade de comercialização de mel, própolis e outros derivados, esse é um tipo de produção que também contribui para o fortalecimento da segurança alimentar. “A rede de manejadores que apoiamos já está pensando em venda de colmeias e aumento da produtividade”, comemora.

Scannavino acrescenta que a proposta da organização e de seus apoiadores é de atuar fortemente com o reflorestamento do complexo da Flona do Tapajós e da Resex Tapajós-Arapiuns, com 30 mil mudas de árvores nativas. Brevemente, o movimento deve alcançar também os arredores de Belterra envolvendo grupos para ações de capacitação. Com entusiasmo, o ambientalista afirma que o Brasil pode ser líder em projetos socioambientais.

Mel, azeite de castanha e óleos de andiroba e copaíba são alguns dos produtos com grande potencial de produção em bases mais sustentáveis que menciona como exemplos do que pode ser incentivado na chamada bioeconomia da Amazônia. Nesse contexto, ele considera fundamental o compromisso de desmatamento zero pelo agronegócio.

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Capacitação na comunidade da Resex Tapajós Arapiuns para produção de mel. Foto: Projeto Saúde e Alegria

Resgatar o valor da floresta é fundamental

Diante da exuberância das sementes de andiroba recolhidas do chão, a bióloga e professora Laura Chagas explica que parte da riqueza da Amazônia está atrelada ao acúmulo de matéria orgânica depositada no seu solo. Apontando para o emaranhado de folhas, galhos, cascas, frutos e sementes, tudo ainda bem molhado pelas fortes chuvas amazônicas, ela observa que esses e outros elementos naturais, quando decompostos, se transformam em nutrientes fundamentais.

Assim são alimentadas inúmeras formas de vida presentes em ambientes únicos como aquele fragmento verde, ainda existente nos arredores da Vila Americana de Belterra, onde mora. É desse processo que se retroalimenta, continuamente, a dinâmica da floresta de pé, cujo valor intrínseco precisa ser resgatado, na opinião da educadora.

Laura alerta que a sociedade depende dessa interação ecológica que vem sofrendo, cada vez mais, interferências de atividades econômicas insustentáveis. E enquadra nessa categoria as monoculturas que alteram ciclos naturais com consequências preocupantes para o equilíbrio climático, além da proteção das reservas de água e das espécies, dentre as quais, as abelhas e outros polinizadores. Além de indicadores da qualidade do ar, esses são elementos vitais à produção de tradicionais alimentos amazônicos.

“Como vamos ficar sem castanha-do-pará, açaí, buriti e cupuaçu? Eles dependem das abelhas. Sem elas, como será?”, questiona.

Do passado marcado pela devastação da floresta para a construção de infraestrutura urbana, à expansão da produção da soja, cultura estabelecida, também, pela ampliação do desmatamento, a professora confessa não enxergar avanços atuais em Belterra e arredores. Pelo contrário, considera preocupante o cenário para essa região. Sua percepção de riscos é resumida com a seguinte analogia: “Plantar soja na Amazônia é como jogar bola em uma casa de vidro.”

Com base em uma imagem do Google Earth, a professora afirma que Belterra “é uma cidade sitiada pelos plantios de soja”. E identifica na foto os locais onde funcionam prédios públicos como escola, hospital e posto de saúde, além de quadras de propriedades de meliponicultores, todos cercados por plantações da oleaginosa.

Sobre cenários de riscos existentes, a professora destaca que a floresta também tem as suas fragilidades, além de interconexões entre espécies que estão sendo desestruturadas gradativamente. Nesse contexto, exemplifica que o fipronil, agrotóxico muito usado pelos produtores de soja da região, mata as abelhas. Uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com uma empresa privada, concluiu que o fipronil pode ter causado a morte de 480 milhões de abelhas, entre 2018 e 2019, naquele estado da região sul.

Na escola de ensino médio de Belterra, onde atua, Laura tem ouvido relatos frequentes de pais em estado de depressão, diante de perdas contínuas de suas fontes de renda e alimentação. Além disso, tem tomado conhecimento de famílias que precisam se ausentar de suas casas, por até uma semana, por não suportarem mais o efeito dos agrotóxicos pulverizados nos arredores. Algumas acabam vendendo seus imóveis como forma de escapar dessa pressão. “Quem pagará por esses prejuízos?”, questiona.

E diante dos impactos associados à alteração da dinâmica de reprodução das abelhas, dentre as quais, as mangangás ou mangangavas, ela conta que já existem famílias produtoras de frutas da região pagando por serviços de polinização manual. “Nunca pensei que algo assim fosse acontecer na Amazônia”, lamenta. E lança o desafio: “Polinizar manualmente culturas como a do maracujá pode ser mais fácil. Mas como será com árvores altas como a castanheira?”.

Como bióloga atenta a essas dinâmicas, Laura alerta, ainda, que já se tem notícias na região de competição entre abelhas para a retirada do pólen, processo que tende a se agravar diante de perda de habitat e outros impactos ambientais impulsionados, principalmente, pela expansão das monoculturas. A flora comprometida, consequentemente, vai dificultar a sobrevivência e os processos de reprodução da fauna. “Vai faltar alimento para pacas, cotias, araras e tantos outros animais da floresta. É a morte anunciada em efeito cascata”, adverte.

E diante da falta de ação do poder público para resolver a situação relatada, a professora considera que uma das saídas possíveis envolve o fortalecimento da capacidade de articulação social por meio do Fórum Regional de Combate ao Uso de Agrotóxicos do Baixo Amazonas, movimento do qual participa. “Se o Brasil não abrir os olhos terá um futuro de muita tristeza”, conclui.

O alerta da educadora encontra ressonância nos versos finais do Lamento do João do Mel, divididos entre a revolta, o questionamento, um fio de esperança e, ao mesmo tempo, o senso crítico diante da falta de respostas da sociedade que realmente contemplem o bem comum.

“Os rios poluídos, veneno ingerido, macabros presentes desse vil metal.
Eles matam por tão pouco. Na guerra das terras para onde irão?
Mas os ciclos, os ciclos da vida sobreviverão (que somos nós).
Oh pátria amada, idolatrada, salve-se quem puder.”

Mara Régia é publicitária e jornalista, baseada em Brasília, que há 40 anos dialoga com comunidades da Amazônia por meio de reportagens radiofônicas e oficinas sobre gênero, ambiente e sociedade. Vencedora por duas vezes do Prêmio Chico Mendes de Meio Ambiente.
Elizabeth Oliveira é jornalista e pesquisadora com formação interdisciplinar, baseada no Rio de Janeiro. Há 25 anos atua na cobertura de temas socioambientais e colabora com mídias especializadas. Esta reportagem foi produzida com apoio do Rainforest Journalism Fund em parceria com o Pulitzer Center.

 

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