Mais de trinta anos depois, ‘Igreja dos Oprimidos’ ainda explica o Brasil

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Leonardo Boff, Jorge Bodanzky e Lucíola Vilela em Petrópolis, no Rio de Janeiro, durante as gravações. O religioso passava por um ano de silêncio político imposto pela Igreja. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

[RESUMO] No ano de 1985, o envolvimento de correntes progressistas da Igreja Católica com movimentos sociais era cada vez maior. A vitória dos posseiros no sindicato rural de Conceição do Araguaia, no Pará, e os crescentes episódios de violência no campo ferviam o caldo da política ao fim da ditadura. Na quinta edição de Roteiros da Amazônia com Jorge Bodanzky, revisitamos a história do padre Ricardo Rezende Figueira e de sua atuação na luta pela terra.

“Meu Araguaia/Rio que me faz sonhar/com suas praias douradas/com suas noites de luar”. O violão que embala a viagem no começo de “Igreja dos Oprimidos” situa espectador e a narrativa em aspectos típicos da Amazônia: um barco no rio, floresta e as pessoas à margem dos rios.

O ano era 1985, a ditadura via chegar a conta dos seus fracassos e o Brasil parecia vislumbrar avanços. De volta ao barco no rio, a navegação continua até Conceição do Araguaia. Na zona rural do município, localizado no sudeste do Pará, um padre e cerca de cem fiéis se preparam para iniciar uma missa.

À época, Ricardo Rezende Figueira, o padre que celebra os ritos, havia sofrido cinco atentados. Embora o Brasil estivesse se preparando para dar outros passos, a situação do religioso, hoje pesquisador, traduzia um problema fundamental do país: a luta pela terra.

Na pequena Conceição do Araguaia, além da missa, o padre e a organização local da Igreja Católica apoiavam a mobilização dos trabalhadores rurais.

A política na época fervia com embates entre latifundiários, empresários e posseiros. Durante quase dez anos, o sindicato rural fora presidido por um interventor nomeado pelo tenente-coronel Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, que seria, décadas mais tarde, denunciado por crimes cometidos na Guerrilha do Araguaia.

Os posseiros eram migrantes e trabalhadores rurais que ocuparam terras devolutas, isto é, sem destinação, e pertencentes à União. Suas histórias, guiadas pelas intervenções do padre Ricardo, explicam no filme o contexto da época. E os dramas de hoje, trinta e cinco anos depois.

Ritos iniciais

Na década de 80, o cineasta Jorge Bodanzky trabalhava como câmera para uma televisão estatal da Baviera, estado alemão de forte influência católica. Seu parceiro era Gernot Schley, que, dali a alguns anos, acompanharia Bodanzky no encontro com Heidi, a mãe das preguiças em Manaus.

“A gente estava gravando um trabalho, não lembro exatamente o lugar, no interior da Paraíba e, num dado momento, vi uma cena fantástica, que detonou todo esse processo. Debaixo de uma grande árvore, um padre com sotaque alemão reunia os camponeses e rezava uma missa. Isso me lembrou do tempo bíblico, dos primeiros cristãos”, lembra o diretor.

O filme deveria ser feito a partir dessa cena. Alguns anos depois, o cineasta juntou sua vontade com um livro escrito por sua amiga Helena Salem, chamado “Igreja dos Oprimidos”, que contava a luta de correntes progressistas da Igreja e do padre Ricardo Rezende pela resolução dos conflitos fundiários.

Para viabilizar a produção, Helena fez a ponte com Lucíola Vilela, sogra e representante da produtora de Luiz Carlos Barreto. Bodanzky, que já havia trabalhado com o diretor, costurou a ponte entre Lucíola e um canal francês que hoje é o Arte.

Os franceses determinaram que Serge Guitton — o mesmo que embarcou na expedição ao Pico da Neblina e em outros trabalhos — fizesse a câmera, situação que permanece única na vida do diretor.

Os estilos diferem: a câmera fixa de Guitton e o uso de tripés substituíram, nesta empreitada, os registros dinâmicos, que ‘empurram a cena’, de Bodanzky.

Roteiro e produção preparados, era hora de estabelecer a base de trabalho em Redenção, no Pará, e começar as filmagens. É onde entra o padre na história.

Liturgia da ação

O padre Ricardo Rezende atuava havia alguns anos na Diocese de Conceição do Araguaia, e Jorge Bodanzky não teve dúvidas de que ele seria o personagem central para a obra.

“Pensei: é ele o fio condutor, ele tem tudo organizado na cabeça e vai nos levar aos lugares importantes”, lembra. “E aí as coisas foram acontecendo mais ou menos na ordem em que estão no filme”.

A missa ao ar livre, em plena Amazônia, não foi uma armação para o filme: acontecia regularmente.

O surgimento e o fortalecimento da Igreja da Libertação tinham grande repercussão no envolvimento de agentes da instituição e das pastorais locais na luta fundiária. Os padres franceses Aristides e Francisco, por exemplo, chegaram a Conceição do Araguaia em 1978 e logo começaram a trabalhar com os posseiros na mediação de conflitos.

A tensão crescente se mostrava em episódios frequentes de ameaças e assassinatos. Raimundo Ferreira Lima, agente pastoral que auxiliava os padres, foi assassinado em 1980. Gringo, como era conhecido, havia ajudado a fundar, cinco anos antes, a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Os próprios Aristides e Francisco seriam presos por dois anos, até 1983, quando voltaram para a França. Em 1985, já durante a montagem de ‘Igreja dos Oprimidos’, em Paris, eles falaram sobre a prisão e as motivações.

“Porque lá o trabalho não terminou ainda. Esse ano morreu muita gente, a situação ficou difícil, e a Igreja na mesma linha. Por isso vamos voltar. Essa área do Brasil é um pouco nossa terra.”.

E o apoio chegava a níveis mais altos entre os religiosos, como Dom Alano Pena, bispo em Marabá, que se considerava evangelizado pelo povo do local.

Então punido com um ano de silêncio pela Igreja, Leonardo Boff, um dos expoentes da Teologia da Libertação, aparece no filme e faz alusão à reforma agrária, enquanto passeia por uma horta em sua casa.

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Leonardo Boff, Jorge Bodanzky e Lucíola Vilela em Petrópolis, no Rio de Janeiro, durante as gravações. O religioso passava por um ano de silêncio político imposto pela Igreja. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

Terra e política, três décadas depois

“Em nenhum momento, desde a ditadura militar, houve uma trégua em relação a isso. A questão fundiária não é tocada, isso é uma consequência.”.

Bodanzky fala da repetição de tragédias, assassinatos e massacres, como os de Dorothy Stang, Chico Mendes, o massacre de Eldorado dos Carajás e outros episódios anunciados, como o de Erasmo Teófilo, também no Pará.

Durante as gravações do filme, a equipe encontrou até com Sebastião da Teresona. Acusado por mais de 20 homicídios na época, negava veementemente ter um ‘escritório de pistoleiro’ — um dos outros lados da história.

Além da prisão de Sebastião, o filme também aborda uma emboscada de posseiros contra um policial militar. Enquanto o corpo é levado pelos colegas, a violência mostra as facetas de um embate desigual, entre pessoas que sofrem com a pressão de mandantes e latifundiários que não estão lá.

No ano passado, por exemplo, os conflitos no campo foram os maiores em 14 anos, segundo levantamento da CPT. É por isso que “Igreja dos Oprimidos” continua a apresentar as causas e muitos dos finais possíveis para a questão fundiária — resolução ou mais violência.

Em 2017, o diretor foi convidado para exibir o filme em Marabá, no Pará. Durante a ida, havia um protesto na Curva do S, local do massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996. As mobilizações têm sido constantes, e agora o local é considerado Patrimônio Histórico do Pará.

O professor Airton Pereira, da Universidade do Estado do Pará, fez sua tese de doutorado sobre os conflitos fundiários e explicou, durante uma exibição no acampamento na Curva do S, também em 2017, destaques da mobilização que levou à vitória do sindicato rural em 1985. E o que veio depois.

“A luta dos posseiros foi muito importante na região, porque a reforma agrária é uma consequência da luta pela terra. Porque eles se organizaram e tomaram consciência de que a ferramenta importante para suas lutas era a organização do sindicato”, contou o professor.

Um dos personagens do filme, Felipinho, foi um dos protagonistas na retomada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia, com a vitória da eleição.

Uma das cenas é simbólica: a população força a entrada do prédio do sindicato, abandonado por anos, e retoma o controle. O professor Airton identifica e relata as histórias das pessoas que foram assassinadas em função do quadro de violência.

“Ele [padre Ricardo] deu carta branca, ficou muito contente com o filme, continua muito ativo”, lembra Jorge Bodanzky. O filme foi muito repercutido entre ativistas, ganhou a Margarida de Prata, prêmio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Ricardo Rezende Figueira hoje é antropólogo e professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordena o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC/UFRJ).

Depois de Conceição do Araguaia, o padre continua. O filme continua. A luta continua.

Em 2017, o diretor Jorge Bodanzky participou de uma exibição de ‘Igreja dos Oprimidos’ em Eldorado dos Carajás, local de um massacre contra posseiros em 1996. O professor Airton Pereira conversou com o público sobre os acontecimentos após a vitória e a recuperação do sindicato rural, em 1985. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

Roteiros da Amazônia é uma parceria entre o cineasta Jorge Bodanzky e a Amazônia Latitude. Confira todas as edições aqui.

 

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