Ombro Amigo: barqueiro dribla a seca e carrega crianças para que não percam aulas em comunidade ribeirinha de Santarém

“Confia em mim, não vou deixar você cair na lama!” pede barqueiro às crianças que ele precisou levar nos ombros até o transporte escolar fluvial na Amazônia

O barqueiro Lucenildo carrega crianças nos ombros para evitar que percam aulas e provas durante estiagem no Rio Tapajós. Foto: Arquivo Pessoal/Lucenildo Lameira
Lucenildo carrega crianças nos ombros para evitar que percam aulas e provas durante estiagem no Rio Tapajós. Foto: Arquivo Pessoal/Lucenildo Lameira
O barqueiro Lucenildo carrega crianças nos ombros para evitar que percam aulas e provas durante estiagem no Rio Tapajós. Foto: Arquivo Pessoal/Lucenildo Lameira

Lucenildo carrega crianças nos ombros para evitar que percam aulas e provas durante estiagem no Rio Tapajós. Foto: Arquivo Pessoal/Lucenildo Lameira

Há mais de 10 anos, Lucenildo Lameira, de 46 anos, trabalha no transporte escolar fluvial no distrito de Boim, em Santarém, Oeste do Pará. A missão dele é levar e buscar as crianças da comunidade Pau da Letra até a escola Santo Inácio de Loyola, na sede da Vila, de segunda a sexta-feira, sempre a bordo do barco “Amigo II”.

o barqueiro preza muito pela segurança dos pequenos passageiros e sabe que os estudantes precisam chegar no horário para as aulas e em perfeitas condições, sem qualquer sinal de água nos uniformes. Mas, com a seca que assola os rios da Amazônia, percorrer a distância entre a comunidade e a escola pelas águas do Rio Tapajós se tornou cada vez mais difícil.

No fim de setembro, Lucenildo se deparou com um grande obstáculo: o barco não conseguiu atracar no porto da Vila de Boim e ele teve que parar em um ponto do trajeto e concluir o transporte escolar de uma maneira inusitada: Ele carregou nos ombros as 13 crianças que transportava e levou cada aluno até a terra firme; um de cada vez, enfrentando água e lama em um percurso de idas e vindas que durou cerca de 40 minutos apenas para o embarque. 

Ano passado, eu tive a mesma dificuldade e nesse período eu fiquei sem trabalhar. Este ano, tive a ideia de gravar um vídeo para postar na internet e mostrar a nossa realidade. Era semana de provas das crianças e eu me comprometi em tentar levá-las, mesmo com a seca. Logo na segunda-feira, encontrei essa situação e tive que carregar cada uma no colo”.

A situação foi registrada pelo barqueiro, que postou nas redes sociais o que estava acontecendo para mostrar as dificuldades que as comunidades ribeirinhas enfrentam com a seca.

“Eu assino um termo de responsabilidade, garantindo que as crianças não vão chegar molhadas na escola. E por isso, fiz esse processo. Naquele momento de sair do barquinho, alguns ficaram com medo, de cair, que eu soltasse. Mas eu dizia: ‘confia em mim, não vou te deixar cair na lama’”, contou o condutor.

Em casa até que o rio suba

A saga de idas de vindas de Lucenildo Lameira se repetiu por dois dias. Foi quando nem mesmo os ombros dele poderiam garantir que as crianças chegassem na escola. O rio estava baixo demais para navegar. A escola então decidiu que os alunos de Pau da Letra deveriam continuar os estudos em casa, até que a situação da seca melhore e Lucenildo foi o escolhido para buscar os conteúdos e atividades na escola e entregar para cada estudante.

“No segundo dia, foi mais difícil ainda. Depois, as crianças tiveram que ir por terra até a escola. E agora, eu vou levar o trabalho escolar e as matérias para cada criança que eu transporto, direto na residência delas; e, depois, levar de volta para a escola”

Ele que é natural da comunidade de Pau da Letra, teve de sair da região de Boim para continuar os estudos no estado vizinho: o Amazonas. Ao voltar para casa, assumiu o compromisso de ajudar as crianças da comunidade a estudar, por isso, sabe dos desafios e da importância de chegar à escola. Apesar do esforço, Lucenildo acredita que manter os trajetos é bom para as crianças e para ele. 

Vou de bicicleta. Eu aceitei até porque era complicado eu ficar desempregado neste período. A gente vai se ajudando, tudo o que eu faço é justamente para ajudar os alunos. E acho que eles também gostam de mim, talvez seja porque sou pequeno também, tenho 1,50 (risos). E a gente tem que cuidar das crianças, elas são o nosso futuro”

Agora a conversão das aulas presenciais para o modelo remoto, em casa, é uma preocupação a menos para os estudantes e suas famílias. É o caso da Tânia Oliveira, mãe das pequenas irmãs, Natasha Rafaela e Natália Isabela. Com apenas 10 e 6 anos, as moradoras da comunidade Pau da Letra já foram para a escola nos ombros do Lucenildo e, agora, vão acompanhar os estudos de casa, onde devem receber a visita dos professores. 

Tânia lamenta que as filhas Natasha e Natália precisem estudar em casa devido a seca no Oeste do Pará. Foto: Arquivo Pessoal/Lucenildo Lameira

Tânia lamenta que as filhas Natasha e Natália precisem estudar em casa devido a seca no Oeste do Pará. Foto: Arquivo Pessoal/Lucenildo Lameira

“Nós ficamos muito preocupados, né? Principalmente eu enquanto mãe, mas ao mesmo tempo fiquei feliz de ele fazer isso para que elas não perdessem as provas. A minha filha, que faz o quinto ano, tinha avaliação do terceiro bimestre. Foi muito gratificante o que ele fez pelas minhas filhas. Agora, elas vão ficar nas aulas remotas, com o rapaz do transporte trazendo e levando os deveres e os professores vindo aqui na comunidade uma vez por semana.

Ir para a escola é apenas um dos problemas que afligem a comunidade onde até água potável se tornou um item raro.

Os prejuízos têm sido muitos para nós, moradores da área ribeirinha. Estamos sem acesso a nada, ninguém estava preparado para isso. Aqui na minha casa, o meu poço artesiano secou. É uma dificuldade muito grande. Nós e mais quatro famílias estamos usando a água do poço do Lucenildo. E as crianças ficaram muito tristes [por não poder ir à escola]. A minha filha queria muito estar nas aulas presenciais, mas eu tenho conversado com ela, explicando que temos que improvisar e nos adaptar a essa nova situação”

Entrada da Vila onde fica a escola Santo Inácio de Loyola, no Distrito de Boim, em Santarém. Foto: Arquivo Pessoal/Lucenildo Lameira

Entrada da Vila onde fica a escola Santo Inácio de Loyola, no Distrito de Boim, em Santarém. Foto: Arquivo Pessoal/Lucenildo Lameira

Seca no Rio Tapajós

O distrito de Boim fica localizado na margem esquerda do Rio Tapajós e faz parte da Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns. Ele é formado por 10 comunidades: Jauarituba, Jatequara, São Tomé, Pau da Letra, Nossa Senhora do Rosário, Tucumatuba, Nuquini, Nova Vista e Samaúma. O gesto de Lucenildo escancarou as dificuldades enfrentadas pelos moradores das comunidades ribeirinhas de Santarém, durante a estiagem deste ano, que já alcançou recordes históricos.

No fim do mês de setembro, a Defesa Civil do município emitiu um alerta por conta do baixo nível do Rio Tapajós, que já marcava 6,26 metros, 90 centímetros a menos do que no mesmo período do ano passado. Também em setembro, a Prefeitura de Santarém decretou situação de emergência nas zonas urbana, rural e ribeirinha, por conta da seca.

Exemplo seguido por outros municípios do Oeste do Pará como Juruti, Prainha, Óbidos e Oriximiná. A estimativa é de que pelo menos 8 mil famílias estejam sofrendo diretamente as consequências da estiagem na região Oeste do Pará.

No dia 2 de outubro, o nível do Rio Tapajós ficou em 30 cm, índice pior do que os 1,4 metro, registrado em 2010, até então, o mais grave marcador. O medidor instalado pela Agência Nacional das Águas (ANA) no porto da Companhia Docas do Pará (CDP), mostra que as águas recuaram em média 34 centímetros a cada 24 horas nos cinco dias anteriores a essa medição.

Os dados levaram o Governo Federal a reconhecer a “situação crítica de escassez quantitativa de recursos hídricos para a bacia hidrográfica do rio Tapajós” no trecho entre as cidades de Oriximiná e Santarém até o dia 30 de novembro de 2024. É a primeira vez que a ANA aponta a escassez neste importante rio da Amazônia. E a previsão é que o nível mais crítico ainda esteja pela frente e seja alcançado entre os meses de outubro e novembro deste ano.

Esta é a terceira região hídrica da Amazônia cuja escassez é reconhecida pela Agência Nacional das Águas nos últimos meses. A situação do rio Madeira, entre os estados de Rondônia e Amazonas; e do rio Purus e seus afluentes, no Amazonas, já são acompanhadas pela ANA desde julho de 2024. Além disso, os baixos níveis do rio Amazonas e no Alto Solimões também chamam a atenção das autoridades.

Texto: Gustavo Campos
Revisão e edição: Glauce Monteiro
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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