Uma peça em pequenos atos
Sandra Godinho relata a desocupação de uma área de preservação permanente
Foto: Ana Ulin/Flickr
Ato 1 – palco
Sangue
Faca
Cartucho de bala
Barracas de lona
Panelas
Roupas
Fogão de duas bocas
Chupeta
Mamadeira
Mijo
Merda
A chuva lavou todo o sangue derramado. Não o seco, aquele já entranhado na terra, aquele que as moscas cobriam e o sol, sem voz ou aptidão, era incapaz de repelir. Ouvido alheio, sabe como é, sempre dado a maldizeres: alguém escutou que o campo era lugar de despacho enquanto outros diziam ser um lugar de desova, que nada mais era senão um despacho mal disfarçado. Dava tudo no mesmo, o descaso. Autoridade não ouvia nem sabia. Ou melhor, fazia que não sabia, porque tinha coisa mais importante a resolver: as urgências do empresário e do colega senador. Autoridade constrói lei. E santos. Alguns hoje foram para o céu. Mortos inocentes. Alguém deixou a vela queimando no solo em sinal de despeito. No ar, além das moscas, pairava o cheiro de álcool barato e da pólvora. Meu estômago embrulha só de lembrar a vergonha, a vontade de expulsar os sem-teto. Semana passada, parei um instante para conversar com eles, só para conseguir completar a papelada, mas fui avisada para não voltar.
Ato 2 – personagens
Loreta – a mais nova
Marcela – a mais velha
Joselina – a mãe
Josimar – o pai
O rosto da mais novinha ficou grudado no meu pensamento: chupeta na boca, choro no bico, desconsolo no beiço. Não resisti, então voltei, para amansar o pranto dela com pirulito. A outra veio em seguida, a maiorzinha de perna malfeita, magra feito varapau, trazendo a boneca mal ajambrada no braço, meio sorrindo ao ver o pirulito na minha mão. Consolo que é bom não pude dar. Eu também desconsolada de tanta miséria, sem poder dar calor mesmo com o tempo quente. Manaus ferve em dia de matança. A mãe veio em seguida, preocupada. Não com as filhas, mas com as ameaças. Autoridade é coisa séria. De matar ou morrer. Estava atrasada para pegar o ônibus. Não achava o pai para cuidar das meninas enquanto ia trabalhar na casa da madame. Decerto ia pegar esporro da patroa. Decerto ia pegar as contas. Madame não tem tempo de ouvir lamento. Tempo perdido. O pai é daqueles que chutam o pau da barraca, já nem se importa, indiferente. Só quer conversa fiada, cana e cerveja, que é para espantar as moscas que a poeira esconde, crente que algum incentivo um dia vem, mesmo que leve desaforo para casa, mesmo que haja desgoverno e ele possa ter uma casa. Casa é modo de dizer. Casa é o sonho que, com sorte, um dia vai construir quando a invasão deixar de ser invasão. Quando a autoridade der título de posse. Passe. Livre.
Ato 3 – plateia
Dono-do-bar
Fregueses
Putas
Porcos
Policiais
Repórteres
Jornalistas
O tranco das coisas tristes afoga as lembranças que teimam em voltar à mente. Eu, uma assistente social que ainda permite sensibilidades no rosto de fantasma que sopra segredos. Tudo aconteceu muito rápido. A autoridade disse que Josimar era o
chefe dos invasores da área de preservação permanente. O traficante disse que Josimar era a cara de um desafeto dele, inimigo esconjurado. Mesmo sendo um caboclo arranjando as armações e os piquetes utilizados para a demarcação dos lotes. Sentenciado por um lado e por outro, condenado por um lado e por outro. Balas de dois calibres lhe encontraram o peito, equilibrando a balança que nunca se equilibrava. Morreu com seis tiros enquanto erguia os barracos de madeira na área desmatada, enquanto a mulher estava fora, na casa da madame, e as meninas eram vigiadas pelo vizinho que já lhes esticava o olho. Ele também desmatado de tanto despudor. Quando a mulher chegou e lhe contaram sobre o acontecido, achou melhor enterrar o corpo no cemitério que já era clandestino. A menina mais nova, que trazia o pirulito para adoçar a boca dos amargos, nada entendeu. E a mais velha lançava olhos ao horizonte, pensando no que foi prometido pelo vizinho, o presente que ela nem sabia que estava prestes a ganhar.
Ato 4 – Final
A mulher sumiu com os poucos pertences, todos revirados por policiais militares, os seguranças da área. A barraca violada, o marido violado, a filha violada. E tudo some de vista para se repetir em outro canto, em outro tempo que nunca é o mesmo
dos que têm urgências. A cortina se fecha. A plateia aplaude de pé. Mas a cena da vida real continua longe de olhos que nada veem.
Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com “Orelha lavada, infância roubada” (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com “Verso do reverso” (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance “Tocaia do Norte” (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, “A morte é a promessa de algum fim”, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Seu mais recente romance é “Estranha entre nós”, publicado em 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, “Memórias de uma mulher morta” (inédito) e “A Secura dos ossos”.
Produção: Isabella Galante
Revisão: Filipe Andretta
Direção: Marcos Colón