A etnoeducação como perspectiva e prática para a valorização dos conhecimentos tradicionais

O presente ensaio tem por fim relatar a experiência de um programa de extensão desenvolvido por professores e estudantes de vários cursos da Uff em Oriximiná-PA com o objetivo principal de fornecer formação continuada de professores no âmbito da educação patrimonial e a valorização dos saberes e das práticas locais, presentes nas relações intra e extraescolares, baseado na Etnoeducação como perspectiva epistemológica e metodológica de trabalho. 

Pretendemos refletir sobre como a abordagem e as ações do programa confluíram com expectativas e demandas de algumas comunidades indígenas e fortaleceram processos de visibilidade e afirmação identitárias que estão em curso nessas populações. Para delimitar o escopo da pesquisa,nos focaremos na experiência desenvolvida na comunidade Tawanã, localizada à margem direita do Rio Mapuera, na qual habita população majoritariamente Wai Wai, mas também outras etnias como Katuena, Mawayana, Wapixana, Xerew, Tikyana e Muura.

O que entendemos por etnoeducação

Inicialmente, é importante considerar que a concepção de etnoeducação elaborada pelos integrantes do Programa de Extensão Educação Patrimonial em Oriximiná, diferente de outras acepções do vocábulo, não está atrelada ao conceito de etnia, mas relacionada ao modo de pensar e fazer da etnografia. Em outras palavras, não é o fato de a etnoeducação se desenvolver com grupos étnicos distintos o que incorpora o termo “etno” à educação, mas o modo etnográfico, experimentado pela antropologia, de fazer pesquisa e intervenção.

Este fazer procura articular a etnografia sobre os saberes locais como elemento deflagrador de processos educativos. Para tanto, o programa tem atuado em diversas escolas indígenas, quilombolas, ribeirinhas e urbanas do município e apoiado a execução de projetos com base em temáticas relevantes para cada comunidade. A partir da inspiração da prática etnográfica, realizamos, junto com os professores e alunos das escolas, pesquisas, entrevistas, fotos, vídeos, etc., sobre saberes e fazeres tradicionais.  

Ademais de uma metodologia de pesquisa, a etnografia desempenha, na etnoeducação, um papel fundamental, uma vez que esta estratégia implica a entrega, a observação ativa e a participação atenta. Dessa forma, a etnografia constitui sobre a etnoeducação um pilar, um princípio norteador, conforme infere-se do excerto infra escrito por dois integrantes do programa:

“Tomamos como eixo de inspiração o método etnográfico, que lança o etnógrafo na aventura do campo, participando e habitando os territórios da pesquisa (ALVAREZ; PASSOS, 2009). Propomos, assim, a formação de etnoeducadores (professores/ pesquisadores/ extensionistas) que também vão desenvolver a aventura de ensinar-aprender habitando seus territórios existenciais. O etnoeducador se insere de modo crítico no processo de ensinar-aprender. O programa busca aliar ensino-pesquisa-extensão numa prática comum, sem homogeneizar, aliando estas três dimensões num mesmo processo de aprender e ensinar”.(RUSSI; ALVAREZ, 2016).

O conceito de etnoeducação implica uma abordagem observacional-participativa na pesquisa intervenção e no processo educativo. E, ainda, a entrega às experiências locais, a valorização do território em questão e a percepção desse trabalho como construção conjunta, em que aparecem muitas vozes. Outro elemento importante consiste no processo de ensino aprendizagem que, segundo a perspectiva da etnoeducação, aparece como oriundo de duas práticas indissociáveis, à medida que interdependentes: aprende-se ao ensinar, ensina-se ao aprender.

De igual maneira, as relações entre saber e fazer, bem como entre teoria e prática percebem-se complementares e associadas, fugindo à frequente dicotomia das mesmas. Nesse sentido, o programa realiza trabalhos apoiados “nos modos e fazeres coletivos e heterogêneos, em que teoria e prática, saber e fazer não se separam, mas se conjugam numa co-emergência comum e plural”.

A educação é, assim, concebida como um processo de construção coletiva e horizontal, em que tanto professor quanto estudante, e tanto pesquisador quanto informante, são personagens com protagonismo na gestação do conhecimento. É importante ressaltar ainda que desde o enfoque proposto pela etnoeducação, os modos de pensar a vida, a escola e o território dos povos tradicionais implicados são, necessariamente, respeitados em suas particularidades. Na pesquisa intervenção partimos da construção de um problema forjado por meio da análise coletiva de situações reais e concretas, que, no nosso caso em especial, envolvem relações entre educação, cultura, tradição, memória e alteridade. 

Sobre o Programa de Extensão Educação Patrimonial em Oriximiná/PA

Os projetos de etnoeducação da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Oriximiná-PA, buscam desconstruir a rigidez na hierarquia de ensino. Foto: Johnny Alavarez/ UFF.

O Programa Educação Patrimonial em Oriximiná é uma ação extensionista que se desenvolve, desde 2008, na UFF e envolve três campi desta universidade: Rio das Ostras, onde se iniciou a proposta, Niterói e Macaé. A principal atuação, contudo, desdobra-se em Oriximiná, município paraense. Ali, desde 1973, funciona a Unidade Avançada José Veríssimo, implementada e mantida há décadas pela UFF, a fim de fomentar o ensino, a pesquisa e a extensão numa parceria com a região. 

Em 2008, o programa foi concebido para desenvolver ações na área da preservação do patrimônio cultural brasileiro. Voltamo-nos, sobretudo, a projetos de formação continuada de educadores e gestores da rede pública municipal. Desde então, temos nos aproximado cada vez mais das múltiplas e distintas culturas que compõem a realidade sociocultural oriximinaense. Colocamo-nos como aprendizes/pesquisadores, inspirados nas experiências etnográficas das comunidades ribeirinhas, quilombolas, diferentes povos indígenas, moradores da zona rural de terra firme ou de moradores da zona urbana.

A primeira etapa do programa foi iniciada com a realização de um inventário. Posteriormente, a continuidade da relação com as comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas oportunizou o desenvolvimento de projetos acerca do patrimônio cultural local e a formação de professores (atuantes nessas comunidades) em educação patrimonial. A partir de então, o programa fomentou a realização de projetos em etnoeducação em diversas escolas oriximinaenses. A partir de 2015, atendendo a uma demanda local, planejamos e encontramos meios para implementar, em Oriximiná, um Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Etnoeducação, oferecido a professores da região.

A experiência na comunidade indígena de Tawanã

A vivência na aldeia, esmiuçada aqui, foi realizada no mês de maio e no mês de setembro de 2015, sendo que alguns dos integrantes do programa acompanharam a fase inicial da instalação de um projeto de pesquisa intervenção nessa comunidade e, outros, o desenvolvimento e finalização do mesmo. Vale ressaltar que o nosso trabalho de campo correspondia ao acompanhamento dos projetos e ao suporte para os professores das escolas das comunidades, a fim de auxiliar no reporte do processo de ensino aprendizagem e na elaboração do relatório final sobre os projetos de etnoeducação e seus desdobramentos. 

A experiência evidencia-nos o protagonismo dos sujeitos implicados e a valorização do saber local e do patrimônio cultural da comunidade. Ainda, o elemento da inter, trans e multidisciplinaridade aparece quando disciplinas escolares como língua portuguesa e língua indígena, matemática, história, ciências passam a abarcar os desdobramentos do projeto como subsídio para o ensino aprendizagem.

O projeto permitiu a saída da sala de aula, oportunizando que os estudantes pudessem aprender através da experiência e do envolvimento ativo e participativo. A aproximação entre família, comunidade e escola a partir da projeção dos estudantes para além das fronteiras da escola, pesquisando junto aos seus velhos, chegando, inclusive, a cativar a comunidade para participar conjuntamente do processo de pesquisa intervenção. Tudo isso são desdobramentos da etnoeducação que potencializam o processo educativo. Fortifica-se a relação de reciprocidade entre escola e aldeia, porque tanto a educação vai dar respostas à comunidade quanto a comunidade vai dar respostas à educação.

Foto: UFF.

No caso da comunidade de Tawanã, as moças, estudantes da escola localizada na aldeia, escolheram desenvolver um projeto voltado para a elaboração de saia de morototó. Elas aprenderam todo o processo: onde coletar a semente de morototó, como prepará-la para formar a miçanga, como tingir, como tecer as miçangas até ir formando a saia e os grafismos inscritos nelas. A pesquisa intervenção do projeto incentivou que as meninas aprendessem isso com as mulheres da sua família, que também estavam lá na escola para contar sobre a sua experiência junto às crianças: como elas as ensinaram, como as meninas aprenderam e qual a importância desse conhecimento enquanto patrimônio cultural. Vale dizer que a carcaça dura do morototó atribui-lhe a capacidade de emitir um som semelhante ao chocalho. Talvez por isso a saia faça parte de diversos rituais e festas da cultura do povo Wai Wai da Tawanã. Chegando, inclusive, nas últimas décadas, a fazer parte das danças na igreja da aldeia.

Uma reflexão oportuna pode ser traçada sobre a valorização do saber local nos processos de ensino aprendizagem, o que resulta na aproximação entre escola e comunidade. Ao estimular que as crianças, no âmbito da educação escolar, pesquisem sobre seu patrimônio cultural junto aos anciãos e anciãs da aldeia, o modo de aprender dos povos indígenas resulta valorizado. Isto porque, ao longo dos séculos, a transmissão dos seus conhecimentos entre gerações se dá por meio do ensinamento dos anciãos aos mais novos sobre seus costumes, mitos, artesanatos e toda ordem de patrimônio cultural, material ou imaterial.

Além disso, percebe-se que a abordagem de conteúdos que correspondem ao saber local encurta as distâncias entre a escola e a comunidade. Os aprendizados não são academicistas e descolados da vida na aldeia. Ao contrário, a educação que abarca os saberes locais como parte de seu conteúdo de ensino aprendizagem, além de “falar a mesma língua dos estudantes da aldeia”, propõe um modelo de formação que também se ocupa com o presente, porque se faz atento ao entorno. Seus desdobramentos potencializam a realização da etnoeducação como a formação integral do ser, porque considera e respeita o meio em que os estudantes vivem. O educando é formado para atuar na sua comunidade e ter consciência de sua realidade.

Além de acompanhar o projeto das estudantes, também acompanhamos o projeto dos meninos da escola, que tinham escolhido como tema de pesquisa intervenção a construção de casas tradicionais, o que representa para os Wai Wai um saber fazer valorizado. Eles aprenderam a construí-las com os homens da aldeia. Então, em seu processo de aprendizagem, os rapazes foram mata adentro procurar a folha de árvore apropriada para fazer a palha que cobre o teto. Doutra vez, retornaram para extrair os troncos robustos e pesados da madeira que sustenta a casa. Eles carregaram o peso e executaram o trabalho praticamente sozinhos. Mesmo os meninos mais novos e franzinos participavam ativamente. Aprenderam, ainda, a fazer o trançado com as folhas para formar o telhado da casa.

Quando visitamos a aldeia, os meninos nos apresentaram uma casa inteiramente pronta, tamanho foi o êxito de seu projeto, e que já estava até ocupada por uma família. Ainda assim, desejando finalizar a pesquisa intervenção com a certeza de que haviam aprendido o necessário, eles solicitaram aos professores que pudessem construir uma segunda casa. Dessa vez, inteiramente sozinhos. Isso porque eles desejavam estar convictos de que poderiam construir suas próprias casas quando se casassem – os rapazes que já se aproximavam dessa etapa expressaram diretamente tal desejo aos professores. Vimos as duas casas: a concluída e a em construção, ambas muito bem construídas. Sendo cumprido, assim, o principal objetivo desse processo de ensino aprendizagem.

Foto: UFF.

Nos dois projetos, feminino e masculino, o saber local subsidiou as práticas desenvolvidas. As crianças produziram textos sobre suas experiências em língua portuguesa e em Wai Wai (sua língua materna), trabalharam geometria e operações matemáticas na contagem das miçangas da saia e nas medidas e alinhamento da casa, por exemplo. Além de auxiliarem em estudos de geografia, história, ciências etc. Podemos observar que a escola atuou para/com a comunidade e a comunidade atuou reciprocamente para/com a escola. Eis o modo deles de atuar na educação e de fazer etnoeducação.

Chegado o final do nosso campo, nós nos despedimos de todos, mas a despedida das crianças foi a parte mais difícil. Chorávamos. Elas também, porque estabelecemos um laço de afeto. O processo de educação pautado na brincadeira, na felicidade, na reciprocidade, na circularidade, na escuta e no respeito é, por essência, um processo de etnoeducação. Um processo que funda relações humanas carregadas de afeto, que cada um carrega consigo.

Considerações finais

A partir da análise das práticas da etnoeducação, identifica-se a propositura de uma pedagogia que prioriza os processos próprios de aprendizagem, à medida que valoriza os patrimônios culturais, saberes locais e tem como eixo metodológico a etnografia nos projetos de pesquisa intervenção. À medida que logra abraçar a interculturalidade e a transdisciplinaridade, porque entende a educação como um caleidoscópio de possibilidades e curiosidades a serem manuseadas. Porque se reconhece comunitária não apenas por situar-se em espaços comunitários, mas porque preza pela proximidade e reciprocidade com as famílias e toda a comunidade. Porque exercita a escuta atenta e a construção coletiva em uma parceria da escola com a comunidade. Porque incentiva que os mais novos aprendam com os mais velhos e porque respeita o território e suas gentes e os valores de suas gentes. Uma educação que é, por essência, diferenciada e específica porque se faz com e para quem pertence aos processos educativos.

Todas as facetas da etnoeducação, por todos os seus desenlaces, permitem alcançar uma vivência educacional mais autônoma, crítica, humanizada e feliz, como observado na narrativa acerca da aldeia Tawanã. Por sua notabilidade em promover a formação integral do ser. Por sua habilidade em adequar-se às especificidades dos meios em que se desenvolve, em decorrência de sua metodologia e princípios, preenchendo as lacunas deixadas pela educação regular. E porque ela logra, por tudo isso, cumprir parte significativa da legislação que dá bojo ao direito à educação, aduz-se que a etnoeducação realiza ação educadora eminentemente comprometida com a formação mais plena dos sujeitos.

Com efeito, a etnoeducação se erige, quanto a seus contornos, caminhos, objetivos e repercussões, como uma alternativa pedagógica ante o sistema vigente. Alcançando, sobretudo, a potencialização do direito à educação enquanto garantia fundamental, uma vez que pratica um modelo de educação que implica, consequentemente, que as potências transformadoras imanentes ao direito humano à educação ganhem corpo nos sujeitos de aprendizagem.

É oportuno assentar ainda que não se vislumbra na etnoeducação um ideal romântico de mecanismo educativo escalado para solucionar a questão da educação global. Distintamente, a etnoeducação é concebida como um caminho criativo irmanado com as demais iniciativas pedagógicas alternativas, que se realizam buscando seus próprios percursos para chegar ao outro lado da margem, em cujo rio flui a formação humana.

Imagem em destaque – Projeto de Educação Patrimonial na aldeia Tawanã, em Oriximiná-PA, concilia o ensino de disciplinas curriculares ao mesmo tempo em que promove o fortalecimento da identidade tradicional dos Wai Wai através de oficinas onde os jovens aprendem artesanato, construção e agricultura com os membros mais antigos da aldeia. Foto: UFF.
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