Ontologia e crítica ao ecologismo na Amazônia

Os direitos do ser natural e do ser social em sete notas filosóficas

Nas sete notas filosóficas a seguir delineadas tomo a tradição ontodialética do pensamento como matriz de inteligibilidade para uma objetivação crítica do conceito de sustentabilidade e de sua contraface, o ecologismo. Mais do que operador de definição, o conceito é síntese de significados, cuja objetivação demanda transgredir o campo do aparente e do empirismo imediato, o que só é possível quando a razão procede pelo caminho (método) ontológico (do fundamento) e dialético (da contradição) do pensar.  Estas notas, para além da crítica (aderência destrutiva ao objeto), postulam uma objetivação da sustentabilidade nos marcos da práxis ontodialética.  

 Sob a cobertura teórica do conceito de sustentabilidade a Amazônia hoje, em seu ser natural e social, para além de ser pensada ou reduzida a formas prevalentes de esquadrinhamento definido pela razão instrumental, tem sido permanentemente agredida pela ação predatória patrocinada pelos padrões insustentáveis de produção e consumo do sociometabolismo do capital. Já na década de 1930, José Ortega y Gasset, pensador espanhol insuspeito de adesão às teses do materialismo histórico e dialético, percebia que a técnica contemporânea não é outra senão resultado da cópula perfeita entre ciência experimental e capitalismo.

Na década de 1930, José Ortega y Gasset, pensador espanhol insuspeito de adesão às teses do materialismo histórico e dialético, percebia que a técnica contemporânea não é outra senão resultado da cópula perfeita entre ciência experimental e capitalismo.

1 – Do modelo insurgente e da crítica filosófico-epistêmica ao ecocapitalismo dito sustentável

Hoje como ontem, a Amazônia continua refém da epistemologia do parcelamento. Vária e numerosa produção intelectual, mesmo aquelas codificadas sob a égide da sustentabilidade, continuam a reproduzir o paradigma da razão instrumental. Multidiversa e complexa em sua constituição biótica e antrópica, a Amazônia em seu devir não se deixa apreender pelo empirismo metodológico que imagina transpor e reduzir seu mundo a modelos e representações de corte predominantemente quantitativo. Quando pensada pelo referencial ontodialético da práxis, tem-se a medida do quanto falta de Amazônia na vasta construção disciplinar que se fez e ainda se faz sobre seu mundo natural e social. O trabalho crítico reside no trabalhar o descompasso epistêmico entre a Amazônia construída e parcelada pela visibilidade disciplinar e a Amazônia invisível e real que permanece refratária a esse modelo de inteligibilidade. 

Nessa quadra da civilização do capital, a Amazônia se coloca no centro de uma necessária e inadiável virada ecológico-epistêmica e a demandar uma práxis  anticapitalista. Na raiz dessa virada (revolução) cognitiva está em curso o devir de um modelo insurgente que aponta em simultâneo para a superação da tradicional dicotomia sujeito-objeto e para a ressignificação epistêmica do par natureza-cultura. Para esse paradigma insurgente, antidicotômico, de gênese ambiental e incomensurável ao modelo intenso e extenso patrocinado pela mão invisível do ecocapitalismo – cujos benefícios estão longe de redimir “os crimes de seu punho visível”, como observou Daniel Bensaïd em Os Irredutíveis (2008) – , a Amazônia reponta no século XXI sob o estatuto de sujeito epistêmico e – para recorrer à oportuna representação kantiana – prenuncia os indícios de uma terceira revolução copernicana, sob itinerário ao mesmo tempo dialético e devedor a Hegel e Marx, ambos agora reconciliados pelo paradigma de uma ontologia ambiental. Do confronto dialético da primeira revolução copernicana com a segunda formulada por Kant, nasce a terceira, na qual a Amazônia se constitui e se afirma sob o estatuto ontológico de um novo sujeito epistêmico.

2 – Do vício epistemológico da modernidade e da necessária equidade cognitiva

O mundo da representação não é unívoco porque unívoca não é a razão que constrói as representações. O velho Aristóteles já percebera a saída para a antinomia epistêmico-representativa ao intuir que o ser pode ser dito de modo diverso. Sem a crítica, sempre necessária, “a idéia de representação, recorrendo aqui a Paul Ricoeur, corre então o risco de significar demais”,  segundo observação de Alain François. E o excesso de significação pode também jogar mais sombra que luz sobre o que se pretende significar.  É esse o vício epistemológico da modernidade: a vontade de significação (que não está distante da vontade de verdade nietzscheana) quase sempre nos leva – como sujeitos epistêmicos que somos e sempre assim nos vemos – a sacrificar o objeto para que reine o sujeito.

As questões epistemológicas são igualmente questões de justiça, porque nelas está em jogo a equidade cognitiva entre o espaço-tempo do sujeito e o espaço-tempo do objeto. E se recorro novamente a Ricoeur quando nos diz que “é no caminho da crítica histórica que a memória encontra o sentido da justiça”, é porque acredito que o mesmo procedimento vale para a ordem da representação. Repensar a Amazônia sob o referencial ontodialético de um novo sujeito epistêmico implica a reparação na esfera epistemológica da injustiça tributária do prevalente e reducionista modelo de objetividade sob o qual durante séculos o seu devir natural e social foi pensado, invisibilizado e negado. Esse projeto foi e tem sido a expressão epistemológica do crime cometido contra a Amazônia, ferindo seu corpo e sua alma.

3 – Da ontodialética do devir natural e social da Amazônia e do caráter predatório da epistemologia mercantil

O dilema pelo qual o ensino indígena passa é manter um equilíbrio entre o modelo de educação ocidental e a manutenção da tradição. Foto: divulgação.

Por demandar novas formas de representação, a Amazônia também se apresenta como espaço-tempo de desconstrução epistêmica, de mutirão aletheico, em que o saber indígena e caboclo possa empreender a travessia cognitiva da condição de objeto à condição de sujeito, romper o silêncio programado que se abateu sobre seu modo de ser e de pensar e afirmar pela via de outra episteme, ontodialética, transversal e plural, sua existência multidiversa e tecida na identidade e na diferença de seu pensar, falar e agir. A razão instrumental ao universalizar para o mundo da Amazônia seu modelo uniforme, ainda que sob o simulacro da sustentabilidade, acometeu a razão de miopia cognitiva. A riqueza frágil da Amazônia quase nada pode diante da voracidade mercantil, legitimada e alimentada pelo caráter destrutivo da razão instrumental. Séculos de predação colonial ontem e neoliberal hoje nos indicam há muito que sozinha a Amazônia não poderá se defender.

A despeito da barbárie em curso, vale dizer que a Amazônia em sua complexidade natural e social ainda se constitui no último grandioso livro da natureza não de todo decifrado pela cultura. Muito de seu vasto mundo permanece ininteligível ao saber ocidental moderno. E esse não é um desafio menor para uma ontologia ambiental. O otimismo galileano, que concebia a natureza como livro escrito em  caracteres matemáticos, que só poderia ser decodificado pela linguagem quantitativo-matemática, estava por demais seguro e cioso da certeza de seu projeto para perceber ou ao menos desconfiar que nele se ocultava um danoso ponto cego, cujas conseqüências Herbert Marcuse indica em A ideologia da sociedade industrial (1979): “o ponto que estou tentando mostrar é que a ciência, em virtude de seu próprio método (grifo do autor), e de seus conceitos, projetou e promoveu um universo no qual a dominação da natureza permaneceu ligada à dominação do homem – uma ligação que tende a ser fatal para esse universo em seu todo”.

Para a práxis do saber originário da Amazônia, ainda não subjetivada pelo modo individualista da posse, as necessidades sociais prevalecem sobre o que Habermas denomina de necessidades privadas. Para essa práxis a vida e o saber se definem por seu caráter coletivo e resistente ao processo de privatização das necessidades humanas. Enfrentar esse desafio não exige apenas a construção de uma ontologia ambiental, amazônica, sobretudo se em sua matriz constitutiva não prevalecer o diálogo simbiótico e epistêmico entre a ontologia dos saberes originários da Hiléia e a tradição tecnocientífica ocidental. Não basta pensar, por exemplo, modelos de educação escolar indígena se o projeto pedagógico continua a ser mais escolar que indígena. Essa é a marca do discurso fácil da sustentabilidade, que sempre redunda no ecologismo.

4 – Da resistência do saber da Amazônia à barbárie instrumental do capitalismo sempre mais globalizado que civilizado

Devir aparentemente estático, epílogo a fazer-se para levar o Gênese a seu termo, imutabilidade em continua metamorfose, a Amazônia é um espaço-tempo que igualmente se mostra e se refrata ao reducionismo epistemológico da matriz analítico-instrumental da ciência ocidental. Aceder a seu mundo, extensivo e multidiverso, verde e aquático, natural e humano, mítico e teândrico, implica a exigência epistêmica e pedagógica  de ultrapassar os limites das mediações analítico-instrumentais da ciência moderna por meio do reconhecimento e incorporação do saber perceptivo da e sobre a Amazônia, porque nessa forma de saber, mais que objeto epistêmico exterior e redutível à objetividade requerida pela ciência, a Amazônia é um mundo vivente de múltiplos sujeitos em interação física, biótica e antrópica, no qual homem e natureza constituem a unidade viva do diverso.

Nesse laboratório vivo e complexo, igualmente natural, humano e sobrenatural, se desvelam e se ocultam, se criam, morrem e renascem, se conformam e se tecem formas de vida e de sociabilidade que sustentam saberes e práticas milenares, cuja base ontológica vária e rica complexidade étnica construíram formas autônomas de vida social numa relação homem-natureza inteiramente diversa da matriz ocidental cristã.  Não é demais reconhecer que na Amazônia, assim como na Grécia Antiga e heraclítica, também habita o lógos, que tanto quanto o da Hélade pode nos ensinar. É necessário romper o silêncio e a invisibilidade que pesam sobre o lógos da Amazônia.

5 – Do monismo epistemológico à afirmação da gênese ecológico-sapiencial do saber da Amazônia 

Nessa cosmovisão perceptiva mais que milenar e constituída sob gênese ecológica e sapiencial, não há lugar para a dicotomia sujeito-objeto, que de resto funda e condiciona todos os desdobramentos da episteme ocidental moderna. Hoje, mais que ontem, impõe-se reparar a injustiça do monismo epistemológico, incapaz de reconhecer que o mundo, tanto quanto o mundo da Amazõnia, é sempre o lugar do diverso. 

Como indica Boaventura de Sousa Santos em A Gramática do Tempo, “o reconhecimento da diversidade epistemológica do mundo sugere que a diversidade é também cultural e, em última instância, ontológica, traduzindo-se em múltiplas concepções de ser e estar no mundo”. Por isso, e a despeito da recorrente investida etnocêntrica, do regime de invisibilidade e de desautorização cognitivas a que têm sido submetidos os saberes da Amazônia, vale ressaltar que sua vitalidade e capilaridade resistem, renascem e ainda recobrem territórios e mentes dessa vastidão verde-aquática, ribeirinha e citadina.

6 – Do lógos da hiléia e de sua incomensurabilidade epistêmica à miopia dos “funcionários da ciência” 

O cientista deve questionar o propósito de sua ciência para que não seja um assessório destinado a servir o mercado. Foto: divulgação.

A complexidade do devir natural e cultural da Amazônia desde que converteu-se em objeto da moderna episteme está a demandar novos paradigmas de leitura e de intervenção “sob pena de permanecer ideologicamente enredado e refém das leituras, e pior, das ações (e não são poucas) que só a tomam como objeto mercadologicamente constituído, sempre em detrimento dos homens e da terra”, segundo mençao à Marx na obra de Habermas Jürgen, intitulada Técnica e Ciência enquanto ideologia. Nada se nos dá gratuitamente no processo do conhecimento. Não há epistemologia fundada na apreensão imediata das coisas. “Toda ciência seria supérflua, (como atesta a lição marxiana) se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente”. A lógica do imediato sempre redunda em miopia cognitiva. Até hoje os saberes e práticas tradicionais da Amazônia têm sido premidos e compelidos pela impaciência e pelo imediatismo da compreensão epistemológica moderna, hábil em reduzir ao estado de ignorância o que resiste e diverge de seu ideal de comensurabilidade.  

Mecanicamente aplicado ao devir da natureza e da cultura na Amazônia, esse modelo de inteligibilidade protagonizado por cientistas funcionais ao positivismo científico e presidido pelas demandas do capital, cuja e medida de ação é a desmedida do lucro a qualquer custo, continua a imprimir no ser natural e social da Hileia as marcas da predação e da barbárie. Esses agentes, por nunca terem “filosofado sobre a sua ciência” serão sempre cientistas secundários, imitadores, funcionários da ciência, conforme bem o observa Collingwood em Ciência e Filosofia. Essa míope epistemologia identifica natureza à barbárie e, por força de sua obtusa objetividade, alarga o campo da barbárie a cada intervenção dita civilizadora sobre os processos da natureza e da cultura na Amazônia. Mais do que cientistas e “funcionários da ciência”, a Amazônia requer pensadores.

7 – A Amazônia sob o fetiche da sustentabilidade, refém da objetividade obtusa e da medida da barbárie

A Amazônia, hoje, em sua constituição histórica, em seu mundo físico, biótico e antrópico, em sua dynamis filo e ontogenética, encontra-se diante da possibilidade (mais imediata que remota) de ter sua história reduzida a páginas de destruição antes mesmo de completar – para usar a metáfora euclidiana – “a última página, ainda a escrever-se do Gênese”, como defendia Euclides da Cunha. Esse projeto epistêmico de extração mercantil olha mas não vê a Amazônia, porque ao seu olhar só é visível o que no imediato se reduz ao fetiche da mercadoria. Sob a ideologia da sustentabilidade, a Amazônia continuamente se empobrece em razão de sua riqueza. Afinal, é da lógica da pobre cosmovisão do capital constituir o valor pela produção da escassez. Nessa axiologia, do ecologismo, da sustentabilidade funcional ao mercado, a Amazônia só tem direito de existir como produtora esgotável de valor de troca e em benefício dos que a convertem em objeto de posse. 

A propósito, Istvan Mészáros, mencionado em Epistemologia Ambiental: uma abordagem filosófico-científica sobre a efetuação humana alopoiética (1996), reconhece que “no decurso do desenvolvimento humano, a função do controle social foi alienada do corpo social e transferida para o capital, que adquiriu assim o poder de aglutinar os indivíduos num padrão” servil à lógica da produção e da distribuição definida pelo valor de troca. Como falar de Amazônia sustentável se as formas de sustentabilidade assentam ou se definem pelo espírito do capitalismo? A desconstrução dessa curta subjetividade que deita suas raízes epistemológicas sobre quem vive dentro e fora da Amazônia apresenta-se como tarefa e destino, também de natureza epistemológica, dos que acreditam noutra cognição social, capaz de engendrar uma subjetividade ecológica e amazônica, dentro e fora de seus limites.

Conclusões não conclusivas, mas necessárias

 Mais que resultado empírico, o que se postula nas notas supra pode ser resumido num duplo protocolo: 1) submeter a teoria e a prática da sustentabilidade operante na Amazônia ao crivo do referencial ontodialético do pensamento para, na e pela práxis, desvelar seu caráter mercantil e predatório; 2) afirmar o estatuto pedagógico e epistêmco do saber tradicional mediante o exercício ecológico, plural e transversal da racionalidade em contraposição ao monismo da razão operatória.

E do exposto, conclui-se, portanto, que sob os limites do ethos mercantil e da funcionalidade exigida à ciência e à técnica o conceito-fetiche da sustentabilidade na Amazônia opera em contradição ao que preconiza, porque é da natureza do capital destruir o valor de uso pela universalização do valor de troca e, desse modo, tornar impossível a proclamada sustentabilidade.

 

Por questões editoriais decidimos suprimir referencias bibliográficas e demais aspectos acadêmicos desse artigo. Você pode conferi-lo na íntegra clicando aqui.

 

José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e filho dos rios Solimões e Jaguaribe.
Imagem em destaque – durante a alta temporada, cerca de 30 cruzeiros turísticos com capacidade de 500 pessoas permeiam a paisagem dos rios Tapajós e Amazonas, em Santarém-PA. O turismo é uma das abordagens defendidas pela ideia mercantilista de “desenvolvimento sustentável, uma das tantas faces do ecologismo na Amazônia, A foto foi cedida por Gil Serique.
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