A fundação de Manaus: a rebelião dos manáos

Prédio do Tesouro Público, local de fundação do Forte de São José do Rio Negro.
Prédio do Tesouro Público, local de fundação do Forte de São José do Rio Negro. Crédito: Acervo/Amazônia Latitude

[RESUMO] Esta é a segunda parte de um artigo do livro “Manaus, história e memória”, ainda inédito. O autor faz um resgate histórico sobre a fundação da capital amazonense. Seguimos com a rebelião na Manaus antiga do século XVII. Leia aqui a primeira parte.

Depois da primeira metade do século XVII, a maioria das cidades e núcleos coloniais da Amazônia passava por uma grave crise econômica pelo esvaziamento da força de trabalho indígena, ocasionado pelos maus-tratos da escravidão e por uma violenta epidemia de varíola, que dizimou número expressivo de populações nativas. Para as autoridades portuguesas do Grão-Pará, o dilema seria resolvido com a intensificação das expedições de resgates para áreas ainda não exploradas do oeste da Amazônia, notadamente o vale do rio Negro.

Em 1723, com autorização do governador João da Maia da Gama, tropas de resgates deram início às capturas de índios do rio Negro, mas tiveram de enfrentar duríssima resistência da nação dos Manáos. Os indígenas impediram a entrada das tropas no rio, para fúria da elite portuguesa do Pará, que exigia providências enérgicas das autoridades em coibir a ousadia. Morreram dezenas de soldados e índios nos confrontos.

Pressionado pela população colonial, o governador manda instaurar uma Devassa (inquérito) para responsabilizar e punir os índios rebeldes. Ao final do processo, os índios foram considerados culpados pelas mortes de soldados portugueses e por crimes contra as leis e a Coroa portuguesa. Segundo foi apurado, os nativos estavam praticando comércio de armas e tráfico de escravos com estrangeiros, principalmente holandeses de Caiena, um fato que nunca foi devidamente comprovado.

Foi dito ainda que o cacique Ajuricaba navegava com a bandeira holandesa desfraldada na popa de sua canoa, o que é inverossímil, já que o índio daquele tempo não distinguia esse simbolismo representado por um pedaço de pano, fosse de qualquer nação, um procedimento indiferente para os nativos. A acusação se baseou no relatório do ouvidor-mor da Capitania, general Francisco Ribeiro Sampaio, cujo teor afirmava:

Os manáos tinham feito uma aliança com os holandeses da Guiana, com os quais comerciavam pelo rio Branco. A principal droga desse comércio eram escravos, a cuja condição reduzia os índios das nossas aldeias, fazendo nelas poderosas invasões.”

O governador Maia da Gama enviou o resultado das apurações às autoridades metropolitanas, solicitando com urgência a decretação de “Guerra Justa” para punir os índios amotinados. Como a ordem demorava a chegar de Lisboa, Gama adiantou-se em enviar tropas de guerra ao rio Negro, pois os Manáos intensificaram as ações de combates às expedições de resgates que tentavam penetrar no rio, causando mais acontecimentos sangrentos.


Retrato do tuxaua Ajuricaba – palavra da língua Tupinambá que significa “ajuntamento de marimbondos”. Fonte: Etelvina Garcia

Auxiliado por padres jesuítas, o governador tentou negociar a paz com os índios e conseguiu uma breve trégua, logo rompida com ataques de ambos os lados. Na verdade os portugueses não queriam a paz e sim a rendição e submissão dos povos do rio Negro para poder escravizá-los a qualquer custo.

No início do ano de 1727, uma força militar partiu de Belém sob o comando dos capitães João Paes de Amaral e Belchior Mendes de Morais, encarregados de dar combate à rebelião e eliminar a ameaça que estava pondo em risco a soberania portuguesa naquela parte da colônia.

No caminho, receberam substancial reforço de combatentes de outras localidades aumentando ainda mais a capacidade destrutiva da milícia. Durante todo aquele ano foram registrados confrontos violentos entre os índios e as tropas portuguesas, potencializando substancialmente o ódio e ressentimentos dos dois lados.

Em inquestionável desvantagem bélica, os índios foram aos poucos sendo vencidos em combates viscerais e desiguais, uma vez que suas flechas e bordunas — um tipo de vara curta de madeira com ponta — não eram páreos para arcabuzes, bestas e espadas.

Nessa reprimenda, sem nenhuma piedade, os portugueses promoveram um banho de sangue: chacinaram 15 mil índios incluindo velhos, mulheres e crianças, além de incendiar 300 malocas. Alguns dos sobreviventes foram aldeados para o Lugar da Barra e mais de 2 mil foram aprisionados em correntes para serem levados a Belém e vendidos como escravos, inclusive o próprio cacique Ajuricaba.

No transcurso da viagem o morubixaba (chefe), provavelmente sentindo o orgulho ferido pela derrota, comandou outra revolta, dessa vez dentro das canoas que os levavam ao cativeiro e, na tentativa de se livrar dos soldados portugueses, preferiu atirar-se nas águas do rio Negro, cometendo suicídio. Oficialmente, esse episódio é relatado pelo próprio ouvidor Ribeiro de Sampaio, que diz o seguinte:

Concluíram estes dois cabos a mais afortunada guerra, aprisionaram o Ajuricaba com mais de dois mil índios, e sendo remetido o mesmo Ajuricaba para o Pará, teve a intrepidez de causar na canoa uma sublevação unido e conjurado com os mais prisioneiros que nela iam, de sorte que, ainda assim preso, mostrou ânimo e esforço, que foi necessária grande fortuna, para se apaziguar o motim: porém o Ajuricaba vendo impossibilitados os meios de ser livre da prisão, e obrigado a ceder à infelicidade, com incrível resolução e ânimo, se lança com os mesmos ferros, que levava ao rio onde achou, em sua opinião, morte mais heroica do que a que alcançaria no patíbulo, que o esperava” (SAMPAIO, 1985, p. 115).

Mesmo com a morte do valoroso cacique, a guerra dos Manáos não teve fim naquele momento. Os combates prosseguiram durante todo o ano de 1727, quando as forças portuguesas destruíram os últimos resistentes e principais aliados dos Manáos, os indígenas da nação Maiapenas, liberando o médio e o alto rio Negro para, enfim, realizarem seus resgates. Sobre Ajuricaba, vejamos o que diz o ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio no seguinte comentário:

… Era o Ajuricaba Manau de nação, e um dos mais poderosos principais dela. A natureza o tinha dotado com ânimo valente, intrépido, e guerreiro. Corria o rio Negro com a maior liberdade, usando nas suas canoas da mesma bandeira holandesa, de sorte que se fazia universalmente, e era o flagelo dos índios, e dos brancos”.

Para alguns autores regionais, o heroísmo de Ajuricaba não passa de uma mistificação inventada pelos próprios vencedores, que, na tentativa de esconder a importância das outras centenas de rebeliões organizadas por outras nações e chefes tribais, tentam colocar Ajuricaba como o libertador dos povos indígenas, o general que comandou com maestria a confederação do Alto Rio Negro que se opôs aos opressores brancos, elevando-o ao panteão de herói do Amazonas. Para esses historiadores, o heroísmo de Ajuricaba se desfaz como poeira ao vento na sua meteórica derrota frente aos inimigos.

Pesa ainda sobre a biografia do grande tuxaua a acusação de traidor das nações do rio Negro, pois, conforme a tradição oral de vários povos sobreviventes, Ajuricaba fazia parte da mesma engrenagem de dominação colonial, escravizando tribos vizinhas, inclusive amigas, como foi o caso dos Baniwas, capturando-os e os entregando aos mesmos algozes que combatia.

Em 1757, sob o comando do índio Domingos, os Manáos rebelaram-se e novamente foram derrotados, no mesmo rio Negro. A rebelião, que ganhou o nome de Lamalonga por causa do local, aconteceu somente porque um padre não aceitou a convivência do cacique com duas esposas, prática social inaceitável por essa autoridade religiosa que, segundo sua ótica, afrontava a moral, os costumes e a decência cristã, e portanto era motivo para fazer “guerra justa” novamente contra os índios Manaus. Depois de vencido, Domingos foi executado sumariamente pelas autoridades ibéricas.

Quartel da guarnição portuguesa em Barcelos. Fonte: Wikipédia

Nesse episódio, ficou patente a arrogância colonial portuguesa, que nunca teve limites em suas interferências etnocêntricas para eliminar radicalmente a cultura e modo de vida dos indígenas.

Aguinaldo Nascimento Figueiredo é colunista da Amazônia Latitude e responsável pela seção Viagens pelo Amazonas. Em 2000 graduou-se em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É professor efetivo da rede pública de ensino estadual. Escreveu três edições do livro “História Geral do Amazonas”, e é autor de mais de 500 artigos no jornal “O Estado do Amazonas” nos cadernos de “História e Geografia do Amazonas” e “Museu do Conhecimento”, trabalhos que lhe renderam os “Votos de Aplausos” no Senado Federal em 2006. Desde 2017 é membro efetivo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira 22, que tem como patrono o memorialista português Gabriel Soares de Souza.

 

A imagem em destaque é a reprodução de uma foto antiga do prédio do Tesouro, em Manaus. Acervo/Amazônia Latitude

 

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »