Pandemias pós-normais

Condução da crise do Covid-19 evidencia necessidade de uma nova abordagem científica

 

[RESUMO] Ao abordar as pandemias em contextos locais, a ciência nunca pareceu tão necessária e útil e, ao mesmo tempo, limitada e impotente. O contrato existente entre a ciência e a sociedade está desmoronando. É urgentemente necessário um novo pacto para navegar nos dias que se avizinham.
 
 

Em 19 de Maio de 1986, o jornal britânico ´The Guardian´ publicou um ensaio intitulado “Disasters bring the technological wizards to heel: Chernobyl, Challenger, and the Ch-Ch Syndrome”. Nessa ocasião, os autores (dois dos quais são co-autores deste artigo) escreveram que “já não era viável para as elites dirigentes empregar peritos para persuadir o público de que as suas políticas são benéficas, corretas, inevitáveis e seguras. A Síndrome de Ch/Ch representa um golpe mortal na fundação científica para a legitimidade do moderno Estado mega-tecnológico. Um novo contrato social de especialização está agora a tomar forma”.

Pouco tempo depois, em 1993, Silvio Funtowicz e Jerry Ravetz publicaram um artigo seminal sobre o que veio a ser chamado de Ciência Pós-Normal (CPN), um novo entendimento da ciência para situações “quando os fatos são incertos, os riscos são elevados, os valores em disputa e as decisões urgentes”. A perspectiva da CPN – nem livre de valores, nem eticamente neutra – é epistemológica, bem como prática e metodológica.

No entanto, depois da Síndrome da Vaca Louca, da febre aftosa, da SARS, do H1N1 e de uma série de outras catástrofes semelhantes, que teriam parecido ser exatamente o tipo de situações que a CPN foi concebida para abordar, após debates enérgicos em conferências acadêmicas e revistas de renome, onde está o resultado? No meio de uma pandemia de Covid-19, onde está esse novo contrato social?

O “golpe mortal” parece ter dado sequência a uma lenta agonia na ciência tradicional, mas ainda não o fez através da morte. Apesar da mobilização verdadeiramente histórica da ciência, o nosso conhecimento em áreas cruciais continua inundado pela ignorância, especialmente sobre as fontes do vírus, mas também sobre seus progressos e resultados futuros. Os conhecimentos utilizados no aconselhamento político da Covid-19 assentam, na melhor das hipóteses, em pressupostos especulativos sobre o próprio vírus e até que ponto é possível controlar e prever a forma como as pessoas se comportam. As divergências (não resolvidas) de perspectiva, expressas por peritos reconhecidos no que tange à utilidade, limites e perigos dessas especulações (por exemplo, Ioannidis, Crane e Taleb), alimentam a experiência de improvisação e a cacofonia do público.

As incógnitas conhecidas até a data da redação deste artigo incluem elementos-chave da epidemiologia, como a prevalência real do vírus na população, o papel dos casos assintomáticos na rápida propagação do vírus, o grau de imunização dos seres humanos, as vias de exposição dominantes, o comportamento sazonal da doença; e também fatores-chave da sociedade, como o tempo para disponibilizar globalmente uma vacina ou cura eficaz e, acima de tudo, as respostas não lineares (potencialmente caóticas) dos indivíduos e coletivos, em todas as escalas, até as tensões e confusões associadas às intervenções de distanciamento social, à sobrecarga das capacidades dos hospitais e dos serviços públicos de saúde, à redução, encerramento ou desaparecimento de empresas e empregos, etc.

Formalmente, podemos falar de instabilidades no complexo sistema de comunidades interligadas em múltiplas escalas, com muitos pontos de ruptura e de ciclos de histerese, o que induz ao entendimento de que as sociedades possam não ser capazes de retornar a um estado semelhante ao que se encontravam antes das intervenções do novo coronavírus. Estas incertezas, profundas, tornam as previsões quantitativas, especulativas e pouco fiáveis. Em consequência disso, pensadores sinalizam cenários profundamente contrastantes de futuros plausíveis para a humanidade.

Não há número de resposta

Com a falta de dados concretos quanto ao avanço da Covid-19, imprecisão dos modelos matemáticos de quantificação se tornam um empencilho. Fonte: divulgação.

Vemos aqui um padrão bem conhecido dos praticantes de CPN. Previsões que, supostamente, lançaram os Estados Unidos e o Reino Unido para a ação foram obtidas por modelos matemáticos, que produzem números nítidos, ainda que estes tenham sido obtidos às custas de comprimir artificialmente as incertezas associadas. “Não há um número de resposta para a sua pergunta“, extravasa um médico furioso ao político que tenta forçar a existência de um número preciso.

No entanto, o exemplo de Taiwan mostra que o modelo pós-normal de implantação da ciência na sociedade, em que a confiança, a participação e a transparência são cuidadosamente alimentadas em face de indeterminações profundas, pode, de fato, cumprir suas promessas.

A possibilidade de colapso econômico com consequente ruptura social é bem real e, agora, comentada diariamente, se não de hora em hora, em todos os noticiários. De fato, parece que estamos longe, na nossa proeza tecnológica e de governança, de sociedades capazes de garantir previsão e controle absolutos sobre qualquer tipo de perturbação que possamos vir a sofrer no futuro. Tendo isto em conta, seria, provavelmente, muito mais eficaz gerir nossas sociedades com base na procura de resiliência, e não no pressuposto de que nossos recursos devem ser atribuídos conforme uma estratégia de previsão e controle.

Por todo o lado, aceitamos uma ruptura do consenso epistêmico para que a ciência “normal” funcione. Isto está acontecendo não só nas áreas já esperadas, como psicologia comportamental, sociologia e ética, mas também em virologia, genética e epidemiologia. Em outras palavras, quando cientistas aplicados e consultores profissionais deixam suas zonas de conforto, para se encontrarem num contexto pós-normal, a aptidão para o objetivo muda de significado. Atualmente, mesmo em domínios já estabelecidos, as discordâncias não podem ser ocultadas (ou forçadas por consenso) a um vasto público; abundam, assim, as divergências e controvérsias em torno da questão: as atuais medidas draconianas são justificadas ou não?

Mesmo os dados mais confiáveis e os melhores modelos de previsão não podem resolver a distribuição do sacrifício que envolve, entre outras coisas, a arbitragem de conflitos e dilemas, que surgem em todas as escalas. Esconder-se atrás de alguma noção geral de ciência, ou da falta de dados – como se os mesmos tivessem o poder de resolver estes dilemas – é uma atitude impotente, débil e confusa.

Como diferentes perspectivas podem ajudar?

A ciência normal tem demonstrado grande poder na identificação de estruturas virais, locais de ligação e mecanismos patogênicos. Todos estes são essenciais para os regimes de diagnóstico e tratamento médico. No entanto, para responder a questões relacionadas com a gestão da tecnologia, incluindo o estabelecimento de prioridades, quando, por exemplo, respiradores e camas hospitalares atingem o seu limite bem como identificar formas de reorganizar as estruturas institucionais, a ciência normal não oferece qualquer tipo de orientação.

Uma alternativa que inclua o equilíbrio de custos e benefícios imponderáveis envolverá uma variedade de perspectivas e avaliações legítimas; é necessária liderança política para escolher entre as opções possíveis. A variação entre os níveis de política e consciência podem muito bem tornarem-se mais graves do que os perigos iniciais. Como é que as tensões sociais existentes, como entre elites e anti-elites, serão refreadas nesta crise?

O novo contrato social, ainda emergente, convida-nos a fazer uma pausa no nosso desespero para que a estaca quadrada da “ciência normal” se ajuste a uma circunferência à qual nunca foi destinada. É preciso remodelar nossas atividades para que estas se adequem à nova realidade. Além disso, e se percebermos que desta vez, mais do que anteriormente, não estamos no controle? Estaremos condenados a fazer mais do mesmo para sempre, até sermos obrigados a fazer algo mais pelos acontecimentos (por causa de um colapso, por exemplo)?

Diagrama da Ciência Pós Normal (CPN). Fonte: WikiMedia.

Em resposta a este enigma, a CPN sugere que se considere uma nova objetividade, obtida (ou melhor, construída), ao ouvir diferentes histórias e pontos de vista. O diagnóstico da CPN pede mais, e não menos, democracia deliberativa. Pede a mobilização e o envolvimento de todos os afetados numa situação de crise, através de uma “comunidade ampliada de pares“, promovendo uma agência individual e coletiva para a aprendizagem social, em vez da otimização tecnocrática de pessoas sem poder para a realidade virtual de projeções de modelos carregados de pressupostos, sob profunda ignorância e baseados num conjunto muito limitado de formas de especialização institucionalmene privilegiadas.

Em condições pós-normais, a base de conhecimentos deve ser pluralizada e diversificada, de modo a incluir o maior leque possível de conhecimentos de alta qualidade potencialmente utilizáveis e fontes de sabedoria relevantes, sem impor a exigência de que a ciência fale a uma só voz. “A robustez é aqui procurada principalmente na estratégia política e não na base de conhecimentos: que políticas são úteis independentemente de qual das interpretações científicas divergentes dos conhecimentos é a correta“. Uma ilustração desta abordagem no contexto do presente debate surgiu quando o Conselho da Europa contestou as provas e a política da Organização Mundial de Saúde (OMS) em relação à gripe H1N1, e – segundo alguns pesquisadores – fez isso utilizando uma análise de pós-informação. As políticas da OMS foram, mais tarde, consideradas pouco prudentes e possivelmente tendenciosas pelos intervenientes industriais.

Qual é o aspecto de uma abordagem pós-normal?

A inevitabilidade dos acidentes e das epidemias é um “desconforto” do conhecimento. Confrontá-la é tanto um ato moral quanto uma decisão política. Através da CPN, imaginamos estratégias baseadas numa sábia monitorização e antecipação, obtidas por uma combinação de percepções não equivalentes da nossa interação com a natureza.

Isto não pode ser obtido apenas pela inteligência artificial, algoritmos e modelos, nem os aspectos distópicos destes últimos podem ser resgatados pelos resultados da resposta chinesa à Covid-19. Precisamos procurar uma adaptabilidade baseada na atenção aos “sinais fracos”, preservando a diversidade e a gestão flexível.

Até o momento, a ciência tem sido utilizada para melhorar a qualidade de vida de alguns grupos sociais e países, dar a essas pessoas uma vantagem sobre os seus concorrentes e substituir a religião como fonte de legitimação do poder. Tornou-se evidente agora que grupos sociais específicos, que até têm desfrutado da ciência, passam a lutar com todas as armas políticas e econômicas possíveis para recuperar o controle e dirigir a narrativa.

No entanto, esta pandemia oferece à sociedade uma ocasião para abrir uma nova discussão sobre se precisamos aprender a fazer ciência de uma forma diferente. Cientistas conscienciosos e cidadãos empenhados não podem permitir que esta oportunidade passe.

Na CPN, o mundo inteiro torna-se uma comunidade ampliada de pares, uma vez que o comportamento e as atitudes dos indivíduos e das massas se tornam cruciais para uma resposta bem sucedida ao vírus. Esta comunidade ampliada de pares é o oposto de uma estratégia de decisão tecnocrática, baseada no número e no modelo. É uma comunidade onde todos aqueles que têm interesse possuem, também, uma palavra a dizer, desde os peritos de várias disciplinas científicas, aos interessados, denunciantes, jornalistas de investigação e a comunidade em geral.

CPN no contexto brasileiro

No dia 7 de maio, o presidente Jair Bolsonaro caminhou com seus ministros e um grupo de empresários rumo ao STF para negociar a retomada econômica. Foto: Marcos Corrêa/PR.

Nos primeiros meses de 2020, à medida que a pandemia de Covid-19 se desenrolava, vários líderes mundiais, incluindo nos EUA, no Reino Unido e no Brasil, adotaram posições que minimizam a gravidade dos perigos para a vida e a saúde pública, ao mesmo tempo que insistiam que interromper a atividade econômica era inconcebível.

As posições destes líderes foram talvez misturas espontâneas de esperança, negação e exploração oportunista das incertezas. Havia muitas incógnitas, mas rapidamente se tornou claro, durante os meses de março e abril, que nem os fatos estabelecidos, nem as incertezas (muitas vezes disfarçadas de ausência de dados, o que não é a mesma coisa), nem qualquer mistura dos dois, poderiam, por si só, fornecer uma justificativa dita científica para a política da Covid-19. Além disso, tornou-se rapidamente claro, a partir dos comentários de especialistas e pessoas comuns nos diversos meios de comunicação, que a política não pode ser reduzida à ciência. Os juízos normativos e, por conseguinte, políticos, que envolvem “compensações” entre diferentes prioridades e configurações de risco, podem, de fato, se beneficiar das contribuições científicas, mas não podem ser reduzidos a uma justificativa científica.

A tensão entre (i) as políticas de isolamento (distanciamento social), destinadas a abrandar as taxas de infecção (e a dar melhores perspectivas de resposta dos serviços públicos de saúde), mas que implicam um encerramento maciço das atividades econômicas, e (ii) a manutenção das atividades econômicas em curso, é apenas uma expressão em escala macroeconômica de uma série de dilemas, grandes e pequenos, de ação pessoal e política. Muitos deles envolvem escolhas sociais difíceis, entre imperativos morais distintos – referidos na economia e na filosofia política como problemas de distribuição do sacrifício.

À medida que a evidência da elevada infectividade do coronavírus se tornou cada vez mais convincente, os líderes de muitos países, incluindo EUA e Reino Unido, aceitaram a necessidade de liderança política e agiram no sentido de incitar ou impor o isolamento – aceitando que isso terá custos em termos de perturbação econômica. No Brasil, porém, no momento em que escrevemos, a posição inicial do Presidente foi mantida, recusando-se a priorizar o isolamento dos cidadãos. Esta posição contribui para uma forte controvérsia. É amplamente reconhecido que os benefícios das políticas de isolamento e de distanciamento social – para abrandar a propagação da doença, reduzir a sobrecarga e o possível colapso dos sistemas de saúde pública, proteger populações vulneráveis definidas e reduzir as taxas globais de mortalidade – estão sendo ignorados. Em outras palavras, os objetivos de saúde pública, relacionados com a preservação da vida humana, são sacrificados por outras prioridades econômicas e políticas, talvez apenas a curto prazo.

A justificativa do governo para isso é que o encerramento brutal das atividades econômicas por mais de alguns dias ponha em perigo – e talvez leve à morte rápida – um grande número de pessoas nas camadas mais pobres e mais vulneráveis da sociedade brasileira. Será que este argumento tem alguma credibilidade, ou será que, como alguns críticos sugerem, foi promulgado como álibi para justificar a proteção dos interesses econômicos existentes? E não haverá, de fato, o risco de ocorrer um rápido contágio de Covid-19 na sociedade brasileira e justamente as populações mais pobres – para as quais os sistemas de saúde pública já são insuficientes – acabarem pagando um preço desproporcionalmente elevado?

A Ciência Pós-Normal (CPN) é uma perspectiva da prática científica e do aconselhamento político em situações em que os fatos são incertos, os interesses em jogo são elevados, os valores em disputa e as decisões são urgentes. Vemos, na situação do Brasil, que a questão não é apenas como a vida humana deve ser valorizada em relação aos custos das perturbações econômicas, mas, também, quais as vidas que são mais (ou menos) valorizadas entre as diferentes populações vulneráveis. As principais questões políticas referem-se à distribuição desigual dos riscos, em que aqueles referentes à vida e a saúde, em detrimento da perda da capacidade financeira, são apenas duas das muitas dimensões da vulnerabilidade humana e social.

A CPN é dedicada à qualidade das contribuições científicas para os processos políticos. Assim, reconhece, também, que o conhecimento por si só não pode resolver problemas sociais complexos e está empenhada em promover debates e soluções democráticas e reflexivas. Tal como a ignorância dos fatos conhecidos não é uma justificação válida para as políticas, também a falta de provas não deve ser utilizada como uma cortina de fumaça para a proteção de interesses particulares. Justiça e equidade devem fazer parte do quadro, para julgar o significado e a aceitabilidade dos riscos.

Numa perspectiva de CPN, os papéis da ciência na crise da Covid-19 são os seguintes: em primeiro lugar, realizar investigação com integridade e comunicar claramente sobre pontos que são conhecidos – tais como a fácil transmissão do coronavírus de pessoa para pessoa através da simples proximidade (respirar, falar, tocar), incluindo de portadores que não apresentem sintomas graves; em segundo lugar, comunicar claramente sobre as incertezas e seu possível significado para as diferentes partes interessadas; e terceiro, fornecer, com integridade, nas discussões sociais e políticas, contribuições sobre os riscos e vulnerabilidades dos diferentes componentes da sociedade, os prós e contras das estratégias alternativas de ação, os dilemas que têm de ser abordados e, neste sentido, as justificativas a favor e contra decisões difíceis (e inevitavelmente controversas) que têm de ser tomadas.
 

Este artigo foi publicado pela primeira vez em inglês no ESRC STEPS Centre blog. É aqui republicado em português e contextualizado para facilitar maior divulgação e discussão. A presente versão é ligeiramente atualizada, com alguns links de atualidade adicionais, a partir da versão original do STEPS.

 
 

David Waltner-Toews é Professor Emérito do Department of Population Medicine, University of Guelph, Guelph (Canada); Annibale Biggeri é Professora de Estatística Médica da Università degli Studi di Firenze (Itália); Bruna De Marchi é do Centre for the Study of the Sciences & the Humanities (SVT), University of Bergen (Noruega); Silvio Funtowicz é do Centre for the Study of the Sciences & the Humanities (SVT), University of Bergen (Noruega); Mario Giampietro é da Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha) e da Catalan Institution for Research and Advanced Studies (ICREA), Barcelona (Espanha); Martin O’Connor é presidente e gestor de programas da L’Association ePLANETe Blue (França) e da Graduate School BASE, Université de Paris Saclay (França); Jerome R. Ravetz é do Institute for Science, Innovation and Society, University of Oxford (Reino Unido); Andrea Saltelli é do Centre for the Study of the Sciences & the Humanities (SVT), University of Bergen (Noruega) e da Open Evidence Research, da Universitat Oberta de Catalunya (Espanha); e Jeroen P. van der Sluijs é do Centre for the Study of the Sciences & the Humanities (SVT), Universidade de Bergen (Noruega) e da Utrecht University (Holanda).
A imagem em destque é uma arte de Fabrício Vinhas, designer da Amazônia Latitude.

 

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