Higino Tenório e a pedagogia Tuyuka: espancando a dor

Higino Tenório

“Maldigo el fuego del horno / Porque mi alma está de luto / Maldigo los estatutos/Del tiempo con sus bochornos / Cuánto será mi dolor”. (Violeta Parra, 1966).

O que Violeta Parra tem a ver com o Poani Higino Pimentel Tenório, 65 anos, contaminado mortalmente pelo coronavírus e sepultado em 21 de junho? Sua longa agonia desde meados de maio foi por mim acompanhada através de sucessivas mensagens enviadas por Marivelton Baré, presidente da Federação da Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN) e pela antropóloga Flora Cabalzar. Diante do sofrimento de Higino, idealizador da Escola Tuyuka, creio que entendi o quanto são universais a dor, o desencanto e a impotência ao ouvir a sirilla “Maldigo del Alto Cielo” gravada pela cantora chilena e que já prenunciava seu suicídio meses depois.

Marcado por um estado de profunda depressão, o canto de Violeta evoca o desespero ao contemplar a primavera com seus jardins floridos e perfumados, as estrelas reluzentes ou a imponência da Cordilheira dos Andes, cuja beleza agora causa sofrimento pela lembrança do bem perdido. A sua dor é tão dilacerante que, diferentemente do canto utópico de Armstrong em What a wonderful world, ela renega essa maravilha do mundo com tudo aquilo que lhe foi tão caro. Desesperança similar ao imaginar hoje um futuro para a humanidade sem a memória de cada sábio, de cada amigo querido que vai perdendo o oxigênio no leito de morte. Vidas que poderiam ter sido salvas.

A música de Violeta traz uma mensagem “absorvida na melodia e na letra, que mostram juntas o mesmo pesar. Não se trata de uma melancolia resignada, mas indignada”. As batidas nas cordas do violão são feitas “com força, com gana, como se a mão pudesse espancar a dor, como se marcasse a batida de um coração inconformado” – observa a jornalista Priscila Pasko. Compartilhei o mesmo sentimento ambíguo de beleza e de maldição, diante da trajetória de Higino pelo planeta e da forma como ele partiu.

Aula-passeio

A beleza e o saber se fazem presentes em uma das mais importantes experiências educativas realizadas no Brasil: a Escola Utapinopona, cujo projeto político-pedagógico foi concebido por Higino. Na avaliação feita in loco com a educadora norueguesa Eva Johannessen, em 2003, nós presenciamos o funcionamento da criativa pedagogia Tuyuka e suas diversas formas de ensino-aprendizagem. Uma delas é a aula-passeio, que tivemos o privilégio de observar. O professor percorreu a roça e a floresta com as crianças que observavam, escreviam e desenhavam, registrando a diversidade ecológica: vegetais, animais, insetos, arbustos, as árvores e suas raízes, o clima, o vento, e a relação entre eles.

“O método é ‘audiovisual’, a gente mostra cada espécie com sua classificação tuyuka. Cada planta tem nome e se for preciso, a gente fala com elas”, explicou Higino.
Presenciamos uma jovem tuyuka elaborar uma extensa lista com cerca de 30 variedades de mandioca, algumas delas desconhecidas pelas universidades, segundo o agrônomo Pieter van de Veld do Instituto Socioambiental (ISA).

A presença das crianças na sala de aula nos parecia complicado, por se tratar de turma multisseriada com crianças de várias idades, umas já alfabetizadas, outras em processo de letramento. Tal diferença costuma ser considerada um obstáculo, daí a separação das turmas por faixa etária e série. Os Tuyuka, porém, usavam essa diversidade como um recurso pedagógico a mais. Crianças que não sabiam ler entrevistavam os velhos e, no dia seguinte, os seus relatos orais eram escritos em língua Tuyuka pelos alunos já alfabetizados, e o texto escrito era usado na alfabetização.

Esse Higino tinha cada ideia. Ele adquiriu uma máquina encadernadora de espirais. Os registros escritos com desenhos coloridos, depois de revisados pelo professor, são encadernados, classificados por tema e arrumados em estante para serem usados pelas próximas turmas. Desta forma, a biblioteca escolar Utapinopona idealizada por Higino possuía, quando por lá passamos, mais de 150 livros manuscritos com letra impecável, todos eles de autores Tuyuka. E como se faz a avaliação? “A gente chama os pais e a comunidade e aí o aluno mostra pra todo mundo aquilo que aprendeu: fala, explica, ilustra. É como uma defesa de doutorado” – disse Higino, que sabia tudo.

À esquerda, o professor Higino, com a câmera, auxilia na produção de material durante a aula. Crédito: Aloísio Cabalzar. Na foto da direita, jovem estuda planta. Crédito: Pieter van de Veld

Enciclopédia Tuyuka

Em parceria com Higino, ministramos, de 16 a 23 de outubro de 2004, uma oficina de História do Rio Negro e do rio Tiquié na Aldeia São Pedro (Poani), com a participação de 67 pessoas da comunidade. Ele trouxe os sábios anciões Laureano, Emílio e Sabino, que descreveram a criação do mundo, a chegada dos ancestrais, o nascimento dos pássaros e das plantas, a fabricação das primeiras flautas sagradas e de outros instrumentos musicais, o surgimento dos cantos, dos benzimentos e das ervas medicinais, a localização do território dos ancestrais, a origem do fogo, da mandioca, dos artefatos de pesca, as técnicas de construção das malocas.

Higino estimulava a curiosidade dos jovens, cujas inquietações lembravam muito aquelas do “Tesouro da Juventude”, uma enciclopédia do século passado, que fez sucesso no Brasil entre a geração de 1950-60. As perguntas eram as mais variadas: de onde vem o vento? Como se formam a chuva, o dia e a noite? Por que existem rios de água branca, de água preta, de água transparente e vermelha? O que tem dentro das nuvens brancas, pretas e azuis? Mas também buscavam saber sobre a história recente, a ação do SPI [Serviço de Proteção ao Índio] e da Comissão de Fronteira, tema que o velho Laureano Ramos dominava.

Na oficina, cruzamos as várias versões das narrativas orais com documentos escritos sobre a região existentes em arquivos do Rio de Janeiro e com as evidências arqueológicas. Higino tinha interesse especial nos desenhos e inscrições nas pedras, a tal ponto que foi homenageado anos depois pela Associação Brasileira de Arte Rupestre e se tornou “o principal responsável pelo processo de descolonização epistemológica deste campo de estudos” na opinião de Raoni Valle, professor de arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), que destacou as críticas feitas por Higino da forma simplória de classificação dos petróglifos pela academia.

A maldição

Esse era o Higino Tenório Pimentel, um dos mais de 60 mil brasileiros mortos pela Covid-19, que já infectou aqui mais de 1,6 milhão de pessoas. A cada notícia de sua agonia, a música de Violeta me fazia ver a beleza da vida desse sábio benzedor, dono das narrativas, criador de uma escola pioneira que fortaleceu a língua Tuyuka e os saberes por ela veiculados, assim como os encantos de sua morada: o rio Tiquié [no estado do Amazonas], que quando se afunila nas curvas, as copas das árvores de ambas as margens quase se tocam, verde de um lado, verde de outro, a água de um negro café. Acima, um buraco branco com tonalidades azuis no céu.

Entrar naquele santuário é um espetáculo inesquecível. Na primeira cachoeira, pedras à esquerda com petróglifos, borboletas lambedoras de sabão amarelas, alaranjadas, brancas, azuis com a borda da asa preta e passarinhos pequenos voleteando em grupo, rodopiando como esquadrilha da fumaça. What a wonderful world!

Sem o talento e a coragem da cantora chilena para amaldiçoar o belo que testemunhei em alguns períodos de convivência com Higino, espanco a dor, maldizendo sua internação no dia 19 de maio no Hospital da Guarnição em São Gabriel da Cachoeira. Maldigo sua transferência dez dias depois para o Hospital Nilton Lins, onde foi entubado, maldigo a traqueostomia que fez no dia 10 de junho. Maldigo a infecção no rins, tudo isso transmitido gota a gota. Maldigo sua morte na quinta-feira (18). Maldigo o rebanho que profana a bandeira verde-amarela e que nela se enrola para apoiar um presidente cuja capacidade de escolher ministros incompetentes é exemplar.

Com o país à deriva, maldigo um presidente mais preocupado em esconder as “rachadinhas” e as pesadas acusações de corrupção de seu filho do que em combater a epidemia que atormenta a nação brasileira e devasta as aldeias indígenas. Maldigo a absoluta e explícita falta de solidariedade e de misericórdia dos ocupantes do poder e o deboche que manifestam em relação às vítimas da pandemia. Maldigo a máquina apodrecida da administração pública que com a cumplicidade de políticos e empresários corruptos desviam verbas da saúde em plena epidemia e lucram com o sofrimento alheio, aumentando o número de vítimas.

Essa é a forma de bendizer a memória do Higino, que plantou duas mudas de coco levadas de São Gabriel por seu amigo Pieter. Os coqueiros estão lá, dando coco. Pieter lembra que Wiwisero, o nome de um passarinho, era o apelido de Higino: “O canto desse passarinho calou, mas as sementes que ele plantou continuarão a dar muitos frutos”. Bendito Wiwisero, unido agora à Violeta Parra pelo luto.

 

José Ribamar Bessa Freire é doutor em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), onde coordena o Programa de Estudo dos Povos Indígenas. Orienta pesquisas de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), especialmente com os temas de história social das línguas, línguas indígenas e literatura oral.

 

Imagem em destaque: Projeto FOIRN/Instituto Socioambiental
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