Olho d’Água: Bioeconomia e o xadrez global da crise climática

Para entender o que é bioeconomia e o que significa um novo projeto sendo negociado com a França, conversamos com Marcela Vecchione Gonçalves

Bioeconomia- Presidente Lula e O presidente da França, Emmanuel Macron, a caminho da Ilha do Combu - Belém - PA
Foto: Ricardo Sruckert/PR. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
Bioeconomia- Presidente Lula e O presidente da França, Emmanuel Macron, a caminho da Ilha do Combu - Belém - PA

Foto: Ricardo Sruckert/PR. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude

Fazia quase dez anos que um presidente francês não visitava o Brasil quando Emmanuel Macron pousou em Belém do Pará na semana retrasada.

A viagem, que durou três dias e foi recheada até o último segundo de compromissos, deu muito o que falar. E não foi só por causa do bom humor brasileiro, que espalhou pelas redes sociais vários memes comparando as fotos que ele tirou com o presidente Lula com um “ensaio de casamento”. Mas porque Macron assinou embaixo de um projeto que prometeu levantar € 1 bilhão para investir na bioeconomia da Amazônia, o que equivale a quase R$ 5,5 bilhões.

A ideia é juntar todo esse dinheiro em quatro anos, com a participação de bancos públicos e instituições privadas. Aí os fundos seriam usados para trocar o modelo econômico da região amazônica, que hoje é bastante dependente da exploração intensiva de recursos naturais e está diretamente ligado ao desmatamento, por uma alternativa que preserve o meio ambiente, combata as mudanças climáticas e ainda gere lucro.

Não queremos transformar a Amazônia no santuário da humanidade. O que nós queremos é compartilhar com o mundo a exploração e a pesquisa da nossa riqueza de biodiversidade, das nossas riquezas aqui, mas que os indígenas possam participar de tudo que for usufruído da terra que eles moram. (Lula)

Falando assim, fica até simples. Mas a lua de mel dos presidentes na Amazônia não é tão doce quanto parece.

A bioeconomia, essa suposta solução para todos os nossos problemas ambientais, tem várias contradições, especialmente sobre como o conceito teórico funcionaria na prática. Além disso, já deu para perder a conta dos novos projetos que chegaram na região amazônica, prometeram mundos e fundos, mas entregaram pouco.

Para ajudar a gente a entender o que é bioeconomia, dessas palavras do momento que a gente escuta ao lado de “transição verde”, “economia de baixo carbono”, e o que significa esse novo projeto com a França, a gente conversou com Marcela Vecchione Gonçalves. Ela é doutora em Relações Internacionais e pesquisa no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará, como a Amazônia se encaixa no complexo xadrez global das ações climáticas.

Quando a gente pensa numa bioeconomia baseada nesse capital natural, em ativos florestais, então a gente tem que fazer a pergunta de quem está ganhando e quem está perdendo com isso. E numa perspectiva de futuro, de quem realmente vai ganhar com esse processo de tornar financeira e econômica a natureza, e não só a natureza, as pessoas, os grupos sociais, os coletivos que vivem nessa natureza e dessa natureza.

Este é o Olho d’Água, podcast produzido pela Amazônia Latitude e que propõe um mergulho nos assuntos profundos da maior floresta do mundo.

Ouça abaixo o quarto episódio completo:

O rio Guamá, um corpo d ‘água escuro de 700 km de comprimento, divide duas paisagens bem diferentes em Belém, capital do Pará. Olhando para um lado, o horizonte é preenchido por vários edifícios que moldam a silhueta da Belém continental e urbana. Do outro, é um verde a se perder de vista, pontuado por 39 ilhas que compõem a região insular da cidade. A Ilha do Combu é a quarta maior delas, uma Área de Proteção Ambiental que abriga, em sua maioria, populações ribeirinhas.

No dia 26 de março, Emmanuel Macron fez uma travessia de barco de mais ou menos 15 minutos pelo rio Guamá, indo da cidade que será, em 2025, sede da COP30, o Encontro sobre Clima da ONU, até chegar na Ilha do Combu.

Foi lá que ele e Lula fizeram as fotos que viralizaram nas redes sociais brasileiras e francesas, chamadas de “ensaio de casamento”. Mas o objetivo mesmo da visita era ir até a casa da Izete Costa, conhecida na região como Dona Nena.

Filha de produtores rurais, Dona Nena transformou as receitas da família num negócio rentável, uma marca de chocolates criada em 2006. Além da produção dos doces orgânicos em seu quintal, na Floresta Amazônica, ela coordena o projeto Vida Caboca, com foco em estratégias para consolidar pequenas empresas na região. Passados 18 anos, sua plantação de cacau hoje faz tanto sucesso que se tornou parada turística quase obrigatória no Pará.

No contexto da visita do Macron, o negócio da Dona Nena era para ser uma espécie de vitrine, exemplo da bioeconomia na Amazônia que o projeto de investimentos franco-brasileiro diz querer incentivar.

Não dá para negar que a causa é nobre. O modelo econômico atual da região está baseado na exploração de recursos naturais, um ciclo no qual o desmatamento persiste e se intensifica.

É justamente ele, o desmatamento, responsável por quase metade das emissões de gases do efeito estufa do Brasil. Para ter uma noção, se a destruição da floresta tropical fosse um país, ele seria o terceiro maior emissor de dióxido de carbono da Terra, segundo dados do World Resources Institute. E detalhe importante: quase todas as atividades que provocam mudanças no uso da terra no Brasil, mais de 80%, estão ligadas à agricultura e à pecuária em escala industrial.

A ideia é que, com a bioeconomia, seria possível reduzir o desmatamento, assegurar a diversidade biológica, cultural e social da Amazônia, e ao mesmo tempo gerar renda. A Associação Brasileira de Bioinovação estima que, só por lá, o novo modelo tem a possibilidade de produzir U$ 284 bilhões por ano até 2050, mais de R$ 1 trilhão.

Seguindo essa lógica, agricultores familiares, como a Dona Nena, e comunidades tradicionais ganhariam oportunidades de construir mercados de alto valor agregado, produzindo não só chocolate orgânico, mas também geleia de cumaru, caramelo da Caatinga, creme de jambu, baunilha do Cerrado e outros produtos locais e exclusivos.

A questão é que, como a grande maioria das soluções simples para problemas extremamente complexos, como as mudanças climáticas, a bioeconomia pode não ser tudo isso que promete.

Vários especialistas que estudam a questão ambiental caracterizam a crise que vivemos hoje como uma crise do próprio capitalismo, sistema econômico que visa a obtenção de lucros elevados a partir, entre outras coisas, da exploração dos recursos naturais.

O receio é que, com a bioeconomia, haveria apenas um leve ajuste do sistema. Uma das pessoas que pensam assim é a doutora Marcela Vecchione Gonçalves. Quando questionada se achava que a bioeconomia podia ser transformadora, ela respondeu:

É o capitalismo de novo, só que é um capitalismo se reinventando para poder se manter enquanto o sistema econômico vigente. Ou seja, enquanto o sistema organizativo vigente, majoritário, das relações que coordenam a circulação de valor globalmente. Também é manutenção no sentido de que você não diminui a escala. Se você não diminui a escala, não diminui a degradação. Você não modifica a forma de se relacionar economicamente com o espaço e com as pessoas que estão naquele espaço.

Por essa lógica, por exemplo, se o projeto anunciado por Macron e Lula investir numa plantação de cacau no Pará, como a da Dona Nena, o objetivo não seria garantir que comunidades locais, principalmente as que não produzem cacau, possam comprar chocolate e outros derivados a preço justo. A ideia, ao contrário, seria fornecer matéria-prima a um mercado muito mais amplo, capaz de produzir chocolate em grande escala.

O capitalismo também faz isso: define o que é a matéria-prima da vez, o que é o produto beneficiado e, assim, estabelece uma diferença de preços entre as duas fases de produção. Via de regra, quem produz a matéria-prima ganha menos do que quem beneficia e circula o produto.

No Brasil, quando falamos de economia, seja bio ou não, tem que imediatamente pensar em agronegócio. Esse setor representa um quarto do nosso PIB. E para ele, é muito interessante que o sistema capitalista, que está conectado diretamente à crise climática sobreviva a ela.

Com essa avaliação, pode não surpreender que alguns dos principais grupos por trás do chamado Programa Nacional de Bioeconomia, implementado em 2019 e continuado pelo novo governo de Lula, sejam a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA).

Ou seja, os líderes por trás da lógica que alia um business mais sustentável à rentabilidade representam as cadeias de produção dominantes no país. Não as comunidades quilombolas, ribeirinhas, indígenas e tradicionais, que estariam na outra ponta dos negócios.

Isso tem um porquê. Não é só que as grandes empresas, de repente, adquiriram consciência ecológica, como explica Marcela, mas, principalmente, para que elas possam se adaptar a uma nova realidade global em que precisam estar alinhadas com um modelo de negócios baseado em emissões de carbono reduzidas.

Hoje em dia, como diz a economista romena Daniela Gabor, inclusive assessora atual do Green Deal europeu — bastante crítica, mas assessora do Green Deal europeu —, estamos numa era dos ajustes macroeconômicos verdes. Então os Estados, tanto no nível federal quanto no nível subnacional, vão criando toda uma linguagem de políticas públicas e uma estruturação de políticas públicas para estar ok com o que significa esses ajustes. Porque isso é importante do ponto de vista econômico e, especialmente, do ponto de vista financeiro, para garantir uma regulamentação em nível global para a atração desses investimentos e, ao mesmo tempo, para garantir a segurança jurídica desses investimentos.

Para entender isso melhor, temos que voltar um pouco no tempo.

Era 2007 quando uma grave crise financeira nos Estados Unidos chacoalhou o mundo inteiro. A bolsa americana despencou naquele ano por causa de empréstimos hipotecários de alto risco (em inglês: subprime, nome pelo qual ficou conhecido essa crise), que começaram a ser liquidados, sendo que quem tinha pedido os empréstimos pagar as hipotecas não conseguia pagar a dívida. Aquilo quebrou vários bancos, arrasou economias e endividou, destruindo a vida das pessoas, especialmente as mais pobres. Sabe aquele filme A Grande Aposta, de 2015? É sobre essa história.

Pode parecer que não tem nada a ver com o que estamos discutindo neste episódio. Mas, por causa da crise dos subprimes, muitos começaram a se perguntar: como garantir que uma coisa como essa não volte a acontecer? Como adaptar o sistema capitalista, novamente, à realidade de escassez e de posicionamento dos investimentos circulantes? Foi naquele contexto que tomou força o conceito de capital natural, o tipo de capital que circulará e será valorizado na bioeconomia por meio dos ativos florestais.

Vamos falar um pouco “economiquês”. Um ativo, na linguagem financeira, é aquilo sobre o qual é possível gerar valor, para liquidar ou compensar no futuro. Então a ideia da bioeconomia é fazer uma aposta nesse capital natural como a fonte da agregação e circulação de valor econômico, para gerar crescimento.

Só cinco anos depois da crise dos subprimes, na Rio+20, Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que aconteceu no Rio de Janeiro, foram apresentados os primeiros documentos organizados sobre como escalar o capital natural e inseri-lo na lógica de formulação de políticas públicas voltadas a planos econômicos e de desenvolvimento. A partir daí, foi se consolidando a narrativa do capitalismo verde como a solução não só para a crise climática, mas também para a própria crise do capitalismo.

É aí que a Amazônia se insere, bem como a visita do presidente Emmanuel Macron a Belém, no complicado xadrez geopolítico das mudanças climáticas.

Aqui, mais uma vez, a doutora Marcela Vecchione:

É quase assim, a Amazônia é alto risco, mas, ao mesmo tempo, vale muito. Pensa numa bolsa de valores. Ou seja, investir na Amazônia tem uma adicionalidade muito grande para quem investe, porque há uma ameaça muito grande no entorno. Mas, ao mesmo tempo, o que existe dentro é de muito valor. Pelo Acordo do Clima, no Artigo 6, os Estados nacionais signatários, por suas atividades de cooperação, e isso é uma das coisas que está sendo regulamentada atualmente nas negociações, podem usar essas atividades de cooperação que tenham a ver com redução de emissão de carbono, conservação da biodiversidade, para gerar créditos para completar aquilo que não conseguirem cumprir nas suas contribuições nacionalmente determinadas.

Ou seja, investir na Amazônia rende para quem está dentro e fora do País. E são as grandes empresas transnacionais, cujos negócios foram historicamente poluidores, que não só vão se beneficiar disso, mas também estão influenciando ativamente a formulação das regras do jogo. Enquanto isso, quem vive na Amazônia vai perdendo autonomia. Isso já está acontecendo.

Nos anos 2000, no Acre, aconteceu o primeiro projeto piloto de cooperação do Banco Internacional de Desenvolvimento (BID) com o governo do Jorge Vianna para a valorização dos ativos florestais do Estado.

Foi Marcela quem contou essa história. Na época de implantação da política pública de valorização dos ativos florestais enquanto política macroeconômica de desenvolvimento no Acre, estava também se descobrindo o valor comercial do murumuru enquanto óleo para a indústria de cosméticos. Em tempo coincidente com a política, os Ashaninka fizeram um acordo com a Natura, via intermediários, para fornecer o fruto esmagado como matéria-prima. Eles faziam a colheita do fruto na Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, rica em murumuru.

Os Ashaninkas ficavam só coletando murumurus, o tempo inteiro. Da hora que acordava até a hora que deitava. Com as mãos machucadas de espinho, viraram coletores de murumurus. Viraram, como dizia um deles, “operário da floresta”. Os Ashaninkas são muito articulados politicamente. Eles, numa reunião, falaram “não vamos mais fazer isso. Está até entrando a renda monetária e tudo mais, mas a gente está deixando de viver como a gente vive. Inclusive, deixar de viver como a gente vive impede a gente de cuidar das nossas frutíferas, de manejar os nossos peixes…” Ou seja, de manter a biodiversidade de acordo com a vida social corrente deles. Aí eu pergunto de novo, quem é que ganha com essa história? É a população da floresta que vai receber um Bolsa Verde de, em média, R$ 300 por mês? Ou são os grandes investidores do mercado financeiro que investem nas traders que, no final das contas, estão dedicadas a um crescimento econômico e empresarial, mas baseado em monoculturas? E aí a gente se pergunta, como é que isso é bioeconomia? Como é que isso é economia da vida?

Ficavam com as mãos machucadas de espinho; viraram coletores de murumurus. Viraram, como dizia um deles, “operário da floresta”. Os Ashaninkas são muito articulados politicamente. Eles, numa reunião, falaram “não vamos mais fazer isso. Está até entrando a renda monetária e tudo mais, mas a gente está deixando de viver como a gente vive. Inclusive, deixar de viver como a gente vive impede a gente de cuidar das nossas frutíferas, de manejar os nossos peixes…” Ou seja, de manter a biodiversidade — diversidade de forma de viver — de acordo com a vida social corrente deles. Aí eu pergunto de novo, quem é que ganha com essa história? É a população da floresta que vai receber um Bolsa Verde de, em média, R$ 300 por mês? Ou são os grandes investidores do mercado financeiro que investem nas traders (comercializadoras globais) que, no final das contas, estão dedicadas a um crescimento econômico e empresarial baseado em monoculturas? E aí a gente se pergunta, como é que isso é bioeconomia? Como é que isso é economia da vida?

Por isso, tanto se fala num novo processo colonial, marcado pelo chamado imperialismo verde. Marcela me questionou: se apenas um dos lados dessa troca planeja qual é o futuro e qual é a melhor maneira de chegar lá, não estamos vivenciando novos padrões, ainda que mais sutis e mais benevolentes, de relações coloniais? É bem possível.

Se você está se sentindo num beco sem saída, você não está sozinho. O cenário é mesmo bem complexo. Muita gente está procurando a resposta para a crise climática, ainda sem muito sucesso. Mas tem algumas sugestões bem bacanas por aí. Por exemplo, tem várias comunidades no Brasil, inclusive na Amazônia, que já praticam a agroecologia, que é uma outra palavra da moda apropriada por esse discurso de transição verde.

A agroecologia é uma nova proposta de plantio, mas de organizar socialmente o uso e o cuidado nas relações com a terra. Ela envolve trabalhar em porções de terra menores, mais desconcentradas, com base na reforma agrária, sem a utilização de agrotóxicos, com uma produção em menor escala, baseada em cultivos combinados e sazonais a partir de circuitos curtos de produção e comercialização. Ou seja, os produtos não vão viajar tanto. Pode ser que nem sempre tenha morango, maçã e uva toda vez que você vai no mercado. Mas essa disponibilidade constante que estamos acostumado só existe, justamente, porque a produção se baseia num modelo degradante da natureza, para poder ter a escala que tem.

Não faltam propostas de políticas públicas em nível nacional para uma transição agroecológica, das formas de produção atuais, falta prioridade dada a essas políticas, como podemos observar pela preponderância e volume do Plano Safra para organizar as relações agrícolas e, consequentemente, ambientais no Brasil.

O investimento em projetos regionais ou conectados à proposta de um Plano Nacional de Produção Agroecológica e Orgânica (Planapo) nem se compara aos recursos direcionados para a grande agropecuária de alegada característica bioeconômica, de baixo carbono, que, como Marcela disse, de bio, vida, tem muito pouco.

Produção e direção do podcast: Marcos Colón
Roteiro e locução: Amanda Péchy
Edição sonora: Filipe Andretta
Revisão: Isabella Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas

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