Olho d’Água: Psicologia e os Indígenas
Novo Olho d'Água revela a complexidade, sensibilidade e os desafios do atendimento psicológico aos povos originários
Vanessa Terena, psicóloga indígena. Foto: Vanessa Terena / Arquivo pessoal. Arte: Fabrício Vinhas
Primeiro, um aviso importante: este episódio trata de um tema sensível, que é o suicídio. Recomendamos ouvir com cautela.
Quando a gente pensa em terapia, logo vem uma imagem de um paciente deitado num divã, falando sobre seus sonhos e angústias para um terapeuta que escreve num caderninho. Esse encontro dura mais ou menos uma hora e, depois, cada um segue seu dia.
Essa é a ideia clássica da psicologia. E essa é uma psicologia de origem branca, com raízes na Europa de Jung e Freud, que surgiu há mais de cem anos dentro daquele modelo de relações sociais.
Mas quando a gente pensa nas realidades indígenas dos mais de 300 povos no Brasil, muitas dessas coisas não fazem sentido: o jeito de se abrir é diferente, as relações de afeto são diferentes, o próprio conceito de “saúde e doença” é diferente.
Se eu chego pra minha psicóloga e falo: Olha, esse final de semana eu fui na chácara e conversei muito com o rio. Eu consegui me integrar muito, assim, sabe? Com o rio, com os passarinhos. A minha avó, que ancestralizou num passarinho específico, ela apareceu, conversou comigo… A pessoa, no mínimo, vai achar que eu tô com uma esquizofrenia, né? Vai me medicar. Porque ela tá doida, conversando com o rio, conversando com o passarinho, conversando com a avó que morreu… Então, se essa pessoa – qualquer psicólogo – não entender minimamente a espiritualidade do paciente e, principalmente, se esse paciente for uma pessoa indígena, isso é desumano. Porque você vai apagar essa pessoa. Você não vai entender que ela precisa desse contato com a ancestralidade dela pra poder viver minimamente saudável.
Essa é a Vanessa Terena.
Eu sou Vanessa Terena, sou indígena, psicóloga. Minha aldeia é na aldeia Ipegue, no distrito de Taunay, no Pantanal, Mato Grosso do Sul. E eu faço parte da ABIPSI, a Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos.
Conforme mais indígenas entraram nas faculdades de psicologia, como a própria Vanessa fez em 2018, foi ficando cada vez mais clara a necessidade de adaptar esse campo para o contexto indígena brasileiro.
E na região amazônica, na fronteira do desmatamento, é onde se concentram os mais altos índices de suicídio indígena do país – uma tragédia e um sinal de alerta.
Este é o tema do episódio de hoje.
Você está no Olho d’Água, podcast produzido pela Amazônia Latitude e que propõe um mergulho nos assuntos profundos da maior floresta do mundo.
Ouça abaixo o oitavo episódio completo:
Um passo importante para a adaptação da psicologia ao contexto indígena aconteceu em 2023, depois de quase vinte anos de gestação. Foi quando o Conselho Federal de Psicologia publicou um documento chamado “Referências técnicas para atuação de psicólogos junto aos povos indígenas“.
O nome é longo e o documento também: são 228 páginas que falam sobre conhecimento cultural, envolvimento da comunidade e respeito por práticas tradicionais de cura, entre outras coisas.
O livro serve de guia para os psicólogos que querem atuar de forma mais respeitosa e humanizada com os povos originários, que são um grupo de 1,7 milhão de pessoas, de acordo com o Censo de 2022.
E como não dá pra alguém conhecer todas as etnias e culturas, depende da pessoa psicóloga tomar uma decisão e partir para a pesquisa. A Vanessa explica:
Então, se o psicólogo mora no Acre, ele precisa, primeiramente, conhecer o território dele: quais são os povos que estão naquele território, quem são as lideranças, quais são as formas de vida, de compreensão daquele povo.
E aí você pode estar pensando: OK, mas o que isso significa na prática?
A Vanessa tem uma clínica de psicologia com atendimento especializado para pessoas negras e indígenas e eu perguntei como isso funciona:
Tem grupos, né? E tem pessoas que vêm pela própria ABIPSI. São pessoas indígenas que precisam desse letramento racial que, infelizmente, ainda não faz parte da psicologia. São pessoas que veem numa pessoa indígena, numa psicóloga indígena, a possibilidade de que essa pessoa entenda minimamente o que ela está passando: as questões de identidade, as questões de relacionamentos que são atravessadas pelas questões raciais mesmo.
Às vezes, essas pessoas já até procuraram ajuda antes e encontraram gente que escorregou no básico do acolhimento. Mas, assim, básico mesmo:
Por exemplo: eu tenho uma adolescente indígena que decidiu trocar de terapeuta porque a terapeuta perguntou se, quando ela ia à aldeia, ela comia com a mão ou usava roupas
Então muitas vezes o problema é essa ignorância. Mas tem também a ideia de só levar a sala de aula para dentro do território, sem nenhuma adaptação – o que também não funciona.
Então, a gente tem casos de psicólogos que levam divã para dentro da aldeia, né? Tem casos de psicólogos que aplicam Rorschach, que é um teste, né?…[um teste] altamente complexo, em indígenas Guarani-Kaiowá, que não falam português. Obviamente que isso é muito uma questão de ética, mas também uma questão de despreparo, de não pararmos para discutirmos quem são os povos indígenas e o que a gente precisa. (…)
A terapia, ela nunca vai ser isso: eu, você, em uma sala branca, isenta, nesse divã, com essa troca. Não! Ela vai ser debaixo do pé de manga, ela vai ser perto de um rio, ela vai ser em grupo, porque se for sobre mulheres, por exemplo, elas vão se sentir – dependendo do povo – elas vão se sentir mais acolhidas entre elas (…) Então, cada território vai criar uma psicologia, uma forma dessa psicologia existir.
A Vanessa deu mais um exemplo de diferença: se um indígena estiver com depressão, ele pode precisar também de fortalecimento espiritual. E aí isso ultrapassa completamente a “salinha”, entre aspas, da terapia convencional.
Ela precisa coexistir com as lideranças indígenas, ela precisa coexistir com os xamãs, com os pajés, né? Com os mais velhos, principalmente. Ela precisa, dentro do território, carregar essa ancestralidade com ela. É [preciso] se juntar a ela [espiritualidade] pra que a gente possa minimamente começar a entender do que se trata a saúde mental voltada pra povos indígenas.
Hoje, investir na recuperação da saúde mental indígena é urgente. No ano passado, um estudo da Fiocruz e da Universidade Harvard mostrou que os indígenas têm uma taxa de suicídio quase 3 vezes maior que a média nacional, principalmente entre crianças e jovens de 10 a 24 anos.
E essa crise tá concentrada no Amazonas e no Mato Grosso do Sul, o que não tem nada de acaso: ali é a fronteira do desmatamento, onde as violências e inseguranças físicas e psicossociais são ainda mais intensas.
Bom, o suicídio é… Muita das vezes, as pessoas, os jovens, acabam fazendo isso porque eles se sentem abandonados. Elas não sabem o que fazer no momento de desespero. Fui um desses jovens. Já tentei o suicídio uma vez.
– Que idade você tinha?
Acho que tinha 14 anos. Porque eu estava sofrendo bullying, foi um dos motivos. Era muita dor pra mim e eu não podia falar para a minha mãe. Eu peguei a corda e tentei, só que eu não consegui.
Esse trecho é de uma conversa do Edgleison Ribeiro, um estudante indígena, com o Drauzio Varella. A entrevista foi gravada em 2020, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.
A gente tem que entender que o nosso direito básico de existência é violado todos os dias.
Essa é, de novo, a Vanessa Terena.
Como que eu vou falar para um Guarani Kaiowá sobre depressão quando ele está em um barraco de lona, fazendo comida em fogão no chão, dormindo no chão, não tendo comida todo dia? E daí ele vai, cria uma galinha, ele planta lá um pezinho de milho…mas aí o fazendeiro vem e manda derrubar tudo. Ou os seguranças desse fazendeiro os ameaçam o tempo todo, porque eles estão numa retomada. Como eu vou falar sobre saúde mental com essa pessoa? Existir nos adoece.
Em 2022, uma outra pesquisa da Fiocruz olhou para a taxa de notificação de autolesões no Brasil. E, mais uma vez, o maior número é registrado entre os povos originários, com mais de 100 casos a cada 100 mil pessoas.
Para os pesquisadores, esse é um indício forte de que eles têm mais barreiras no acesso aos serviços de saúde, incluindo a urgência e a emergência. A Vanessa tem uma história que ilustra esse ponto:
Vou te contar uma que eu escutei de uma amiga minha que trabalha ali perto do Paraguai. Ela estava em outro território e passaram um rádio sobre um adolescente que tinha tentado suicídio, e [perguntaram] se ela conseguia ir até lá. Daí ela foi. E o motorista falou assim: deve ter sido algum engano, porque a mãe dele está lavando roupa, então não aconteceu nada, né?
Daí, na hora que a mãe a viu, a psicóloga, ela foi, chorando, conversar. E o menino estava no chão, tinham conseguido tirar ele da corda. Ele estava vivo, conseguiram resgatá-lo. E aí a psicóloga pergunta para ela: por que a senhora está lavando roupa agora? [A mãe explicou:] Ele não tem roupa limpa para ir para o hospital. E não vão atendê-lo sujo. Então, quando a gente fala sobre algo tão focal como suicídio, a gente tem que perpassar várias questões. Várias. De abandono, de negação de identidade, de negação de direito básico, de negação à saúde.
Mesmo estando claro que o cenário é de crise aguda, falta gente: segundo o site InfoAmazonia, a Secretaria de Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (SUS) tem só 117 psicólogos no quadro. Na imensidão do Brasil, isso significa um único profissional para atender mais de 14.000 pessoas.
E [agora] eu vou perguntar para você, a mesma coisa que você me perguntou. Que tipo de protocolo essa psicóloga vai conseguir exercer?
Sentar num canto e chorar.
Você entende?
Diante dessa situação complicada, o próprio movimento indígena está procurando soluções.
Esse ano, aqui em Roraima, a gente realizou o primeiro seminário estadual da juventude indígena sobre a saúde mental. Ninguém nunca havia realizado um seminário como este. Nem mesmo o Governo ou o Estado ofereceram isso para as comunidades indígenas. Então, a gente, enquanto juventude, sentiu essa necessidade de realizar essa atividade para falar sobre o bem-viver dos povos indígenas entre nós mesmos – sem precisar da ajuda do Governo, sem precisar deles, né? Para falar por nós.
Essa é a Raquel Wapichana.
Olá, eu sou Raquel, sou do povo Wapichana, sou coordenadora do Departamento da Juventude do Conselho Indígena de Roraima, moro no estado de Roraima, sou do território indígena Taba Lascada, comunidade indígena Taba Lascada, região Serra da Lua.
Ela me contou que o movimento trabalha com saúde mental há pouco tempo, mais ou menos três anos, e ainda está entendendo qual caminho traçar.
A gente tem perdido muitos jovens, né? Inclusive líderes também, líderes jovens que têm tirado sua própria vida, que têm cometido suicídio. Muitas das vezes também a gente começa a se questionar: como nós vamos conseguir fazer com que a juventude se fortaleça fisicamente, se fortaleça espiritualmente, se fortaleça psicologicamente também?
Além de trazer mais psicólogos para vivenciar o dia a dia dos territórios, a ideia agora é fortalecer as redes de apoio desses jovens, principalmente, as mães e os pais, para que eles tenham uma recuperação mais duradoura.
Porque não é só levar um seminário ou uma palestra que a juventude vai se sentir bem. Mas a gente também chega para levar soluções para a juventude, nesse sentido.
Em abril de 2024, a Raquel participou de uma grande plenária sobre saúde mental no Acampamento Terra Livre, em Brasília, levando essa mensagem de cuidado para mais longe.
Então, a gente acaba sendo um porta-voz para outras pessoas, para outros jovens dentro do território para que eles continuem salvando vidas. É isso. Que eles continuem salvando vidas. E eu acredito que hoje a gente tem trabalhado muito nesse tema, né? De salvar vidas e reconstruir sonhos.
No Código de Ética do Psicólogo, tem um princípio que diz o seguinte: “O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
No final da nossa entrevista, eu perguntei pra Vanessa o que ela achava que uma psicologia indígena teria a ensinar à psicologia convencional – àquela do Freud e do Jung – para cumprir melhor esse princípio. E aí ela respondeu de um jeito que acabou ilustrando muito da diversidade do Brasil e de como uma psicologia indígena criada aqui pode, não só ajudar os povos originários, como também ampliar nosso jeito de ver o mundo:
Eu acho que a psicologia, ela, em algum momento, perdeu isso, né? Que cada indivíduo é único e plural ao mesmo tempo.
E isso, quando a gente chega nos territórios, ou chega em uma comunidade ribeirinha, ou chega nos romanis, ou chega dentro de um terreiro, ou dentro de uma igreja católica, ou qualquer que seja o coletivo… Se a gente não tem, minimamente, essa ideia de coletivo, de plural, e de que aquele ser precisa daquilo, né? Que aquela pessoa precisa disso, dessa convivência…Você não vai conseguir chegar até ela. Você vai fazer uma psicologia rasa. Não vai ser uma psicologia humana.
Roteiro, locução e produção: Ana Pinho
Edição Sonora: Filipe Andretta
Montagem da Página e Acaba: Yris Soares e Alice Palmeira
Revisão: Glauce Monteiro
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón