Em vez de ser encarada como um problema, a Amazônia deve ser vista como uma solução, diz diretor do Musa
O arqueólogo Filippo Stampanoni conta sobre os desafios à frente do museu
Foto: Ricardo Oliveira/Musa
Na próxima segunda-feira (22), o Museu da Amazônia (Musa) vai celebrar seu 15º aniversário, repleto de história, ciência e cultura. Localizado dentro da Reserva Florestal Adolpho Ducke do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), na zona norte de Manaus, o museu conheceu neste mês de janeiro seu novo diretor-geral. Filippo Stampanoni, doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (MAE/USP) e ex-diretor-adjunto do Musa, foi eleito pelo Conselho de Administração do espaço, que atua como associação da sociedade civil, de direito privado e sem fins lucrativos.
O italiano assumiu a direção do Musa após o falecimento, em 6 de dezembro, do fundador do local, o professor Ennio Candotti, aos 81 anos de idade. Ele era responsável pela gestão da instituição que funciona como um museu vivo, onde a floresta é o seu principal acervo. O Musa também conta com laboratórios, exposições, trilhas de visitação, além de uma torre de observação da floresta com 42m de altura.
Em entrevista à Amazônia Latitude, Stampanoni fala sobre financiamentos, engajamento com a população local, divulgação científica e políticas públicas.
Confira abaixo a entrevista:
Amazônia Latitude: Pode contar sobre sua carreira como arqueólogo e cientista? Como essa experiência vai contribuir para a direção do Musa?
Filippo StampanonI: Graduei-me na Itália e durante a faculdade, comecei a me interessar pela arqueologia amazônica. Fazia pesquisas e passava temporadas na Amazônia. Tive a oportunidade de participar de um grande projeto baseado em Manaus.
Há uns 16 anos, me mudei para a cidade, fiz doutorado na Universidade de São Paulo e hoje, além de fazer parte da direção do Musa, continuo atuando como arqueólogo em projetos de pesquisa. Um deles é o Programa Arqueológico Intercultural do Noroeste Amazônico (Parinã), na região de São Gabriel da Cachoeira, que conta com a participação de diversas organizações, como a Universidade do Estado do Amazonas e a Universidade de Londres, além do trabalho conjunto com as comunidades indígenas locais.
Você assumiu recentemente a direção geral do Musa, que vai completar 15 anos em 22 de janeiro. Quais estratégias para esse novo ciclo de gestão?
Tivemos a sorte e a honra de ter o professor Candotti à frente do Musa na última gestão. Ele nos ensinou muito e apontou caminhos importantes que pretendemos seguir. Agora, o que queremos melhorar ainda mais é a participação das pessoas ao redor do Musa. Queremos combinar a divulgação científica com uma abordagem mais convidativa para a população do entorno. Esperamos que isso deixe as portas do museu mais abertas, pois é um local que também pertence à população.
O museu está localizado em uma cidade relativamente famosa, mas ainda há muitas pessoas que não o conhecem, principalmente nossos vizinhos que residem na região Norte e nas periferias de Manaus. Desejamos ser mais acessíveis e dar mais atenção a essas comunidades. Pretendemos integrar diferentes pontos de vista na construção coletiva do museu.
Qual a importância do museu para a sociedade?
A Floresta Amazônica e a região da Amazônia têm uma enorme importância do ponto de vista global. A Amazônia representa uma das regiões mais biodiversas e socialmente diversas do planeta, o que, na minha visão, é o aspecto mais interessante e importante.
Qualquer visão de futuro pode enriquecer-se ao considerar diferentes experiências de vida. Ou seja, a diversidade cultural e biológica são chaves para criar futuros. A sociedade, aprendendo com a biodiversidade e a diversidade social da Amazônia, amplia significativamente seu leque de possibilidades de compreender um futuro desafiador.
O museu desempenha um papel crucial, pois grande parte da população amazônica reside em cidades, aumentando continuamente a população urbana e reduzindo a população rural. Isso faz com que as decisões políticas da Amazônia sejam tomadas por pessoas que conhecem menos a realidade da floresta, o que é preocupante para o futuro da região. É crucial criar locais, como museus, em todas as cidades da Amazônia, envolvendo universidades e escolas, para ensinar à população a importância desse bioma, evitando um completo descolamento entre quem vive na Amazônia e sua história, raízes e conhecimentos acumulados ao longo dos milênios.
Além disso, é preciso ressaltar que o conhecimento desenvolvido pelos povos indígenas ao longo dos milênios, como o processo tecnológico para transformar a mandioca de um tubérculo venenoso em alimento, é muitas vezes negligenciado. Esse conhecimento desempenha um papel vital na segurança alimentar global, alimentando 800 milhões de pessoas em diversos continentes. É crucial que a população local tenha consciência e conhecimento profundo de sua cultura, história e contribuições para garantir que essas conquistas sejam reconhecidas e valorizadas não apenas localmente, mas também globalmente.
O Musa é financiado principalmente pela bilheteria de visitação. Durante a pandemia, o museu precisou fechar e enfrentou dificuldades para se manter. Hoje, qual é a situação do espaço e quais são os maiores desafios para manter seu funcionamento?
De forma geral, a situação é a mesma. Nossa principal fonte de renda é a visitação. É o que garante o pagamento dos funcionários e a manutenção da estrutura. O museu é uma instituição privada e atualmente, não recebe financiamento regular do poder público. Porém, ele é gerenciado por um conselho administrativo composto por representantes da população, universidades e centros de pesquisa da região.
O que precisamos reforçar é que o museu tem uma missão e demanda de energia muito grande, inclusive econômica. Precisamos do apoio da sociedade para melhorar as atividades e contratar mais pessoas. Convidamos centros de estudos e universidades a dialogarem com o museu e fechar acordos que permitam aumentar o leque de pesquisas, tornando o museu um laboratório a céu aberto. Convidamos também todas as pessoas interessadas em apoiar o museu a entrar em contato conosco. Nossa capacidade de impactar a sociedade pode ser maior, mas hoje, abrir as portas do Musa com mais frequência, por exemplo, depende também de recursos.
O Musa tem altíssimos custos de manutenção. Não muito tempo atrás, tivemos uma exposição aqui que foi destruída durante um temporal. Com a chuva, uma árvore caiu em cima, e tivemos que buscar recursos para reconstruí-la. Portanto, todas as nossas atividades são diretamente proporcionais aos nossos recursos. E esses recursos são proporcionais ao envolvimento e apoio da sociedade.
Há expectativas de que o Fundo Amazônia possa contribuir com a manutenção dele?
Gostaríamos que o Fundo pudesse contribuir na manutenção do Musa. Já estamos buscando projetos a partir do Fundo Amazônia e isso ocorreu no passado; boa parte das instalações do museu foram criadas com esse apoio. Infelizmente, até o momento não encontramos linhas que se encaixem com as atividades do museu, mais voltadas para divulgação científica e educação. Aguardamos com esperança! Estamos cheios de projetos e ideias, e esse financiamento seria muito importante. Uma ação de conscientização sobre a importância da Amazônia, da floresta e de divulgação da ciência numa cidade como Manaus tem uma capacidade de reverberar muito grande.
A sede do Musa hoje está localizada dentro da Reserva Florestal Adolpho Ducke, no perímetro urbano e na Zona Leste de Manaus. Em 2022, o Inpa, que administra a Reserva, demonstrou preocupação com o crescimento populacional ao redor da região e possíveis prejuízos às pesquisas. O museu está sendo afetado? Como lida com isso?
A Reserva está localizada dentro de uma área de expansão urbana e lidamos com invasões e riscos frequentes. Passamos por uma seca muito forte e foi um milagre que não tenha acontecido nenhum incêndio, por exemplo, porque mesmo dentro da área do Musa encontramos pessoas que acampavam e atearam fogo dentro da floresta. Um risco altíssimo de perder metade da Reserva Ducke.
No Musa, ocupamos uma área de 100 hectares que a gente gerencia. E é necessário que a sociedade entenda que a Reserva é um bem comum, que precisa ser defendido e protegido. Provavelmente, é o pedacinho da Amazônia mais intensamente estudado e, mesmo assim, temos muito mais para descobrir.
É necessário lembrar também que a Reserva Adolpho Ducke é um patrimônio da humanidade, e os gestores públicos precisam contribuir para que ela tenha uma vida longa. Ela não pode se perder por invasões e queimadas. Isso a gente não alcança só cercando a reserva, transformando ela num jardim fechado para pesquisadores. A ideia é que ela se torne, por meio de instituições como o Musa, um local de diálogo.
A alternativa mais inteligente é vivermos juntos, e isso envolve obviamente políticas para melhorar a qualidade de vida das pessoas que moram no entorno da Reserva. É verdade que tem, e é também verdade que as invasões, violências e poluição que ameaçam a Reserva ocorrem porque essa população não está sendo atendida pelo Estado. É preciso ter políticas públicas e dar mais qualidade de vida para as pessoas.
O Musa é um local onde você pode conhecer a biodiversidade da Floresta Amazônica e suas particularidades. Como a nova gestão pretende envolver e engajar o público local? Há pretensões de torná-lo um espaço de sensibilização ambiental e científica?
Há um projeto financiado pelo CNPQ [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], já em andamento, que prevê a criação de roteiros de visita ao Musa, elaborados por educadores, estudantes, além de representantes do movimento negro e indígena de Manaus. Estamos fazendo esse convite para os moradores próximos ao museu e que possam trabalhar conosco, recebendo uma bolsa de estudo. Queremos roteiros diferentes e com uma visão aberta!
No ano passado, recebemos cerca de 15 mil visitantes não pagantes e dentro desse número, boa parte são alunos de escolas públicas. Pretendemos aumentar esse número e o engajamento das comunidades. O Musa nasceu com objetivo de ser um local de sensibilização ambiental e científico, e mesmo com todas as dificuldades financeiras e possibilidades limitadas, estamos trabalhando para isso.
O Musa é um museu vivo, mas também possui um acervo. Como o acervo se encontra hoje?
O Musa foi concebido para ser um museu vivo. Ou seja, o principal acervo é a própria floresta viva, com tudo o que acontece dentro dela: animais, plantas e insetos, a chuva caindo entre as folhas. Com o desenvolvimento das atividades, começamos a considerar outras características, como a criação de conhecimento junto com as populações, o que nos levou a fazer exposições. Aos poucos, o museu passou a ter “acervos tradicionais” de objetos. Atualmente, temos cerca de 30 mil objetos arqueológicos no museu, todos importantes por diferentes razões.
Recentemente, recebemos da FOIRN [Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro] e do Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] uma coleção muito bonita de peças coletadas ao longo dos anos em vários locais do Amazonas. São pequenas tigelas, fragmentos de decoração, cerâmica e objetos feitos em pedras. Essa coleção foi doada para o Musa, e estamos organizando as peças antes de repassá-las para a população. No primeiro semestre de 2024, teremos uma bela exposição arqueológica no museu, envolvendo várias organizações e comunidades, onde estamos levantando sítios arqueológicos na região do arco do desmatamento, ao sul do Amazonas. A ideia é aumentar a possibilidade de defesa dessa região já tão afetada, mostrando toda a história e o potencial dela.
Após anos de desmonte, em 2023 o governo brasileiro mudou, e especialistas apontam que a política ambiental foi retomada. Como você avalia esse cenário na Amazônia?
A Amazônia passou por um período de grandes dificuldades, e quando digo Amazônia, me refiro ao morador urbano, bem como quem reside no interior e aos indígenas. Me refiro também a qualquer pessoa que more distante da Amazônia, mas que gosta da Amazônia e entende a importância dela. Foi uma guerra intensa.
A Amazônia está sofrendo, e obviamente, fico contente com o retorno das políticas e atenção para a pauta, que mudou radicalmente. Mas é nesse momento que devemos lembrar que nunca é o bastante, e precisamos ir além. É necessário ousar mais e criar novos recursos, pois, em vez de ser encarada como um grande problema, a Amazônia deve ser vista como uma solução.
Produção: Ariel Bentes
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón