‘A gente vai plantar de novo’, diz Ailton Krenak no Amazonia Now

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Ailton Krenak, Angela Mendes e Erik Jennings falam sobre conhecimentos e outras possibilidades de vida no terceiro dia do webinar Amazonia Now

“Estamos em fusos diferentes, mas eu estou aqui na beira do Tapajós, são 18h e alguns minutos, e essa é a hora da geral. É quando todos os bichos vão tomar água e se movimentam na floresta. E assim a gente se movimenta para conversar”.

A ‘hora da geral’ foi anunciada pelo médico Erik Jennings para uma reflexão sobre cultura, memória e conhecimento tradicional. O último painel da quarta-feira (18) no webinar Amazonia Now, contou, além do neurocirurgião sediado em Santarém, no Pará, com a participação de Angela Mendes, coordenadora do Comitê Chico Mendes, e Ailton Krenak, uma das mais importantes lideranças indígenas hoje.

O escritor iniciou a conversa cantando uma música do povo Krenak sobre o Rio Doce e que ajuda a reparar os danos da mineração sofridos por Watu, o rio, avô de sua gente.

“A gente sopra o corpo do Rio, cantamos para ele, imaginamos a extensão dele e cantamos para o corpo dele sarar. Por um tempo ele ainda vai ficar preso na lama da mineração, que completou cinco anos na semana passada”, afirmou Ailton.

“Pedi que cantasse essa saudação ao seu avô para perguntar as memórias do Rio e como ele é importante para a existência do seu povo e, como metáfora, para nós todos”, disse Marcos Colón, editor fundador da Amazônia Latitude e professor na Universidade do Estado da Flórida, que promove o webinar.

Na cosmologia Krenak, o Rio é uma entidade. Na maioria das bacias hidrográficas da América do Sul, os rios são vivos e têm família. E seus filhos zelam pelos corpos d’água como fontes de memória, já que remontam à criação do mundo.

“Então não é brincadeira. Matar um rio é de uma violência inimaginável”, lembra Ailton. Na época do rompimento da barragem da Samarco, os velhos Krenak sonhavam com o espírito do rio, que dizia:

Eu mergulhei e estou andando profundamente nos lençóis mais subterrâneos.

Esse rio que corre por baixo da superfície não morre. Ele vai continuar a existir depois das pessoas, assim como a floresta, a terra e as montanhas, hoje predadas pelo capitalismo. Assim, o mundo que está sendo destruído é o mundo material, devorado como mercadoria.

Pedir licença ao rio

Erik Jennings é médico em Santarém desde 1999. Seu trabalho com os Zo’e, etnia indígena isolada na região do Tapajós, ofereceu outras interpretações ao profissional da saúde. Como em outro painel, o combate à pandemia de forma autônoma entre povos indígenas foi destaque na conversa, já que os Zo’e também adotaram esta prática e escaparam do contágio.

E, infelizmente, como sabem os indígenas, ele entendeu que o rio também corre risco de vida.

“Os rios morrem lentamente, é um sofrimento, diferente do Rio Doce, que teve uma morte súbita. E quando a gente pensa num rio como um ser vivo, fica imaginando dos rios do Brasil como eles escolheriam morrer, porque parece que não têm essa escolha”, disse no painel.

Quase todos os afluentes do Tapajós, principalmente os da margem direita — Cupari, Cripuri, Jamanxim e das Tropas, são lama. E a contaminação por metais pesados é a grande marca da mineração.

E os agrotóxicos, para Erik, podem ameaçar também os rios que correm por baixo, como na cosmologia Krenak, já que o veneno se infiltra no solo e contamina lençóis freáticos.

“O Tapajós está com os dias contados, não tenho dúvida. Se a sociedade e o país não fizerem nada, em poucos anos este rio está morto e vai para a estatística nacional de centenas que já morreram e que morrem quase todos os meses”, alertou.

O médico acredita que isso é fruto de uma concepção equivocada da sociedade, que não entende o rio como um ser vivo, com uma mãe que o protege. Ao causar o mal, há represálias dessa protetora, como a contaminação mercurial.

A renovação de alianças

Mantenedora do legado de Chico Mendes, Angela carrega o sobrenome do pai e a determinação de renovar, como tem feito há décadas, os meios e tentativas . Não à toa, fez um destaque: a eleição de indígenas para câmaras e prefeituras pelo Brasil no último domingo (15).

“Temos o Isaac Piyãko, reeleito prefeito de Marechal Thaumaturgo, isso é muito simbólico no momento que estamos vivendo”, disse a ativista.

As memórias de Angela do pai, Chico Mendes, líder seringueiro, são mais fortes do período em que o sindicalista do empate já repercussão — e ameaças. A relação seria marcada pelo assassinato do pai.

“Mas costumo dizer que a história do meu pai eu costurei como quem costura uma colcha de retalho, a partir de falas e depoimentos que fui colhendo durante a minha vida. Quando fala de agregadora, unificadora, é aquela pessoa que acreditava que só com a coletividade a gente avançaria na luta”, lembrou.

Foi com a ação coletiva que se fortaleceriam os sindicatos e os empates, táticas pacíficas de resistência contra o desmatamento no Acre. E foi a coletividade que fez surgir, a partir da iniciativa de Chico Mendes, a Aliança dos Povos da Floresta, em 1985.

“Foi baseada naquilo que se tinha em comum de ameaça na época, que é exatamente o que se tem hoje, aos territórios. Naquela época, década de 1980, a ameaça eram grileiros, fazendeiros e pecuaristas, e isso perdura com os garimpos e as hidrelétricas”, disse Angela.

Além dos projetos, há uma tentativa de distanciar as pessoas na Reserva Extrativista Chico Mendes (Resex) de suas identidades. É por isso que Angela incentiva e coordena programas de formação de jovens, para renovar alianças e dar as ferramentas para construir outros possíveis no futuro.

Não é misticismo, é cultura

Para os convidados, as culturas tradicionais, como as cosmologias indígenas, não devem ser encaradas como místicas. Mas um modo de colocar outras lógicas e relações com o ambiente, fauna e flora, pensar outros modos de estar no mundo. Sem esquecer que somos políticos.

“É por isso que falo que a gente está começando um passo muito importante quando a gente percebe as representatividades começando a despontar: das mulheres e de indígenas. Isso é o primeiro passo para construir um cenário de inclusão, justiça e diversidade”, disse Angela, há 30 anos na defesa desse quadro.

Falar de outros possíveis, além da política, é pensar no fim de lógicas e estruturas atuais. Perguntado por Colón sobre o fim do mundo, Ailton disse que o fim já aconteceu. E vai acontecer de novo.

“Em várias outras narrativas o mundo já acabou, o céu já caiu e tudo foi feito de novo. Isso desenvolve uma capacidade subjetiva e um sentimento de potência poética que nos mantêm vivos depois da tragédia.”.

Para Erik Jennings, a cosmologia não precisa ser encarada por outros públicos apenas como algo fantástico. O médico falou sobre o espírito da castanha, que pode trazer uma grande doença para a pessoa se tomar seu corpo, como conta o povo Zo’e.

“Geralmente isso acontece, de acordo com a cosmologia, quando não cuidam bem do corpo, quando não tomam banho”, explicou. Base do alimento por quase quatro meses no ano, a castanha também pode causar uma doença.

“É uma forma de viverem e se cuidarem. Vocês que estão ouvindo, podem achar que isso é lenda, acreditar que a castanha não tem espírito. Mas precisamos ter a responsabilidade de acreditar na verdade por trás do espírito da castanha. É ela que será responsável por uma vida melhor no planeta.”, afirmou Erik.

Para Angela, a valorização da coletividade é a chave para os mundos futuros. “2030 e 2040 estão bem ali. O que fazer para que nossas gerações alcancem esse futuro possível com água limpa e um planeta saudável? Essa busca a gente tem feito na luta diária”, afirmou.

Ailton lembrou que é preciso religar cultura e natureza, separadas pela sociedade ocidental, valorizando essas práticas de cuidado dos povos originários.

“Essas cotias que entraram na roça e comeram tudo, a gente vai plantar de novo”, despediu-se.

Acompanhe a cobertura completa do Amazonia Now neste link.

 

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