‘Para cada governo que vier com seu projeto genocida, nossos guerreiros vão se preparar mais ainda’, diz Kretã Kaingang no encerramento do Amazonia Now
Para especialistas, estratégias contra mercantilização da vida e disputa política substituíram a folclorização dos povos originários
Responsável pelo processo de autodemarcação de suas terras nos anos 1970, o povo Kaingang está entre os mais numerosos no Brasil. Sua população se divide em mais de 30 Terras Indígenas. Defensor do legado e de outros futuros para os povos originários, Kretã Kaingang aposta na mobilização contra as pressões econômicas.
“Para cada governo que vier com seu projeto genocida, nossos guerreiros vão se preparar mais ainda”.
O cacique do povo Kaingang e representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) participou do último painel do Amazonia Now, realizado na quinta-feira (19), junto com o procurador da República Camões Boaventura. O webinar foi promovido pela Universidade do Estado da Flórida (FSU), em parceria com as universidades de Harvard, Califórnia-Santa Bárbara e Califórnia-Davis, e da Associação dos Estudantes Brasileiros na FSU (Brasa), e da Amazônia Latitude.
Mediada por Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental, a conversa “Estratégias legais de resistência” começou com uma constatação que precisa ser reforçada no contexto político de 2020: o direito indígena no Brasil registrado na Constituição é resultado das lutas dos povos originários.
“É um fenômeno sociológico, conquistado e moldado a partir das mobilizações, disse Camões. O procurador também lembra que a existência e as práticas dos povos são a antítese mais marcante do neoliberalismo — enquanto se tenta mercantilizar a vida, os indígenas estão no extremo oposto, vivendo e desenvolvendo valores, culturas e visões de mundo alternativas.
O procurador listou exemplos de ganhos no direito socioambiental, como a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mas há também ameaças, como o marco temporal, cujo julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) foi adiado.
Apesar de as terras indígenas serem as áreas mais protegidas em seus ecossistemas, as homologações, que vinham a passos lentos, paralisaram por completo.
O perdão a grileiros, no entender do procurador também foi decisivo. “O Estado não só avisou, como estimulou a violência no campo: invadam, que em breve espaço de tempo vocês terão um título”, disse.
Muitas decisões passaram ao largo do Congresso, sem que os povos fossem consultados sobre a perda de direitos. No entanto, os ataques também mobilizam a resistência entre as nações e comunidades afetadas.
Um destaque, segundo o procurador, é o acionamento direto na justiça pelos próprios povos indígenas. Cita como exemplo a ADPF, ou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que a Apib entrou para reclamar medidas de proteção contra a Covid-19.
Outra estratégia é a tentativa de ocupação de espaços de poder, como as vitórias de indígenas e quilombolas nas eleições municipais do último domingo (15). Representantes conquistaram cadeiras em câmaras e prefeituras de vários municípios.
“Os povos da floresta são inimigos do neoliberalismo hegemônico por dois motivos principais: porque essa corrente neoliberalismo não se adequa às diferenças e porque os povos indígenas e da floresta têm uma perspectiva totalmente antagônica de se colocar diante do mundo”.
Outro medida encontrada são as iniciativas de controle sobre seu próprio território, através das autodemarcação, como fizeram os Munduruku, no oeste paraense, e os Tupinambás, no sul da Bahia.
“Se o neoliberalismo, esse sistema, esse regime que é tão sustentado nas individualidades e na mercantilização de tudo, é o que nos sufoca, o oxigênio para vencer esse sufocamento muito provavelmente está na antítese dessa forma de viver no mundo. A antítese é os povos da floresta, dada a coletivização das formas de existir, do direito, a colocação deles em áreas que estão fora do alcance do mercado. Se a sociedade mundial tem esperança de um dia vencer esse regime neoliberal que tanto nos sufoca, tenho a leitura de que o caminho quem nos diz são os povos da floresta”, crava.
O procurador avalia que os militares, com um protagonismo inédito na Amazônia, não têm expertise para arquitetar devidamente as operações de combate a crimes ambientais, nem a atribuição legal. “É um desvirtuamento do sistema jurídico nacional”.
O cenário político, que aponta para um Brasil cada vez mais isolado no tema ambiental, também é reflexo desse desvirtuamento, segundo Camões. O país está cada vez mais distante de iniciativas na vizinhança, como o reconhecimento na Colômbia dos direitos da natureza.
“O Brasil, hoje, ainda insiste na segregação entre os homens e a natureza”, enquanto “os povos indígenas nos dizem o contrário desde q o mundo é mundo”, afirmou.
#Eleições2020: no último domingo (15), os povos indígenas de todo o país demarcaram as urnas eleitorais e conseguiram eleger dez prefeitos indígenas. Parabéns a todos os parentes eleitos! ???
https://t.co/AQepY8zZpQ— socioambiental (@socioambiental) November 16, 2020
A luta é internacional
Mesmo as garantias da lei não são tão seguras assim. Os 325 artigos da Constituição, segundo Kretã Kaingang, são modificados “conforme os interesses do capitalismo, das grandes bancadas — ruralista, evangélica — e das grandes empresas”, disse, e lembrou que os povos originários possuem apenas dois (231 e 232).
“Antes da Constituição, temos o direito originário sobre o nosso território. Ele entrou na constituição, mas é anterior a ela”, afirmou.
O avô de Kretã, Francisco, participou da Constituinte junto com Raoni Metuktire, Paulinho Payakan, Ailton Krenak e Álvaro Tukano, entre outros líderes, para garantir o texto, que deu o embasamento para o ativismo das décadas seguintes.
“Sou muito orgulhoso de morar dentro de uma área de retomada. Isso não é fácil. Sofri ameaças e uma tentativa de homicídio. As pessoas envolvidas com isso sabem o quão difícil é, porque envolve o que tem em cima e o que tem embaixo da terra. E envolve muita coisa, principalmente o agronegócio”.
As retomadas foram uma forma de voltar para casa durante o período da ditadura militar, após expulsões feitas pelo regime para garantir espaço aos latifundiários.
“Veio a geração do meu pai, nos anos 70, que liderou as retomadas de terra no Sul do Brasil. Cabe a nós, os mais jovens, dar sequência a essas lutas. Desde que estou na Apib, tivemos a oportunidade de fazer o primeiro Acampamento Terra Livre [2004]”.
Kaingang fez questão de pontuar uma ressalva em relação a períodos menos difíceis para os povos. “O ex-presidente Lula, em campanha, falou que ia chamar os indígenas para uma reunião, com o intuito de conversar sobre a demarcação das terras, mas nunca fez isso. Então, eles fizeram o acampamento. Hoje, virou um evento mundial e povos do mundo inteiro vêm participar e apoiar o Acampamento Terra Livre”.
O boicote também é defendido pelo cacique e seus companheiros como uma ferramenta importante na luta. Produziram um documento sobre o consumismo europeu, americano e chinês, os maiores clientes brasileiros.
“Quem financia a guerra contra nós são vocês, porque vocês que compram produto oriundo de terra reivindicada, de área de desmatamento, de área de garimpo. É necessário que vocês revejam seus investimentos no Brasil. Enquanto vocês estiverem comprando, estaremos fazendo resistência, porque foi o que aprendemos com os nossos antepassados”, disse.
Kretã disse ter ficado muito invocado quando um presidente de uma associação de empresas na Suíça lhe respondeu que boicote eles não fariam. E contou a resposta.
“Lá no nosso país, conhecemos vocês como paraíso fiscal, esse dinheiro que é lavado nos seus bancos tem o sangue do nosso povo. E vocês não são um país com honra. Vocês financiaram uma guerra que não participaram, lucraram com ela. Aprendemos com os nossos idosos, aqui aprendemos com as suas mulheres e crianças, que param às sextas-feiras para nos apoiar. Não levaremos nada de vocês”, disse, em referência ao movimento Fridays for Future.
Ensinar coletividade
Não basta apenas denunciar, disse Kretã, mas explicar a ligação entre revisão de financiamentos e o futuro da Amazônia e do planeta.
“Defendendo a Amazônia, a gente defende o planeta. E nós somos defensores da floresta. Não somos aqueles políticos que em época de eleição saem plantando uma arvorezinha. A gente faz isso porque a gente se sente bem dentro da nossa comunidade. Eu gosto de plantar araucária porque é um símbolo sagrado para o povo Kaingang. É minha responsabilidade, gosto de lembrar que meus antepassados fizeram isso. Foram nossos ancestrais que plantaram a floresta”.
Indígena com celular continua indígena, ressaltou o líder, que considera a imagem folclórica uma coisa já superada. “É através do celular que a gente consegue expor nossa luta, conversar com parlamentares de outro país”.
A organização também é um ponto vital para Kaingang e seus companheiros na Apib no contexto político de 2020. As perseguições anunciadas pelo governo brasileiro agora são comentadas e debatidas por causa da visibilidade.
“Para o pior governo que vier, nós teremos as melhores estratégias. Estratégias diferentes para poder fazer essa luta”, disse. A Apib venceu o Prêmio Letelier-Moffitt de Direitos Humanos em 2020.
Não existe mineração legal
Uma das grandes bandeiras do Estado brasileiro, o uso dos recursos naturais na Amazônia e em outros territórios ganhou força, principalmente nas frentes de mineração, no governo de Jair Bolsonaro. E não há notícia boa sobre isso, para os convidados.
“Quem passa pela mineração, pelo arrendamento de terra, sabe o que é. Têm conflitos culturais e psicológicos. Arrendamento não é bom. É a pior coisa que pode acontecer com a gente junto com a mineração. O que o governo quer é colocar a gente um contra o outro. Depois é terra arrasada, é conflito, é doença. Cada um de nós é passageiro, mas para os nossos filhos, nossos netos: o que vai ficar para eles?”
Camões considera a proposta absurda e negacionista. “A ciência mostra que a natureza está chegando a um ponto de inflexão e a gente está sentindo isso. O que é a pandemia? Resultado da expansão das fronteiras de exploração em áreas protegidas. Não é leviano dizer que, pós-pandemia, outras pandemias virão se o ritmo não for freado ontem”, disse.
A mobilização contra o garimpo, uma atividade criminosa mesmo com produtos exportados legalmente, também foi consenso. Como têm sido todas as ações e debates sobre o tema.
Sob o ponto de vista econômico, a substituição da biodiversidade pelas monoculturas e pelo extrativismo industrial esgota recursos e condena territórios muito além daqueles impactados diretamente pela atividade. E num olhar jurídico, é inconstitucional que os projetos de lei circulem pelo congresso sem consulta aos povos envolvidos.
“Hoje, basta uma caneta e um pedaço de papel. Você escreve o que quiser, dando um ar de legalidade ao ouro que hoje está matando os Yanomami, está contaminando os Munduruku e praticamente todos os rios da Amazônia”, disse Camões.
Em suas últimas palavras, o líder Kaingang reforçou o coro de Ailton Krenak em outro painel, e avisou que haverá resistência: “para cada governo que vier com seu projeto genocida, nossos guerreiros vão se preparar mais ainda”.
Amazônia agora e além
O webinar Amazonia Now (Amazônia Agora), realizado de 16 a 19 de novembro, reuniu mais de 700 pessoas para discussões sobre as crises e perspectivas para a maior floresta tropical do mundo. “Se você tem coragem de lutar, então lute”, lembrou o professor da FSU, Marcos Colón, realizador do evento. A frase do líder extrativista Zé Cláudio, assassinado com sua companheira no Pará, em 2011, foi registrada no documentário “Toxic”, de Felipe Milanez.
Para Colón, editor fundador da Amazônia Latitude, essas são as palavras que moveram o evento e que seguem movendo o trabalho de cientistas, lideranças e ativistas pela construção de outros possíveis.
Acompanhe a cobertura completa do Amazonia Now neste link.