Histórias no beiradão: Belo Monte e a luta coletiva por território

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[RESUMO]“Ribeirinho é ter história no beiradão”. Conheça a luta coletiva em busca da reterritorialização de famílias ribeirinhas expulsas de suas terras para instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará.

O ano que vem marca 10 anos do início das obras da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte no rio Xingu, no Pará. Desde 2011, muitas famílias foram removidas das ilhas e margens alagadas por causa da barragem do rio. Elas passaram a viver o deslocamento forçado ocasionado pela perda de seu território.

De acordo com as Nações Unidas, despejo forçado é o processo em que pessoas, famílias e/ou comunidades são expulsas de suas casas e terras de modo permanente ou provisório sem que haja um meio de proteção legal ou outros mecanismos que lhes assegurem direitos básicos.

Os lagos de Belo Monte, como chamam as áreas inundadas do reservatório principal de água da Usina, submergiram grande parte de um território pertencente a cerca de 300 famílias oriundas de 15 comunidades ribeirinhas. Essas populações foram expulsas, tiveram suas ilhas e casas queimadas para diminuir a densidade de floresta e de estruturas físicas sucumbidas pela barragem.

Essas pessoas residiam a montante (antes) da barragem e sofreram impactos relacionados a saúde, educação, laços sociais de vizinhança e parentesco após o deslocamento compulsório.

“O que é ser ribeirinho?” foi uma pergunta que se tornou recorrente depois de Belo Monte. Isto mostra que a empresa empreendedora da hidrelétrica não sabia como as pessoas viviam nos beiradões — nome popular dado às margens do Xingu; tampouco foram realizadas pesquisas.

O reflexo disso se deu nas inúmeras violações de direitos humanos ocorridas para a garantia da evacuação completa das áreas submergidas após o bloqueio do fluxo natural do Xingu.

Por causa dessas violações, as populações ribeirinhas passaram a se organizar e a lutar por reconhecimento social. Queriam mostrar para o Estado e para a Norte Energia o que era ser ribeirinho no rio Xingu e o porquê de se considerarem parte de uma grande comunidade tradicional da Amazônia.

Resultado de uma luta coletiva, o Conselho Ribeirinho foi criado em dezembro de 2016, formado inicialmente por 28 pessoas autoreconhecidas ribeirinhas, divididas entre os cargos de conselheiros e suplentes. É a história dos ribeirinhos em Belo Monte e do autorreconhecimento de uma população tradicional que narramos agora.

Fora d’água

Para o Conselho, a dinâmica de vida é um definidor importante do que é ser ribeirinho, já que envolve os modos como as pessoas viviam nos beiradões, suas culturas, práticas e saberes. Ter história no beiradão. Além da pesca e do chamado corte de seringa (extração do látex), a produção de farinha, tucupi, tapioca e cultivo de roça compunham a base alimentar familiar e os trabalhos de comungar.

As habitações ribeirinhas, por sua vez, eram construídas pelos próprios moradores, com cobertura de palha de naja e paredes de barro, ou sem proteção nenhuma. Os fornos para a produção de farinha e suas prensas de arrocho para secar a massa de farinha eram artesanais.

As famílias expulsas por Belo Monte tiveram seus modos de vida interrompidos, seus costumes práticas e saberes não reconhecidos e não valorizados no processo indenizatório. A avaliação das propriedades ocorreu segundo um caderno de preços aplicado por uma empresa terceirizada da Norte Energia, empreendedora da hidrelétrica.

Segundo os moradores, este cadastro não considerou o tempo de moradia, as famílias extensas, a totalidade de suas plantações, as rendas de acordo com a pesca, a colheita e o extrativismo, além de menosprezar o sentimento de pertencimento com o lugar, a memória coletiva do beiradão e os laços de parentesco estabelecidos nas comunidades. Ao todo foram 217 pessoas cadastradas pela empresa.

A vida no rio é essencial para as populações ribeirinhas, pois deste contato surgem o sustento, o lazer e o aprendizado constante com a natureza. Entre os relatos que ouvimos, temos um fato comum: o desespero pela falta de adaptação à cidade, antes local de trânsito, agora, de permanência.

A falta de indenização foi outro agravante, pois essas pessoas foram morar com parentes na cidade ou trabalhar em propriedades rurais distantes da vida que conheciam. Marca disso é o desemprego dos pescadores, privados de sua atividade.

Ouvimos relatos de pessoas que se descreviam como “peixes fora d’água” na cidade de Altamira, maior centro urbano da região. Simplesmente não sabiam como sobreviver em meio a ruas pavimentadas e concreto, tendo que pagar por luz e água, diferente das ilhas, onde tinham água, luz da natureza e nenhuma conta no fim do mês.

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Conselho segue trabalhando e fazendo denúncias sobre os impactos e violências causados pela instalação de Belo Monte. 2019. Foto: Xingu Vivo

Em 2016, com o intuito de reparar parte dos danos, a Norte Energia reassentou aleatoriamente 121 famílias nas margens e ilhas formadas com o alagamento do reservatório de água do Xingu. Sem respeitar o desejo particular da família pelo local, sem coparticipação, de maneira impositiva: era pegar ou largar.

Das 121 famílias, 50 não foram reconhecidas pelas comunidades como sendo antigos moradores. Além disso, o reassentamento feito pela empreendedora de Belo Monte gerou novos conflitos: famílias relocadas ao lado de grandes fazendas, em áreas de pasto, pedrais e alagadiças, próximo a outras famílias desconhecidas com quem deveriam dividir o mesmo espaço de manejo.

Um relatório do Grupo de Acompanhamento Interinstitucional, produzido em 2017, confirmou o reassentamento de pessoas não ribeirinhas feito pela Norte Energia.

“ Então tem gente ganhando madeira, já tá com a casa levantada mas lá não vai morar, mas a Norte Energia vai ver, porque é gente que não tem precisão de morar lá”, diz um depoimento.

O documento foi assinado por Ministério Público Federal, Universidade Federal do Pará, Universidade Estadual de Campinas, Instituto Socioambiental, Mov. Xingu Vivo para Sempre.

O Conselho

Criado em 02 de dezembro de 2016, o Conselho Ribeirinho foi oficializado perante autoridades do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública do Estado do Pará e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), entre outros, como “órgão deliberativo, destinado a fazer cumprir os princípios de autodeterminação e de autorreconhecimento no processo de reterritorialização dos ribeirinhos removidos do rio Xingu para enchimento do reservatório da UHE Belo Monte”.

O Conselho nasce também de uma recomendação do Ministério Público Federal e do Ibama feita a partir das pesquisas da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Para participar do mesmo foi estabelecido que o participante deveria conhecer a dinâmica social das comunidades impactadas, saberes e práticas dos mesmos, ser membro, ter vivido em comunidade e se autorreconhecer ribeirinho.

Parte do trabalho foi estabelecer critérios para o reconhecimento das antigas famílias ribeirinhas de cada comunidade, a começar pelo mapeamento feito de acordo com os laços de parentesco e de vizinhança.

O trabalho durou cerca de um mês em 2017, para levantar informações sobre o destino de famílias expulsas, que não foram reconhecidas como impactadas pela empresa, mesmo tendo suas casas destruídas e suas propriedades transformadas em campo de trabalho do empreendimento.

“Esse conselho nasceu da necessidade de mostrar quem era ribeirinho. Porque eles não entendiam. Foram obrigados a colocar as famílias de volta em reassentamentos, mas fizeram de uma forma errada. Não sabiam quem era ribeirinho e quem estava ali só para lazer. (…) Fizemos o reconhecimento social das famílias tradicionais ribeirinhas”, afirmou Josefa Oliveira, uma das conselheiras.

Antes da formação do Conselho, os ribeirinhos participavam apenas de audiências públicas promovidas pelo Ministério Público Federal e Ibama. Com o Conselho, eles passaram a ser protagonistas no processo de reterritorialização das comunidades expropriadas.

As reuniões nos beiradões e na cidade de Altamira serviram para que as famílias narrassem suas vidas nas comunidades, descrevessem as atividades desenvolvidas na região e indicassem sua antiga vizinhança, sinalizando quem eram os moradores mais antigos e os mais novos.

Também sabiam identificar os moradores daqueles que mantinham os locais apenas para lazer.

Os encontros organizados pelo Conselho Ribeirinho deviam fortalecer suas próprias vozes. Em sua maioria, ocorreram entre os anos de 2017 e 2019, contaram com o apoio do MPF, do Ibama, do movimento social Xingu Vivo para Sempre, do Instituto Socioambiental (ISA) e da Faculdade de Etnodesenvolvimento da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Longe de casa

Finalmente foram pautados os terríveis impactos da remoção compulsória, como doenças e transtornos mentais, queda na qualidade alimentar e a dissociação e não adaptação aos grupos existentes na cidade.

A desterritorialização levou algumas pessoas a mortes por depressão e outras doenças contraídas ou agravadas na cidade, conforme os relatos colhidos. Outros perderam seus filhos para a criminalidade. Sem muitas expectativas de sobrevivência, jovens foram induzidos ao crime.

Com o barramento do rio Xingu, o fluxo natural do rio foi interrompido, deixando parte da água parada e imprópria para consumo doméstico. Não há mais pescado nessa área e nem todas as ilhas e margens remanescentes após a barragem são próprias para o cultivo de roça, por serem topos de ilhas com presença considerável de rochas.

Por causa da má qualidade da água, as famílias que já foram realocadas e as que serão reterritorializadas precisam de assistência do poder público para a construção de poços artesianos e de um sistema de bomba e filtro de água, além de outras assistências básicas para a recomposição de seus territórios.

Houve desestruturação do sistema de educação nas localidades em que as escolas foram destruídas. Com o deslocamento, famílias passaram a se referir à educação de forma diferente, como se o ensino na cidade fosse incompreensível. Com a demolição das escolas pelo empreendimento, foram arrasadas histórias de vidas e de conquistas.

Ouvimos relatos das dificuldades que crianças ribeirinhas sentem de se comunicar com os não-ribeirinhos na escola, pois vêm de uma cultura que convive com os povos indígenas e que compartilha outras maneiras de ser. São vítimas constantes de bullying.

A luta segue

Como resultado do trabalho de reconhecimento, 272 famílias foram identificadas pelo Conselho como moradores das comunidades expropriadas. Após o reconhecimento social, os conselheiros passaram a trabalhar no processo de identificação do território em que viviam, trabalho este que contou com o conhecimento tradicional dos ribeirinhos em termo de uso do solo, áreas de reprodução das espécies aquáticas, de extrativismo e apontamento de onde desejam retornar para morar, quando forem realocados.

Pelo observado nos encontro, os critérios para a escolha de onde morar eram relacionados à localização: a) de fácil acesso à cidade, que permitiam um trânsito mais rápido, dispondo de mais recursos relacionados a saúde, educação, comércio, trabalho, etc; b) que permitiam desenvolver atividades relacionadas a pesca, caça, extrativismo vegetal, corte da seringa e também escoar seus produtos para fins de troca ou venda na cidade.

Essas reuniões permanecem alinhando as propostas, definindo os tipos de tratamentos que devem receber do empreendimento, os serviços básicos para a permanência das famílias no espaço proposto, além de uma lista de prioridades para o retorno, como começar pelas famílias mais antigas e seus idosos, guardiões dos saberes dos beiradões do Xingu.

O Conselho Ribeirinho, espaço de atuação e deliberação deste povo tradicional, tem sido fundamental na garantia do retorno dessas populações ao rio Xingu, que lhes é de direito. Isso se constitui como resultado de uma luta coletiva para a recomposição dos modos tradicionais de vida, depois de serem impactados por um empreendimento que mudou toda dinâmica social dessas comunidades.

Josefa de Oliveira Camara da Silva é membra do Conselho Ribeirinho, Movimento Xingu Vivo para Sempre, e graduanda em Geografia na Universidade Federal do Pará (UFPA), campus Altamira.
Camila do Socorro Aranha dos Reis é doutoranda em Memória Social na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Imagem em destaque: Obras de Belo Monte, no Pará, em 2013. Norte Energia/Divulgação

 

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