Resenha: A Escravidão na Amazônia
A Escravidão na Amazônia
Autores: Ricardo Rezende Figueira, Adonia Prado e Rafael Franca Palmeira
Editora: MAUAD X
Ano: 2021
A implementação de projetos desenvolvimentistas no campo brasileiro para um país do futuro fez avançar significativas de demandas por direitos mínimos, lutas e resistências cotidianas em um sistema sofisticado de exploração e escravização de trabalhadores e trabalhadoras, que ocorreu de forma acentuada na região amazônica, especialmente no Sul e Sudeste do Pará.
A despeito das reiteradas denúncias de trabalho escravo na região, mobilizadas especialmente pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) desde a década de 1970, somente em 1995 o Governo brasileiro reconheceu, sob fortes pressões nacionais e internacionais, a existência de trabalho escravo no país.
Até então, coube particularmente à CPT o papel de mobilização das vítimas na efetivação de denúncias, prestação de assessoria jurídica para acesso a direitos e à justiça.
A problemática do trabalho escravo contemporâneo, ou trabalho análogo à escravidão, nomenclatura aceita pela legislação brasileira, é oportunamente abordada na obra A Escravidão na Amazônia: quatro décadas de depoimentos de fugitivos e libertos, de Ricardo Rezende Figueira, Adonia Prado e Rafael Franca Palmeira.
O tema faz parte da agenda de entidades e organizações nacionais e internacionais, como a OIT (Organização Internacional do Trabalho), e tem atraído interesse de diferentes áreas do conhecimento.
O livro aborda o fenômeno da escravidão contemporânea a partir da década de 1970, contexto marcado pela explosão da violência no campo, deslocamento forçado de trabalhadores e trabalhadoras vulneráveis ao trabalho escravo, e reserva particular atenção aos esforços da equipe da CPT, entidade que nasce no mesmo período e desde então segue preservando a função de visibilizar a violência no campo e denunciar casos de trabalho escravo.
Para tanto, a CPT passou a reunir fontes produzidas ou salvaguardadas que consistem em contraprovas factuais da ocorrência de trabalho escravo nas empresas agropecuárias das diferentes regiões do país.
Os esforços da CPT na mobilização de indígenas, quilombolas, trabalhadoras e trabalhadores rurais pela erradicação do trabalho escravo no campo, nas lutas cotidianas pela posse e permanência na terra, na reforma agrária e para que a propriedade tenha um limite, ganham evidência também na sua prática arquivística.
O conjunto de depoimentos colhidos por entidades e instituições do Estado entre 1972 e 2010, depositados nos arquivos da CPT e GPTEC (Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo), e ora publicados no livro Escravidão na Amazônia, constituiu base importante na atuação dos agentes públicos no processo de reconhecimento do crime de trabalho escravo pelo Estado, formulação de políticas públicas de combate e guarda da memória dos trabalhadores.
Nesse último caso, a apropriação dessas memórias assume caráter educativo para mobilização da classe e construção de uma consciência histórica entre as populações vulneráveis à migração para o trabalho escravo.
O livro traz cinco capítulos com um conjunto de depoimentos de vítimas e familiares de escravizados em parte da Amazônia, nas regiões Sul e Sudeste do Pará, apresentados em recortes históricos precisos, 1972 a 1984; 1985 a 1994; 1995 a 2002; e de 2003 a 2010, que dão sentido às mudanças temporais nas ações de mobilização das vítimas, organização das entidades na luta para a erradicação do trabalho escravo no país, como os diferentes sentidos dado à problemática pelo Estado.
Os depoimentos, apresentados integralmente na última sessão de cada capítulo, sucedem apresentações prévias que discorrem sobre o contexto histórico de cada período estabelecido. Em seguida são comentadas e sistematizadas as informações extraídas dos depoimentos prestados pelas vítimas, em tópicos, “Quem colheu os depoimentos”; “Quem denunciou”; “O que falaram?”.
A densidade do material documentado evidencia o comprometimento dos autores em dar fundamento à questão abordada como forma de denúncia histórica, ao tempo em que expõem o processo de mobilização desses sujeitos e de como passaram a se organizar e acionar entidades e instituições competentes para denúncias.
Os depoimentos das vítimas de trabalho escravo, que tiveram a identidade pessoal preservada, foram colhidos por diversas entidades e instituições nos diferentes períodos. São elas: CPT (Comissão Pastoral da Terra), Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia – CDVDH, Cartórios e Tabelionatos, Conselhos Tutelares, Ministério do Trabalho e Emprego – PA, Ministério Público Federal, Promotoria Estadual, Polícia Estadual – PA, Polícia Federal – PA, dentre outras.
No primeiro capítulo, Quem colhe os depoimentos, são apresentados os agentes mobilizadores da CPT e CDVDH, os métodos elaborados por esses agentes a partir de suas experiências e diálogos comuns estabelecidos entre essas entidades, que constitui a logística no processo de acolhimento das vítimas, triagem, coleta de depoimentos e mobilização de ações de denúncias. A construção do capítulo tem base em entrevistas realizadas entre março e setembro de 2011 com agentes da CPT de Marabá e Xinguara, no Pará, Araguaína, em Tocantins, e do CDVDH, de Açailândia, no Maranhão.
No segundo capítulo, Tempos Sombrios e o Comércio Perigoso de Gente – 1972 a 1984, os autores discorrem acerca do contexto marcado pelo avanço de uma perspectiva de modernização da Amazônia, discurso reinante desde o século XIX que impõe uma lógica de desenvolvimentismo rural que se desdobrou em conflitos pela terra, trabalho escravo e assassinatos no campo. O capítulo aborda a questão do trabalho escravo no contexto da ditadura iniciada em 1964 com a apresentação de 22 depoimentos de trabalhadores migrantes de regiões diversas.
No capítulo Esperanças Frustradas 1985 – 1994, ganha evidência o processo de denúncia de trabalho escravo em um contexto marcado pelo acirramento de conflitos no campo e pressões dos movimentos sociais diante das insatisfações quanto às pautas da reforma agrária, esperançadas com a abertura política. Nesse período foram coletados 89 depoimentos.
O quarto capítulo, Combate ao trabalho escravo: o início de novas fiscalizações – 1995 a 2002, apresenta o contexto de denúncias que coincide com os dois mandatos do governo FHC. São relatados os avanços dados a partir do reconhecimento do trabalho escravo no país, sob fortes pressões nacional e internacional, e a criação de organismo para erradicação do trabalho escravo. Em meio a avanços e entraves políticos, o número de registros de vítimas foi superior aos períodos anteriores. Ao todo, são apresentados 174 depoimentos de vítimas e familiares colhidos por diferentes entidades e instituições nos estados do Pará, Maranhão, Goiás e Piauí.
No quinto capítulo, Combater ou erradicar o trabalho escravo – 2003 a 2010, os autores apresentam aspectos reveladores ao comparar os oito anos do Governo FHC. A gestão do Governo Lula apresenta como novidade a mudança em relação ao texto do artigo 149 do Código Penal em 2003, e os avanços significativos em números quanto às operações de fiscalização, fazendas fiscalizadas e indenizações de trabalhadores.
Estimulados pelo clima mais favorável do período, entidades da sociedade civil e Estado implementaram diversas medidas para o enfrentamento da problemática do trabalho escravo. Entre elas, as campanhas De olho aberto para não virar escravo e Escravo nem pensar; a constituição de um Cadastro de Empregadores; maior restrição às empresas que constassem na Lista Suja do MTE (Ministério do Trabalho e Previdência); Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo; Comissão de Erradicação do Trabalho Escravo do Tocantins (COETRAE-TO); Plano Estadual pela Erradicação do Trabalho Escravo, no Maranhão; Comitê Estadual de Erradicação e do Aliciamento e de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo, no Piauí; Pacto de Compromisso para Erradicação do Trabalho Escravo, iniciativa do Pará com os governos do Maranhão, Piauí, Bahia, Mato Grosso e Tocantins; aprovação do 2º Plano Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. O período comporta 593 depoimentos, sob guarda do acervo do GPTEC.
O livro disponibiliza um conjunto de documentos raros que expõe as estruturas rurais do Brasil e nos permite ver seus mecanismos históricos de exploração e cerceamento da liberdade dos trabalhadores, acelerados no contexto de expansão do capitalismo dentro dos moldes do “milagre econômico” da ditadura militar, mas que, no campo da História, é possível pensar o trabalho escravo em uma perspectiva mais complexa, visto que o trabalho escravo coexistiu com o trabalho escravo legal.
A outra questão que permeia a obra diz respeito às migrações. Os trabalhadores resgatados em condição de trabalho escravo na região amazônica são comumente migrantes temporários de outros Estados e regiões. Nesse caso, é preciso considerar que o fenômeno une regiões que também estão no alvo da modernização do capitalismo no campo, visto que não necessariamente a migração se faz devido às condições de pobreza da região de origem em detrimento da região de destino, mas que encontra vantagem na possibilidade de controle desses trabalhadores.
A expansão do setor agroindustrial nas regiões de fronteira agrícolas se deu em resposta a um modelo de desenvolvimentismo implementado na região amazônica na ditadura militar. Foram escancaradas as contradições próprias da modernidade exaltada pela lógica do grande capital que, segundo José de Souza Martins, impõe um tipo de relação de trabalho “socialmente irracional e anticapitalista”. Por tudo isso, A Escravidão na Amazônia reconstrói um fragmento da história da exploração no trabalho rural no Brasil com usos de trabalho escravo e alarga possibilidades de construção de ferramentas de lutas sociais de combate à desigualdade, violência e injustiça, que perpassam os interesses de diferentes áreas de conhecimento.
Ademais, a divulgação do conjunto de depoimentos das vítimas do trabalho escravo na contemporaneidade os coloca em evidência como sujeitos que se reconhecem socialmente, e permite contribuir na elucidação das facetas históricas da elite agrária do país.
ReferênciasCristiana Costa da Rocha é doutora em História Social – UFF; Professora Adjunta do Curso de História da UESPI – Campus Poeta Torquato Neto e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Sociedade e Cultura – PPGSC/UESPI; [email protected]