As marcas da escravidão em anúncios de fuga no Amazonas
[RESUMO]Como os anúncios de fuga do século XIX ajudam a identificar o perfil da população negra que vivia no Amazonas? O autor demonstra a forte presença de uma hierarquia social na sociedade amazonense oitocentista, marcada pela experiência do cativeiro por parte de populações escravizadas e seus descendentes. A partir de elementos vinculados à história da saúde e de categorias de análise de Márcia Amantino, artigo descreve marcas e condições físicas dos trabalhadores escravos da Província.
Vários historiadores, Lilia Schwarcz entre eles, já ressaltaram a relevância dos anúncios de fuga de pessoas escravizadas para reconstituir as características — físicas e psicológicas — dessa população negra que reside no Brasil. Helena Brandão afirma que é consenso o caráter documental dos anúncios. Segundo a autora, os anúncios retratam um universo dos objetos e preocupações de um determinado grupo social de uma época.
Gilberto Freyre, em “Os escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX”, de 2010, declara que as “retóricas” presentes nos textos dos jornais descreve e identifica figuras humanas pelos seus traços somáticos e também psíquicos. Destaca que os anúncios “(…) registram, em vários casos, em corpos de escravos, marcas das chamadas de ‘nação’, isto é, de tribos e, por conseguinte, identificadora de predominâncias de característicos psicossomáticos.”
Os anúncios são aproveitados para a retirada de dados a partir de seu lado mais factual. É o que diz Schwarcz, em “Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX” (2008), em relação à existência de um perfil do escravo fugitivo na então Província de São Paulo: “(…) a maioria dos indivíduos que recorriam à fuga nesse momento pertence ao sexo masculino, estava localizada na faixa etária adulta (15 a 40 anos) e em geral trabalhava na lavoura.”.
Os anúncios são como uma fotografia da época, diz Freyre, na medida em que se pode tecer comentários a respeito da população escrava por meio das descrições das fugas.
Márcia Amantino afirma que a utilização dos anúncios permite uma visão do universo escravista da sociedade da época, mas alerta que esse recurso deve ser visto sempre como uma amostragem, longe de ser um dado absoluto.
Até a década de 1880, grande parte dos periódicos possuíam anúncios de fuga de escravos. “O cativo aparecia então vinculado a todo tipo de transação econômica: compra, venda, aluguel, leilão, seguro, fugas, testamentos (…)”, diz Schwarcz. Os anúncios de fuga veiculavam uma imagem ou discurso dominante, mesmo não sendo hegemônico, a respeito dos escravos.
No Jornal Estrela do Amazonas, podemos observar um aviso de compra de escravos, para exemplificar o descrito por Lilia Schwarcz em relação a Província de São Paulo. Para a Província do Amazonas, o anúncio do jornal assinala:
Na loja de Leonardo Ferreira Marques, tem para vender Cal de Sarnamby de superior qualidade a 1:500 réis cada alqueire, assim como tem grande porção de Cal de pedra a preço cômodo: Igualmente compra escravos, e escravas de 18 à 30 annos de idade.”. (Jornal Estrela do Amazonas. 7/6/1854)
O conteúdo que compunha esses anúncios de fuga obedecia normalmente a uma ordem, com o nome do anunciante destacado no início ou no final, nome do cativo e suas características “físicas e morais”, lembra Lilia Schwarcz. No Jornal O Catechista, temos um exemplo do que constituía o corpo textual de um anúncio, podemos afirmar que a estrutura era muito similar ao descrito por Lilia Schwarcz:
Antonio José Lopes Braga, abaixo assignado, (…) tinha, á cerca de 2 annos, em fuga um escravo de nome Tristão, de idade de 25 annos, pouco mais ou menos, cor mulato atauyado, cabellos meio cresppo, altura regular, conta que vagando pelo districto de Silves; o annunciante roga á todas as autoridades a captura do dito escravo, mandado-o entregar Somanlu, ano 14, n. 1, jan./jun. 2014 8 Tenner Inauhiny de Abreu aqui em Manáos, ao mesmo annnunciante (Jornal O Catechista 3/12/1870)
A estrutura também foi apontada no livro de Marcia Amantino para anúncios no Jornal do Commercio. Helena Brandão também afirma em seu livro (p. 700) que havia recorrência de algumas características:
“A população escrava mais frequente que aparecia nesses anúncios era constituída a) por homens que constituíam a maioria do contingente escravo pelo trabalho pesado que deveriam executar; (…) b) por adultos entre 20 e 35 anos por serem a força de trabalho mais produtiva.”
Gilberto Freyre escreveu que os anúncios permitiam o contato com os escravos, e não com uma “multidão de anônimos”. Na maioria dos anúncios estava destacado o nome cristão do cativo. Nesse sentido, segundo o autor, “Distinguindo, portanto, como pessoa, do puro animal […]”. Helena Brandão discorda e diz que são discursos a respeito de um “[…] imenso contingente de anônimos de Marias, Joaquim, Beneditos, Franciscos […]”, que eram identificados a partir dos sinais que tinham no corpo. Ou seja: a identidade dos escravos, para a autora, era substituída pela sinalidade:
“(…) o sinal é inerte, e só serve para ser reconhecido; transferindo esses conceitos para o nosso caso, o escravo, enquanto objeto, não é lido pelo agente desse discurso dominador como pessoa de uma interlocução, mas como mercadoria, elemento de transação comercial, investimento para obtenção do lucro e o que o distingue dos outros são as marcas do corpo.”.
Gilberto Freyre descreve as deformações nos corpos dos escravos e avalia que em vários casos era impossível deduzir a origem dos sinais — acidente de trabalho, castigos ou luto ritual.
Como detalhado pelo autor, no Jornal Estrela do Amazonas de 1855 há um anúncio sobre a fuga de um escravo que destacamos aqui:
Fugio ao abaixo assignado o seu escravo Domingos, criolo de 35 annos de idade, natural do Piauhy, que tem um dedo aleijado da mão esquerda e uma cicatriz n’uma sombrancelha; é calado tem pés largos e pernas grossas. Quem o entregar nesta capital ao Sr. Alfredo Sergio Ferreira, em Cudajaz ao major José Manoel da Rocha Thury e ao abaixo assignado em sua residência terá a gratificação de 50$000. (Jornal Amazonas. 22/01/1875).
Percebe-se no texto que o escravo Domingos era identificado pelas marcas mais evidentes: um dedo ausente na mão e uma cicatriz na face. Não é possível, no entanto, entender a causa, como pontua Freyre.
Na “Falla” do então presidente da Província Angelo Thomaz do Amaral, dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em 1857 a respeito das internações na Enfermaria de São Vicente (entre janeiro e agosto 1857), foram registrados 24 casos de “Castigos” dentre os 159 casos atendidos no local.
Índice considerável, apesar dos ditos castigos não serem aplicados exclusivamente aos escravos. Segundo o mesmo documento, dos 58 óbitos ocorridos no mesmo período, 4 foram de escravos.
No relatório do ano seguinte, apresentado no início da sessão da Assembleia, de agosto de 1857 a julho de 1858 aparecem 11 casos de castigos, agora com discriminação, aplicados a militares. No Jornal Estrela do Amazonas temos o registro de um anúncio de fuga que descreve marcas de castigo sofridos pelo escravo:
No fim do mês de maio do corrente anno fugio ao abaixo assignado da Villa de silves o seu escravo por nome Pedro, com os signaes seguintes cor preto retinto, olhos pretos, tem signal nas costas de ser castigado, baixo, cheio de corpo, tem 35 annos pouco mais ou menos: foi escravo da falecida D. Maria Ignacia Rapozo, de Cametá (Jornal Estrela do Amazonas, 25/07/1855)
Amantino utiliza-se de duas estratégias para obter um panorama das condições físicas dos escravos fugidos. Uma é a análise das características físicas dos escravos fugidos a partir da descrição feita pelos senhores.
Neste caso a autora destaca algumas destas características citadas: marcas de castigos, corte de cabelos, marcas étnicas, falta ou desgaste de dentes, entre outras. A segunda é relativa à saúde do escravo, de acordo com a descrição de problemas físicos conforme o saber médico ou popular da época.
Em uma fuga coletiva, um dos escravos apresentava sinais de castigos, conforme podemos atestar:
“Outro He mulato atapoiado,terá 25 Annos chamado Aprigio he padeiro também Le alguma cousa, he alto tem falta de hum ou dois dentes na frente e alguns signaes nas costas de castigo que sofreo; […]” (Jornal Estrela do Amazonas. 3/3/1858).
Em outro anúncio destacam-se também marcas de castigos:
[…] Do alferes Miguel Gabriel Baptista Morador no lago grande de villa Franca, ou do sellé, comarca de Santarem, fugio o seu escravo Fidelis,Idade 19 annos, baixo, grosso do corpo, Dentes podres, sem que falta d’algum na frente; falla pouco, anda vagaroso; tem as nadegas surradas, e na perna esquerda, para a parte de dentro, e 3 dedos à cima do Tornosello, uma picada de arraia cicatrisada é molato. (Jornal Estrela do Amazonas. 16/1/1856)
Diz Amantino que, para analisar as patologias dos fugitivos, foi necessário recorrer à medicina. A autora destaca que o auxílio da medicina e a utilização de um instrumental de análise de dados sobre as condições patológicas apresentadas pela população escrava levaram em conta tanto os conhecimentos médicos do século XIX quanto o saber leigo.
A autora destaca dois enfoques nesse instrumental: aspectos patológicos e aspectos etiológicos. Em ambos o objetivo é recuperar o maior número possível de informações fornecidas pela fonte.
Em relação aos aspectos patológicos, Amantino afirma que estes “(…) referem-se às informações sobre a condição patológica ou enfermidade apresentada pelos escravos, que poderia ser de natureza carencial, infectocontagiosa, traumática, tumoral, reumática, psicossocial, má-formação ou disfunção orgânica.” (p. 1382).
Sobre os aspectos etiológicos, classifica-os da seguinte maneira: “(…) relacionam-se com o agente causador da patologia, quando este puder ser especificamente identificado, como no caso de queimaduras, infecções por certo tipo de vírus, bactérias, parasitas e outros.”
Ainda segundo a autora, os anúncios na imprensa eram pensados para identificar os trabalhadores escravos fugitivos, o que deixa de fora os escravos que não haviam fugido e a população livre da época. Outro limitador é a linguagem popular, que reduz a precisão de patologias e muda sentidos.
Periódicos e Anúncios
Foram catalogados 61 anúncios de fuga após pesquisas nos acervos do Centro de Documentação e Apoio à pesquisa (Cendap) do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), do Centro Cultural Povos da Amazônia (CCPA) e do Museu Amazônico.
Dos periódicos listados no Anexo 1, os seguintes tiveram em suas coleções anúncios de fuga: Estrella do Amazonas — 1854 a 1862, O Catechista — 1863 a 1871, Jornal do Rio Negro – 1867, Commercio do Amazonas – 1870 a 1875, A Província – 1879, Jornal do Amazonas — 1874- 1882, Itacoatiara — 1874 e Amazonas 1866 — 1877.
O Jornal Estrella do Amazonas caracteriza-se por ser um semanário. Seu primeiro número circulou em janeiro de 1852, em substituição ao jornal “5 de setembro” (segundo a obra, este último foi o primeiro jornal da Província.). As informações estão em “Cem Anos de Imprensa no Amazonas”, organizado por Francisco Jorge dos Santos e publicada em 1990. O nome Estrella do Amazonas é explicado no próprio jornal no edital do nº 1:
[…] havendo o patriotismo dos representantes da nação presenteado o povo amazonense com a Lei nº 582 de 5 de setembro de 1850, tomanmol-a para título do nosso periódico; mas agora que, com a posse do exmo. Sr. Presidente Aranha e a instalallação da província, uma nova estrela apareceu no diadema imperial, para sem inveja das demais enriquecel-o, entendemos de ver mudar o título desta folha para o de Estrella do Amazonas (Santos, 1990, p. 90).
Seu primeiro diretor foi Manoel da Silva Ramos, que em 1857 passou a direção do jornal ao seu irmão Francisco José da Silva Ramos. Após a sua morte, assumiu Pedro Celestino da Silva Ramos em 1865 a direção do Estrella. Seu impressor seria Olympio Sinfrônio da Silva Ramos, depois substituído por Manoel José Zuany de Azevedo.
Em 1866, a tipografia foi adquirida por Antonio da Cunha Mendes, que mudou o título do veículo para “Amazonas”. O Jornal O Catechista, ainda com informações de “Cem Anos de Imprensa no Amazonas”, teve grande influência literária em seu tempo, sendo seu primeiro número de março de 1862. Publicava editoriais, Atas de Assembléia Legislativa Provincial, Atas Paroquiais, Notas do Juiz de direito da Capital e avisos da Tesouraria Provincial.
O Jornal Amazonas, circulou em Manaus pela primeira vez em julho de 1866, sendo que em abril de 1874 passa a ser editado três vezes por semana. Começou a circular na cidade em substituição ao Estrella do Amazonas. Em janeiro de 1873 começa a ter publicações diárias.
Já o Jornal do Amazonas, circulou na cidade a partir de abril de 1875, sendo o primeiro a definir sua posição frente a Proclamação da República, de acordo com a obra Cem Anos de Imprensa no Amazonas. Sofreu durante o período de 1887 a 1888 várias interrupções.
O que indicavam os anúncios
Dados de inventários post mortem do período de 1790 a 1830 permitiram a Manolo Florentino fazer uma análise sobre a população escrava no Rio de Janeiro, chegando à conclusão, em 1997, de que eram predominantes os adultos. O levantamento foi publicado no livro “Em costas negras. Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX”.
Para a Província do Amazonas, como podemos verificar nos dados coletados para os anúncios, conforme a tabela 1, 79% dos escravos fugidos eram do sexo masculino. Se considerarmos os dados relacionados à taxa de masculinos em relação aos dados estatísticos de 1848—1849, em que escravos negros somavam 710 indivíduos, teríamos, de acordo com Patrícia Sampaio, uma taxa de masculinidade de 151,14.
Para os anúncios de fuga, tal taxa seria de 369,23. Ainda de acordo com a autora, para este período e entre a população adulta livre, a razão de pessoas masculinas é de 98,47. Tais dados, confrontados com as estatísticas, demonstram haver entre a população escrava dos anúncios, um desequilíbrio em relação à quantidade de homens quando comparada com a de mulheres.
Em relação às faixas etárias, Manolo Florentino divide as idades em Infantes (0 a 14 anos), Adultos (15 a 49) e Idosos (50 anos ou mais). Sampaio afirma que, utilizando a divisão etária, ainda a respeito dos dados de 1848-1849, os menores entre a população livre representam 44%, entre os escravos, 39,5%.
Utilizando-se dos dados referentes ao levantamento de 1856, a autora afirma que a população da Província era de 42.185 pessoas. A população escrava correspondia a 2% deste total, sendo a razão de pessoas do sexo masculino de 108,92 entre os escravos. Conforme assinala a autora, a população escrava cresceu aproximadamente 20%.
De acordo com os dados apresentados por Patrícia Sampaio, na Província do Amazonas, de acordo com os dados estatísticos de 1856, a principal característica da população era ser bastante jovem — mais de 42% da população era composta por menores.
Ao contrário do quadro apresentado para a população da Província por Sampaio, podemos observar na tabela 2 que, nos anúncios de fuga, 5,71% dos homens são classificados como infantes, enquanto 94,29% são classificados como adultos. Entre as mulheres, 100% das escravas em fuga podem ser classificadas como adultas. Dos 61 anúncios de fuga, 35 apresentavam o dado a respeito da idade do escravo fugido, em relação aos homens e 6 em relação às mulheres.
Em Fios de Ariadne, Patricia Sampaio destaca que o Recenseamento Geral de 1872 apresenta a categoria cor. Conforme a autora, foram identificados na Província do Amazonas 19,5% de brancos, 13% de pardos, 3,5% de negros e 64% de caboclos.
Na tabela 3, observamos a presença das seguintes classificações de cor existentes entre os anúncios de fuga na época: Cafuza, Criola, Mulata, Parda e Preta. Entre os homens, um equilíbrio entre os percentuais de cor: cafuza (22,22%), Mulata (36,12%) e Preta (22,22%). Entre as mulheres há predominância de cor preta (66,68%), seguida pela cor mulata (16,66%).
Dos 61 anúncios de fuga, apenas 11 (18%) não têm quaisquer informações de sinais característicos, contra os outros 50 anúncios (82%), que possuem algum tipo de descrição.
Em relação a estatura, conforme podemos observar na tabela 4, 28 anúncios apresentavam a estatura declarada do escravo ou escrava fugida. Destes declarados como baixos ou de estatura regular, respectivamente 35, 71% ou 10 ocorrências em cada; 8 anúncios ou 28,58% referindo-se à estatura do escravo ou escrava como alta.
Sobre a compleição física, na tabela 5 podemos observar que, entre os 61 anúncios, 22 apresentavam as seguintes classificações a respeito do porte físico do escravo ou escrava em fuga: magro foi citado 45,46% ou dez ocorrências, gordo 31,82% ou sete ocorrências, e “bem figurado” 22,72% ou cinco escravos.
Em relação aos sinais característicos das pessoas escravizadas, podemos estabelecer uma divisão entre as marcas dos membros (superiores e inferiores), da cabeça e do tronco. A partir das descrições é possível fazer algumas inferências sobre um perfil.
Em relação aos membros superiores, os termos mais frequentes são: “cicatriz no braço esquerdo”; “Ferida no ombro esquerdo”; “Marcas de feridas nos cotovelo”; “Defeito nas unhas”; “Aleijado da Mão esquerda”; “Dedo aleijado da Mão esquerda”.
Quanto aos membros inferiores, temos as seguintes descrições físicas: “defeito no dedo dos pés”; “perna esquerda para dentro”; “picada de arraia no tornozelo”; “cambaio das pernas”; “perna quebrada”; “zanfeto das pernas”; “Cicatriz no joelho direito”; “Coxo da perna direita” “Dedos dos pés defeituosos”; “Cambaio para o interior das pernas”.
No tronco os anúncios destacam principalmente as marcas de castigo nas costas e nas nádegas, além de uma alusão à fratura na coluna.
Na cabeça encontramos casos de “cotilada na sobrancelha”; “cicatriz na sobrancelha; “lombinho sobre o olho esquerdo”; “Cicatriz por tiro na face direita”; “beiço partido por coice de cavalo”; “cicatriz de marcação da palavra escravo em língua geral”; “Cicatriz de golpe sob um dos olhos” “Cicatriz na cabeça”; “cicatriz ao comprido do rosto”; “Ferida no nó da garganta”; “Fístula no queixo”, “cicatriz na sobrancelha”.
Márcia Amantino, ao analisar patologias e descrições da anatomia humana, menciona a predominância de detalhamento de lesões nos membros superiores e inferiores e na cabeça. Entre os 61 anúncios, 12 fazem alusão direta aos dentes.
A respeito das alterações dentárias, Gilberto Freyre destaca que sobre os dentes limados ou extraídos pode-se conjecturar a respeito da procedência dos cativos. No Jornal O Catechista, um dos anúncios descreve “dentes limados” por parte do escravo fugido:
Na noite de 29 para 30 de agosto passado, fugio a Joaquim Pinto das Neves, o seu escravo de nome José, com os signaes seguintes; mulato claro, idade 22 anos pouco mais ou menos, dentes limados cabelos anellados estatura regular, tem um sinal de ferida sobre o nó da garganta, e outra no hombro esquerdo, sabe ler e escrever (…) protesta-se contra quem lhe der couto (Jornal O Catechista. 3/10/1863)
Uma história em marcas
Para quem percorria os caminhos da Província do Amazonas, era certeza cruzar com escravos e seus descendentes. Desnudar estes caminhos por meio dos periódicos e anúncios de fuga é conhecer um pouco das marcas que a escravidão deixou nos corpos de populações escravizadas.
O tema da saúde dos escravos é novo nos debates historiográficos regionais, principalmente no Amazonas, onde novas pesquisas tem vencido longevo silencio a respeito da presença dos escravos na Província.
Compreender que a descrição física, de saúde e das marcas nos anúncios de fuga representam aspectos relevantes na caracterização dos escravos é revelar aspectos inerentes a uma sociedade fortemente marcada por hierarquias e influenciada pelas ideias racistas próprias do século XIX, quando a cidadania era oposta à própria “natureza” dos escravos e de seus descendentes.
Por trás de descrições de marcas e cicatrizes estão ideias biologizantes. Nelas, as pessoas escravizadas são pouco mais que propriedade, mas não deixam de ser caracterizadas como trabalhadores, como mão-de-obra importante na Província. Logo, sua saúde — ou a falta dela — causa prejuízo ou lucro aos senhores escravistas.
Tenner Inauhiny de Abreu é mestre em História Social e professor da Universidade do Estado do Amazonas em Tefé, no Amazonas.
Imagem em destaque: anúncio de fuga de escravo de Manaus, 1987/Reprodução