Jotabê Medeiros

Escritor e repórter, trabalhou como jornalista na Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Veja SP e CartaCapital. Participou de diversas coletâneas e publicou vários livros, entre eles, Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (2019), finalista do Prêmio Jabuti.

 

Resenha: Enquanto a onça não comer a Lua, viveremos

A restauração literária do mito fundacional dos Tupinambá por Alberto Mussa, no livro 'Meu Destino é Ser Onça', alcança uma autonomia poética de potência universal

Onça pintada olhando diretamente para a câmera com a logo do Pensando a Amazônia pela Literatura ao lado.
Onça pintada olhando diretamente para a câmera. Foto: Ian Lindsay via Pixabay
Onça pintada olhando diretamente para a câmera com a logo do Pensando a Amazônia pela Literatura ao lado.

Foto: Ian Lindsay/ Pixabay

O livro Meu Destino é Ser Onça (Civilização Brasileira), escrito pelo carioca Alberto Mussa e publicado em 2009, levou 15 anos para ser descoberto pelas grandes alegorias nacionais, mas em fevereiro deste ano emergiu absoluto em luxo e fantasia, tornando-se o combustível central da narrativa que a escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, representante de Duque de Caxias no Grupo Especial do Rio de Janeiro, levou para a Sapucaí. Com o enredo “Nosso destino é ser onça”, os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad levaram à Avenida o mito Tupinambá de criação do mundo, baseados na matéria-prima da narrativa de Mussa.

Do Carnaval da Grande Rio, o que ficou marcado mesmo para o futuro foi a portentosa performance da atriz Paolla Oliveira com sua “transmutação” em onça ao vivo. Porém, se o circunstante for um pouco mais curioso, vai descobrir que os alicerces daquela sedução felina provinham de um livro extraordinário. Precioso exemplar de ensaio, pesquisa de interpretação histórica, prosa, poesia, livro de filosofia, tese antropológica e ficção, Meu destino é ser onça representa, apesar das modestas 200 páginas, um colossal esforço de interpretação da grande vocação nacional. Aquela mesma expressa pelo Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade (ou Manifesto Canibal, ou ainda Manifesto Canibalista).

“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”, escreveu Oswald de Andrade.

Alberto Mussa foi atrás de saber o que fundamentava o amálgama antropófago exaltado por Oswald. “O mito dos tupinambá — que chamei, não por acaso, Meu destino é ser onça — é fundamentalmente uma exaltação aos valores canibais. Vou tentar explicar por quê”, detalha Mussa, já no posfácio denominado Teoria, que explica o documento da Cosmogonia original, de que é feita a essência de seu livro.

O epicentro dessa revelação começa com André Thevet, um frade franciscano francês integrado à expedição de Villegagnon que visitou o Brasil em 1555-1556, e ao esforço francês de fundar uma colônia francesa na entrada da Baía de Guanabara. Thevet depois publicou suas ricas observações nas obras As Singularidades da França Antártica (1557) e na Cosmografia Universal (1575). “Esse texto — simplesmente fundamental para o conhecimento do nosso passado — contém o mais extenso registro da mitologia tupinambá”, assinalou Alberto Mussa, cujo reconhecimento do trabalho (e das vicissitudes) do frade se estende aos seus anfitriões da Nova Terra. “É provável que Thevet tenha tido mais de um informante indígena; mas é certo que Cunhambebe estava entre eles. Assim, o legendário tuxaua não deve ser lembrado apenas como um grande guerreiro, mas também como um dos nossos mais importantes intelectuais”.

Após estudar intensamente os textos de Thevet e os principais relatos sobre a cosmogonia dos indígenas brasileiros recolhidos pelos viajantes estrangeiros, Mussa se deteve nos intestinos da história: a forma como nossos antepassados se tornaram canibais, os motivos cósmicos da antropofogia e, posteriormente, a edificação do imaginário do horror ao canibalismo (e sua equiparação à barbárie).

A construção da mitologia fundacional indígena é, malfadada a comparação, semelhante à construção de diversas outras mitologias, como a cristã, judaica e islâmica. “Têm a cabeça cheia de tolices desse tipo. A única explicação que encontram para elas é que o próprio Grande Caraíba lhes teria deixado tais ensinamentos, conforme lhes contam pajés e curandeiros”, escreveu Thevet sobre os indígenas brasileiros, como se descendesse de crenças muito distintas daquela.

Os mitos de culturas diversas quase se roçam enquanto se constrói a hierarquização das crenças. Assim, Caim e Abel não parecem nem um pouco distantes de Tamanduaré e Guairicuité. “Eles acreditam que nessa inundação todos os homens e todas os animais se afogaram, exceto os dois irmãos e suas mulheres, dos quais saíram dois diversos povos após o dilúvio, nomeados tobaceara, sobrenomeados tupinambá, e os tabajara guaianá, sobrenomeados temiminó, os quais estão em discórdia e guerra perpétua”.

O nó central que tem “autorizado” a classificação da cultura indígena, ao longo da História, como “selvagem” por artífices das outras mitologias, é justamente o que se desenvolve a partir dessa divisão: a antropofagia, o canibalismo, marca que age como se fosse uma cisma civilizacional.

“Tomei imensas liberdades: corrigi, quando inteligíveis, as transcrições do tupi; ou traduzi do próprio tupi. Eliminei do texto as transcrições absolutamente ininteligíveis, tentando preservar, no entanto, o sentido que Thevet lhes deu. Quando a tradução direta do francês ficava estranha, complicada demais ou mesmo incompreensível, adotei uma versão mais livre, cortando ou introduzindo vocábulos, para o bem da fluência e da clareza. É necessário advertir que traduzi apenas os excertos relevantes para o meu assunto. Para não encher o texto com inúmeras sequências de três pontinhos, não indiquei as passagens omitidas.”

O que o leitor pode esperar de uma reinterpretação desse calibre? “Alguma imperfeição deve ter insinuado no Velho o desejo de criar o céu”, diz o autor sobre a parte da narrativa que se equivale ao Gênesis bíblico. Descobrimos então que houve um Deus inaugural das mitologias indígenas nacionais, e que ele pouco se distingue da ideia do Deus ocidental — e essa distinção se dá justamente pelo ritmo, pelo som, pela “literatura” mitológica propriamente dita, e pelo envolvimento desse Deus com sua obra. “Achou tão bela essa nova criação que quis morar nela”.

A narrativa de Mussa é construída com erudição, pesquisa e um notável raciocínio dedutivo, com o qual preenche as lacunas das mediações catequizantes do frade francês. “Pessoas que não vou denunciar me acusaram de fraude. Porque o ‘texto tupi’ — que eu dizia ter restaurado — nunca tinha sido escrito, nunca tinha sido texto, na estrita acepção do termo. É, no fundo, um argumento tolo: o texto tupi não existiu, mas poderia ter existido”. Seu embate pelo “lugar de fala” se revela até mesmo nos dados estatísticos que esgrime no prefácio do livro.

Mussa vai até os resquícios póstumos para refazer a narrativa, lembrando que, ao morrer, em 1592, Thevet deixou inédito um manuscrito intitulado História de André Thevet Angoumoisin, cosmógrafo do rei, relato de duas viagens por ele feitas às Índias Austrais e Ocidentais. “O que os estudiosos estranham é o fato de nunca ter Thevet mencionado antes essa segunda viagem, aliás primeira, supostamente feita em 1550. Assim, muitos a consideram falsa”.

Entretanto, Mussa não descarta o último livro como fonte. “Embora reproduza, com algumas variantes, quase todo o texto da Cosmografia, é nessa obra que Thevet registra pela primeira vez uma série de cerimônias do rito canibal; e com uma riqueza de detalhes — em muitos casos coincidentes com outros testemunhos — que não podemos considerá-las fantasiosas”.

Ao eleger as pulsões literárias de relatos ancestrais como elemento condutor de sua obra, Alberto Mussa procura a mesma eternidade poética, para dar um exemplo, que acompanha há 140 anos as palavras de Walt Whitman ou há quase 200 anos as visões de William Blake. “Ainda que Thevet tenha mentido, ao referir duas viagens em vez de uma, o conteúdo do que viu é o que nos interessa. Não está isento de erros, evidentemente, como nenhum de nós. Mas é, disparado, o melhor de todos os cronistas”.

A equiparação, na nova edição, do relato reencenado por Mussa e os apontamentos moralizantes de Thevet, faz com que tenhamos elementos para avaliar o impacto da atitude etnocêntrica — cuja couraça é quase indestrutível, mas que abre espaço para pontuações como essa: “E para que vocês saibam que esses selvagens não são de todo tão imbecis — a ponto de a natureza não lhes ter dado nenhuma inteligência para discorrerem sobre causas naturais — dizem eles que o mar é assim tão amargo e salgado, como nós o provamos, porque a Terra, estando reduzida a cinzas, pela combustão que havia feito o fogo enviado pelo Velho, provocou esse mau paladar nessa grande quantidade de paranã e no mar corrente ao redor da Terra”, escreve o frade franciscano.

A violência dos atos canibais não é amenizada, mas sua incidência e naturalidade mostram que a visão dos Tupinambá daqueles rituais era parte indissociável da visão que os acomodava no mundo — essencialmente, a ideia de que o homem não se diferencia da natureza de onde provém. “É importante insistir aqui num detalhe: o destino do tupinambá era ser onça, era ser canibal, porque já não era possível atingir a terra-sem-mal em vida”.

Meu Destino é Ser Onça dança em volta das histórias de como se explica o nascimento de uma saracura ou de uma estrela, o que origina o ronco do trovão e os relâmpagos, como se alcança a fertilidade e como se faz o fogo. O mito nordestino de Sumé, que virou culto pop, é revigorado com uma nova coreografia e sentido mítico. O alcance da narrativa fundacional passa a ser universal e autônomo e a tentar explicar a mais envergonhada característica nacional, essa que é cantada do modernismo ao rock de Raul Seixas:

Disse: o prato mais caro do melhor banquete
É o que se come cabeça de gente que pensa
E os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam

Alberto Mussa é escritor e também tradutor, tendo conquistado prêmios literários como o Casa de Las Américas e o Machado de Assis. Sua obra já foi publicada em 17 países e recebeu traduções para mais de 15 idiomas.

“A história não é boa nem má — parece dizer-nos Achebe. Nascemos dela, de seus sofrimentos e remorsos, de seus sonhos e pesadelos”, afirmou Mussa sobre a obra de um colega, o nigeriano Chinua Achebe. Meu Destino é Ser Onça tem sua fundamentação nesse conceito de história, ainda segundo a forma como ele a percebe: uma percepção não-moralizante, ou “amoral”, uma fonte de reflexão sobre a condição humana, não um palco para julgamentos morais, condenações e sentenças, “ainda que isso faça parte do nosso impulso natural em relação a qualquer narrativa”.

Livro: Meu Destino é Ser Onça
Autora: Alberto Mussa
Editora: Civilização Brasileira
Ano: 2009

 

Texto: Jotabê Medeiros
Arte: Fabrício Vinhas
Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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