História de reviravoltas: como surgiu um Modernismo na Amazônia

Pintura colorida que mostra a cena de europeus comandando a construção de Belém por indígenas. No centro da imagem, árvores e um coqueiro se destacam entre um mar de gente carregando materiais de construção, como madeira. Ao fundo, um rio amarronzado, com a outra margem muito ao fundo.
Trajetória do modernismo no norte do Brasil passou por artistas em busca de inovação, no desejo de retomar o passado, trilhar o futuro e valorizar a Amazônia

No início do século XX, o norte do Brasil era um polo de desenvolvimento econômico, cultural e social. A Amazônia brasileira adentrou os anos 1900 na era da borracha, e o ciclo promovido pela valorização do látex atraiu imigrantes e trabalhadores de diferentes lugares do Brasil e de outros países, como a França.

Em 1920, todas as cidades brasileiras com mais de 200.000 habitantes ficavam no norte e no nordeste, explica Aldrin Figueiredo, antropólogo e professor de História na Universidade Federal do Pará (UFPA). “Belém, por exemplo, se desenvolve devido ao boom da borracha. Seu porto é, talvez, o quarto mais importante da América do Sul”, diz.

Em meio a tanto progresso, ideias, como a valorização do cotidiano e do regionalismo, começaram a fervilhar entre intelectuais da região norte, se manifestando na arte e na literatura. Essas ideias são as mesmas que impulsionaram os ideais dos modernistas na Semana de 22, em São Paulo. Ainda assim, quando se trata de Modernismo, o sudeste é visto como o berço do movimento, enquanto a Amazônia costuma ser lembrada por sua representação folclórica em obras como Macunaíma, de Mário de Andrade.

Essa separação de valores vem de uma percepção modernista que define o litoral como “civilizado” e o norte como um lugar ligado à natureza. Os modernistas tomaram para si o desafio de unir o litoral e o norte para criar uma civilização coesa. Como, na maioria dos casos, a história foi retratada por artistas do litoral, a voz da Amazônia não foi ouvida. É o que explica Daniel Faria, mestre e doutor em História, e professor de História na Universidade de Brasília (UnB).

“A Amazônia não vai fazer a sua própria história, ela vai ser incorporada na identidade nacional brasileira a partir do trabalho desses intelectuais do centro-sul. Então há toda essa lógica da tutela. É essa ideia do intelectual redentor, do intelectual que vai redimir as populações”, afirma.

Mesmo com sua voz sendo ignorada, o norte ainda assim falou. As ideias sobre regionalismo, cotidiano e ruptura com a arte europeia exploradas por intelectuais são as raízes do Modernismo na Amazônia. Um dos temas que tiveram grande visibilidade entre os artistas nortistas foi a estética marajoara. O primeiro episódio em que a cerâmica da Ilha de Marajó foi protagonista de um trabalho artístico aconteceu em 1905, com a publicação da obra “A Planta Brasileira”, composta de desenhos aquarelados do pintor e escritor paraense Theodoro Braga.

O tema continuaria presente no modernismo na Amazônia por alguns anos, sendo importante para a valorização do regionalismo. “Desde o final do século XIX, já havia a circulação da pesquisa arqueológica em torno da cultura marajoara, que tem reflexos na produção de artistas como Vicente do Rego Monteiro, Theodoro Braga e Correia Dias”, conta Ana Magalhães, historiadora da arte e diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Vicente do Rego Monteiro e Correia Dias foram outros pintores modernistas cuja produção teve destaque durante o movimento.

Além da estética marajoara explorada nas artes plásticas, a literatura foi um instrumento importante de representação modernista amazônica. No início da década de 1920, no Pará, surgiram a Academia ao Ar Livre e a Academia do Peixe-Frito. Em ambas, artistas, estudiosos e jornalistas se reuniam pela cidade de Belém para conversar sobre os mais diferentes assuntos. Entre os integrantes da primeira estavam os escritores paraenses Abguar Bastos e Clóvis de Gusmão. Entre os da segunda, estavam o escritor paraense Bruno de Menezes e De Campos Ribeiro, escritor maranhense que foi morar no Pará aos quatro anos de idade.

Das prosas destes grupos, acabou sendo criada a Associação dos Novos. Os integrantes da Associação – apelidados posteriormente de Vândalos do Apocalipse – desejavam que houvesse uma quebra com a literatura perfeita do parnasianismo. A tendência da valorização de tradições estéticas do passado, o passadismo, passou a ser combatida.

Os nomes do modernismo da década de 1920, em Belém, desejavam que a arte e a literatura brasileiras buscassem a renovação proposta pelos modernistas no sudeste do país, que incluía a inovação, a visibilidade do cotidiano, o nacionalismo e o regionalismo. A revista Belém Nova – publicada pela primeira vez em 1923 e dirigida pelo próprio Bruno de Menezes – foi um espaço que conteve grande parte dos trabalhos do grupo até 1929.

Também faziam parte da primeira geração de modernistas nortistas: o pintor amazonense Manoel Santiago, os pintores paraenses Ismael Nery e Manoel Pastana, o poeta amazonense Francisco Galvão, os escritores paraenses Eneida de Moraes e Dalcídio Jurandir.

Capa da revista Belém Nova. O papel amarelado tem uma impressão em tons de vermelho de um retrato de uma jovem de cabelos curtos e vestido. Ela sorri para a câmera.

Edição 12 da Revista Belém Nova, disponível no acervo digital da Biblioteca Pública Arthur Vianna

Francisco Galvão e Bruno de Menezes foram os primeiros a publicar manifestos modernistas na Belém Nova, definindo as bases do movimento na capital paraense e sinalizando a importância do regionalismo amazônico, do nacionalismo e da inovação.

“Bruno de Menezes, um poeta negro paraense, é hegemonicamente desconhecido no Sul. Ele era um anarquista que direcionava o discurso para mulheres operárias”, afirma o antropólogo e professor de História na UFPA Aldrin Figueiredo, sobre a temática das obras de Bruno de Menezes.

Retomada do passadismo

O que os Vândalos do Apocalipse, essa geração revolucionária e inovadora, não esperavam era o surgimento da Academia dos Novos em 1943. Indo na direção contrária à do modernismo dos Vândalos, o coletivo artístico retomava as características da literatura clássica, parnasiana. Benedito Nunes, Haroldo Maranhão, Max Martins, Alonso Rocha e Jurandir Bezerra eram alguns dos escritores que costumavam reunir-se na casa das tias de Nunes para confabular o retorno às origens.

“São de uma geração que desconhece o modernismo dos anos 1920. Para eles, a Semana de Arte Moderna era piada. Da primeira geração modernista, eles só respeitavam o Bruno de Menezes”, Figueiredo, da UFPA, contextualiza. Esses jovens se inspiravam em artistas como Olavo Bilac e Machado de Assis e fizeram várias críticas a artistas do modernismo nos moldes paulistas, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.

Como mais uma surpresa dos tempos modernos, a Academia dos Novos passadistas se tornaria a nova geração dos modernistas do norte – com a influência de um de seus integrantes, Max Martins.

O poeta paraense rebelou-se contra as críticas de seus conterrâneos depois de descobrir os feitos e discursos inovadores dos modernistas paulistas em 1922. Seu ato de rebeldia durante um encontro do coletivo de artistas gerou curiosidade entre os membros, que, a partir de então, procuraram compreender o modernismo contra o qual lutaram.

Pouco a pouco, os Novos começaram a se converter e aderir ao movimento modernista. Assim, a Academia dos Novos chegou ao fim.

Capa do Suplemento de Artes e Letras da Folha do Norte. No papel já amarelado, texto ocupa a página inteira ao redor da manchete "Dez poetas paraenses".

O Suplemento de Artes e Letras da Folha do Norte era dirigido por Haroldo Maranhão. Esta edição está disponível no acervo digital da Biblioteca Pública Arthur Vianna

Os recém-modernistas amazônicos começaram a abrir mão do classicismo para encontrar a liberdade estética pregada no modernismo. “Uns mais do que outros passaram a se dedicar ao verso livre, a incorporar as formas coloquiais da linguagem, a valorizar as cenas comuns do cotidiano e mesmo a entrecruzar os ritmos da poesia e da prosa”, descreve Aldrin Figueiredo, em uma publicação sobre a história da Academia dos Novos.

A nova era de literatura e arte produzida pelos ex-integrantes da Academia dos Novos, assim como obras de personalidades modernistas de outros lugares do Brasil, passaram a ser publicadas no Suplemento de Artes e Letras da Folha do Norte, jornal belenense do avô de Haroldo Maranhão.

O que as publicações no Suplemento e na revista Belém Nova mostram é apenas a ponta do iceberg da história complexa e cheia de reviravoltas em torno do Modernismo na Amazônia. A vertente amazônica do movimento foi marcada por artistas e escritores com obras tão modernistas e relevantes quanto as do sudeste. Mesmo que a história tenha sido contada por uma visão excludente, é possível, hoje, dar a visibilidade ao modernismo nortista que o movimento não possuiu antes.

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