Uma Amazônia que se projeta na literatura modernista

A capa do livro Macunaíma, de Mário de Andrade, à esquerda, e do livro Cobra Norato, de Raul Bopp, à direita.
Macunaíma e Cobra Norato são expressão da Amazônia no modernismo; mas refletir por que indígenas são receptáculos de representação é importante, diz o pesquisador Allison Leão.

Examinar o modernismo na e da Amazônia exige tanto considerar a região como tema motriz do movimento estético como relembrar as práticas de vanguarda entre intelectuais, artistas e habitantes amazônidas.

É a avaliação de Allison Leão, coordenador da pós-graduação em letras da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) e pesquisador em Memória Artística e Cultural do estado, sobre o que é necessário para entender como a Amazônia se projetou no modernismo brasileiro.

Essa forma de projeção amazônica, como força motriz do movimento, é marcante nos livros Cobra Norato, de Raul Bopp, e Macunaíma, de Mário de Andrade, ambos elaborados por meio de elementos de culturas indígenas.

Segundo Leão, enquanto a natureza via de regra torna-se uma espécie de maldição para o retrato da Amazônia, esses autores não caem nessa armadilha, pois o interesse naturalista é ultrapassado. Cobra Norato e Macunaíma incorporam aspectos de uma outra cosmovisão.

Na gênese das duas obras está a expedição, com os autores se deslocando de seus lugares físicos e sociais. “Há um despertar sobre a possibilidade de que uma diferença espacial pode significar uma diferença de visão, de modos de ser e de modos de existir”, avalia, completando que em ambos os textos há a tentativa de “ir em direção ao outro” e buscar algo mais simbólico dos modos de ser dos diferentes povos que habitam a região amazônica.

Por isso o apelo ao mito, que é onde as formas concretas do mundo ganham simbologia, sempre além da materialidade, continua Leão. O mito é sintoma de que a cosmovisão desses povos, ao contrário do pensamento ocidental, integra o meio em que se vive e a maneira como se vê o mundo.

Ao mesmo tempo, essas concepções inovadoras que passaram a povoar o imaginário brasileiro sobre a Amazônia desde o modernismo carregam consigo ecos do passado. A prática da expedição – mesmo com uma “visão não-naturalista” – repete o movimento de europeus e viajantes brasileiros que conhecem a Amazônia como um outro mundo no final do século 19 e no início do século 20.

“Os povos indígenas foram vistos por muito tempo como receptáculo de representação. Mas esses povos sempre disseram sobre si mesmos nos seus registros orais, iconográficos, tridimensionais”, acrescenta Leão.

E essa narrativa feita por pessoas de fora causou estranhamento nos habitantes da região. “Essas obras ainda são a perspectiva de um outro. No Amazonas, aconteceu rejeição a tudo a respeito do modernismo porque era como se fosse uma nova forma de colonialismo interno.”

Na visão do pesquisador, a rejeição sem escrúpulos pode ser quase tão problemática quanto retirar impunemente elementos de um acervo cultural sem pensar muito sobre a cosmovisão.

Nesta entrevista ao especial Modernismo na (e da) Amazônia, Allison Leão destaca que somente quando a crítica brasileira conhecer mais a produção literária da própria Amazônia haverá um novo passo na construção de um espelho da região.

Qual foi a interlocução entre a Amazônia e o Modernismo brasileiro em Macunaíma e Cobra Norato? Foi uma contribuição da Amazônia como natureza e inspiração ou como aporte cultural das sociedades da região?
Há duas perspectivas possíveis sobre a Amazônia como tema ou força motriz para o modernismo no Brasil. A primeira é a perspectiva do modernismo central, que emana sobretudo a partir de São Paulo. A segunda é sobre práticas de vanguarda que estariam acontecendo naquele mesmo período na própria Amazônia, entre intelectuais, artistas e habitantes da Amazônia. Na primeira perspectiva, as duas obras que mais catalizaram elementos amazônicos na sua construção são Macunaíma e Cobra Norato. Do ponto de vista de uma produção amazônica, um grande representante de uma prática de vanguarda nos anos 20 foi Bruno de Menezes; um poeta paraense atuante na primeira metade do século 20, com uma obra feita a partir de Belém e com um caráter de aproveitamento de tradições de matrizes africanas, que é algo diferente no bojo do modernismo na primeira década.

A natureza termina sendo uma espécie de maldição para a representação da Amazônia. Desde as primeiras representações externas de europeus no século 16, a Amazônia, como exuberância do ambiente natural, sempre foi um aspecto muito rebatido. Quando se chega no modernismo, esses autores não caem nessa armadilha. Eles ultrapassam o interesse naturalista de uma representação do ambiente natural e incorporam para as obras aspectos de uma outra cosmovisão.

É claro que nessas obras e, principalmente para os povos nativos, essa dicotomia não existe, essa forma categórica de pensar no ocidente. A cosmovisão desses povos é muito integradora entre o meio em que se vive e a maneira como se vê o mundo, como se pensa a origem das coisas, o sentido das coisas, o sentido da própria existência do indivíduo e da comunidade. Em Macunaíma e Cobra Norato, há a tentativa de buscar algo mais simbólico dos modos de ser desses povos. Por isso o apelo ao mito nessas duas obras. É no mito onde as formas concretas do mundo vão ganhar algum tipo de simbologia que está sempre para além da própria materialidade das coisas.

A inspiração dessas duas obras ocorre de uma forma similar ou há diferenças entre elas?
As duas obras têm pelo menos um procedimento em comum: decorrem de um deslocamento, de viagens. Raul Bopp, antes mesmo de se integrar ao grupo dos modernistas e na década de 20, já tinha vivido em Belém e feito viagens por algumas regiões da Amazônia, da qual extraiu a matéria para Cobra Norato. Isso também é verificado em Mário de Andrade. Em 1927, ele fez uma longa viagem pela Amazônia — muito dessa viagem está registrada no Turista Aprendiz. Esses elementos estão incorporados ao Macunaíma, que é uma obra de coletânea de experiência de viagens. A Amazônia, suas representações e seus mitos são um bloco de conteúdos de Macunaíma, mas o livro não se encerra nisso. Além desse deslocamento, há também as leituras de viajantes que também deslocaram pela Amazônia, como Theodor Koch-Grünberg.

Na gênese das duas obras está presente o andamento da viagem, que é mais do que um tema; é uma prática muito antiga de contato: desde europeus e depois viajantes brasileiros que conhecem a Amazônia como um outro mundo no final do século 19 e no início do século 20. Claro que isso gera uma consequência, porque essas obras ainda são a perspectiva de um outro.

De que forma essa inspiração fez a Amazônia ser representada? Como os brasileiros olham para a região?
Como prática e como experiência para o artista, é muito interessante o deslocamento, esse “ir em direção ao outro”. Mas existe todo um conjunto de culturas que está ali com a possibilidade da própria autorrepresentação ainda não explorada. Esses povos têm suas formas de se autorrepresentar não reconhecidas e não assimiladas à circulação cultural mais privilegiada.

A representação feita pelo Outro faz com que a Amazônia seja esquecida no modernismo brasileiro?
O modernismo, especialmente entre os representantes principais deles, é um movimento com uma vontade de ser nacional. Um debate interessante é a divergência entre modernistas e “regionalistas”. Apesar de ter uma existência inicial tão marcada em um lugar específico como São Paulo, cria-se um efeito conforme o modernismo vai se tornando algo mais consolidado, mais reconhecido nos anos 1940 e 1950. Isso termina criando um efeito negativo para uma igualdade entre as regiões do Brasil.

A intelectualidade local pode comprar a ideia de que a representação sobre o próprio lugar precisa seguir o modelo dos anunciadores do “centro”. Ou pode criar uma aversão, que também é uma consequência ruim. Isso aconteceu muito na Amazônia, no sul do Brasil, no Nordeste. Esse movimento de rejeição, de reconhecimento de que aquele autor que está vindo de São Paulo para escrever sobre a minha terra e ameaça ocupar um espaço discursivo que deveria ser ocupado por mim nessa representação no local.

No Amazonas, aconteceu rejeição a tudo a respeito do modernismo porque era como se fosse uma nova forma de colonialismo interno. Isso também é muito problemático, porque esses espaços regionais do Brasil esperaram mais tempo até que grupos de intelectuais vanguardistas passassem a explorar mais a liberdade criadora que, no final das contas, era algo que o modernismo procurava.

E quais as diferenças entre as duas obras?
A colagem é o principal aspecto de Macunaíma que não aparece no Cobra Norato. Essa técnica visual das vanguardas, no início do século 20, e que o Mário de Andrade dá uma versão literária para ela, de ir salpicando historietas, madrinhas, jogos de palavras, adágios, tudo aquilo que ele havia recolhido e reinventado. O que há de novo em Cobra Norato é ser um poema épico que utiliza fontes narrativas ainda pouco exploradas na cultura brasileira até aquele momento. É um épico de culturas tradicionais, ainda não verificadas, não veiculadas. A última grande prática de literatura de caráter épico no Brasil era do século 19. Naquela literatura, o indígena está presente, mas a própria visão de mundo dele, a maneira de contar as coisas, não está figurada ali. É uma novidade do Cobra Norato trazer uma narrativa e um conteúdo que ainda não havia sido veiculado.

Os dois livros têm propostas estéticas diferentes. Não é só pela diferença de gênero, de ser um romance que Mário de Andrade chama de rapsódia. De um lado, um poema épico, do outro um poema narrativo. Essa diversificação de Macunaíma o diferencia muito da “prosa na narrativa” em Cobra Norato.

Como essas obras ajudam a entender a contribuição da Amazônia, não só como uma fonte de inspiração, mas como um expoente cultural?
Quando se olha em retrospectiva a relação da literatura brasileira com a Amazônia, compreende-se melhor os passos que cada uma dessas obras dá dentro desse longo histórico. Há um despertar sobre a possibilidade de que uma diferença espacial pode significar uma diferença de visão, de modos de ser e de modos de existir.

O ponto principal dessa contribuição é que os conteúdos, que vão começar a ser aproveitados da Amazônia para constituição de uma literatura brasileira, precisam passar por um filtro antropológico dos escritores. É preciso ter a visão de que não se vai impunemente a um acervo cultural e se retira elementos de lá sem trazer uma cosmovisão, que precisa ser pensada e processada. Não é uma transferência dessa cosmovisão, mas a maneira que aqueles elementos de uma existência específica são ou não são; qual é o limite de aproveitamento deles antes de se reprocessar a própria visão de mundo do autor ou propor uma nova visão para o público.

Somente quando a crítica brasileira conhecer mais a produção literária da própria Amazônia (sobretudo recentemente quando artistas indígenas passam a integrar esse roteiro de discussão), haverá um novo passo nesse histórico. Nenhuma das duas obras se lança, realmente, a fazer uma representação sobre a Amazônia, mas apenas aproveitar conteúdos conhecidos pelos autores de um ou de outro modo, pela leitura e pelas viagens, para dentro de uma proposta de obra. E esse aproveitamento sempre virá como uma espécie de desvio na representação do mundo, porque são conteúdos construídos por pessoas que pensam de outro jeito.

Qual o papel do indígena nessa inspiração?
O modernismo encontra a Amazônia na figura do indígena, como um terreno de disputas. A antropofagia, como um conceito fundamental do modernismo, decorre da percepção de que está no indígena a origem de uma brasilidade a ser investigada, construída, desconstruída. Nas duas obras, parece que esse reencontro com o indígena é levado para o plano da pesquisa, de encontrar o que havia de mais representativo ou potencialmente plurissemiótico na representação do indígena e de sua cultura, para trazer como conteúdo literário.

Fala-se da produção de quem foi buscar, mas acaba não se falando da produção de quem já estava lá com essa cosmovisão. Existe alguma forma de superar esse paradigma?
Isso acontece com vários grupos. Com mulheres, com pessoas LGBTQIA +. Estamos em um momento em que esses grupos tentam tomar para si esses caminhos da representação. Com os indígenas não foi diferente. Mas é uma coisa curiosa que as poéticas indígenas são, do ponto de vista da circulação literária tradicional, uma novidade. Algo que, de fato, começa no início dos anos 1980, com a publicação de “Antes o mundo não existia: Mitologia dos antigos Desana-Kêhíripõrã” (Dantes, 2019) [livro por Tolamãn Kenhíri e Umúsin Panlõn Kumu]. Só veio a ficar forte agora, de 15 ou 20 anos para cá, vindo de povos diferentes, autores e autoras, artistas de povos diferentes. Isso começa a mudar muito depois da Constituição, mas, sobretudo, depois da promulgação de leis da área da educação, de 2003 e 2008, para o ensino de conteúdos da cultura da história indígena e afro-brasileira. É quando as editoras começam a se interessar por esse material, porque isso vai chegar até as escolas.

Na época em que se teve a discussão do modernismo, da Semana de 22, havia menos interesse na literatura indígena produzida pelos indígenas?
A própria noção de obra produzida pelos indígenas era algo inexistente, mesmo entre os indivíduos mais à frente do seu tempo. No início do século 20, havia alguns estudiosos interessados em registrar a língua, as narrativas, a iconografia desses povos, como Koch-Grünberg, Brandão de Amorim, Barbosa Rodrigues, Ermanno Stradelli. O que eles fizeram foi importante, porque tivemos acesso a como essas narrativas se operaram há um século.

Os povos indígenas foram vistos por muito tempo como receptáculo de representação. Mas esses povos sempre disseram sobre si mesmos nos seus registros orais, iconográficos, tridimensionais. As poéticas dos povos tradicionais do Brasil são coletivas. Tanto que a entrada de artistas indígenas no mercado vem com a necessidade da assinatura individual da obra, embora haja muitas obras construídas e assinadas coletivamente, sobretudo quando são projetos de ensino, [para] constituir material didático. É muito comum que sejam livros ilustrados pelas crianças da comunidade, com narradores, transcritores e um trabalho coletivamente assinado.

Allison Leão é professor de Letras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Co-lidera, com a Profa. Dra. Luciane Páscoa, o Grupo de Pesquisas em Memória Artística e Cultural do Amazonas (MemoCult), que atua nas linhas de pesquisa: “Arquivo, memória e interpretação” e “Teoria, crítica e processos de criação”. No MemoCult dirige a Segunda Oficina Laboratório Editorial, selo da Editora da UEA, além de desenvolver projetos sobre arquivos literários na Amazônia e processos de criação de escritores amazonenses.

 

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