Zé Cláudio & Maria e a ousadia de “Lutar com a Floresta”, por Felipe Milanez

Neste LatitudeCast, Felipe Milanez aborda ecologia política na Amazônia, COP30 e relembra dos defensores ambientais Zé Cláudio e Maria

Felipe Milanez. Arte: Fabrício Vinhas
Felipe Milanez. Arte: Fabrício Vinhas e foto de Marcos Colón
Felipe Milanez. Arte: Fabrício Vinhas

Jornalista, professor e pesquisador Felipe Milanez. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude. Arte: Fabrício Vinhas

José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva eram um casal de castanheiros que vivia em Nova Ipixuna, no Sudeste do Pará. Eles eram também ativistas ambientais, defensores da Floresta Amazônica que lutavam contra o desmatamento ilegal e a exploração desenfreada da região.

No dia 24 de maio de 2011, ambos foram emboscados e assassinados, gerando comoção nacional e internacional. Sobretudo naqueles que, como Zé Cláudio e Maria, trabalham diariamente para proteger a Amazônia. É o caso do entrevistado de hoje, que dedicou parte de seu trabalho e vida para contar a história do casal.

Felipe Milanez é professor da Universidade Federal da Bahia, atuante no conselho latino-americano de Ciências Sociais, onde pesquisa e milita sobre ecologia política. Também é jornalista, documentarista, colunista, inclusive tem alguns textos publicados na Amazônia Latitude. Seu mais novo lançamento é o livro Lutar com a Floresta.

Ele esteve com a gente no V Sialat, no final de abril, em Belém do Pará, onde participou da mesa “Urgências climáticas, agentes presentes no debate Pré-COP 30 e perspectivas em conflito”.

Neste episódio do LatitudeCast, vamos falar com Felipe Milanez sobre a COP30 em Belém, ecologia política, Zé Cláudio e Maria e também sobre seu novo livro.

Confira agora o episódio do LatitudeCast:

Amazônia Latitude: Como a Amazônia se prepara pra receber a COP30 no âmbito da ecologia política?

Felipe Milanez: Obrigado pelo convite. É um prazer estar aqui com vocês conversando. Eu adoro a revista, sigo, acompanho. É uma alegria estar aqui em Belém, nesse evento Sialat, que é um evento muito plural e diverso, internacional, latino-americano, caribenho…[O evento está] promovendo encontros e debates e ressaltando o caráter político das lutas sociais e ambientais na Amazônia.

Eu estou tendo a experiência de ver a efervescência aqui em Belém, na Amazônia, sobre os grandes debates que estão em questão no Brasil hoje. E um deles é o da COP, não é só a COP. A COP é um dos horizontes e eu acho que isso é muito importante que a gente tenha em mente. Porque a COP é um momento muito importante de articulação e pressão nos governos e agências internacionais mas, as militâncias, os movimentos sociais…eles têm uma luta que tem uma temporalidade muito mais longa, anterior à COP e que vai seguir existindo pós-COP.

E conhecendo a atuação desses movimentos, podendo ver a dinâmica atual – super rica, diversa, ocupando novos espaços, – [vejo] que essa COP em Belém pode ser (e eu torço para que seja) uma COP muito diferente das COPs que já existiram. E que [ela] venha mudar as COPs daqui para frente, não pela perspectiva dos governos e dos tratados que vão ser assinados ou [ainda] da COP burocrática, mas daquela COP das lutas. Porque o Pará tem uma história de lutas. Pará é o lugar da Cabanagem, Pará é o lugar de muitos agitos sociais. E essa COP vai passar pelo Pará e ela não vai sair igual como ela vai chegar. Eu acredito nos movimentos.

Falando sobre esses movimentos, existe uma crítica sobre a real motivação política de fazer a COP em Belém. Como a gente se certifica de que ela também ajuda nos movimentos, que ela seja contracolonial e que aconteça fora dos espaços burocráticos do governo ?

Eu imagino que tenha tido uma grande articulação de diferentes forças para fazer a COP em Belém e a principal [delas] tenha sido um imaginário exótico, idealizado e mobilizado pelo capitalismo verde, pelo colonialismo verde, para vender uma Amazônia para negócios do clima e não para lutar contra o sistema que produziu a emergência climática.

Acontece que isso não vai colar em Belém. Isso nunca colou no Pará. Então essa idealização de uma COP que seria forjada para negociar a Amazônia, negociar o clima, eu torço para que ela tenha um outro encaminhamento aqui. Porque, se há uma grande articulação dos cowboys do carbono, dos grandes responsáveis pela tragédia, pelo colapso, pelos capitalistas, pelos financiadores, aqui também [ela] vai se encontrar com as resistências, com os movimentos por justiça ambiental.

A Amazônia é um epicentro das lutas ecológicas no mundo. Ela é fronteira no melhor sentido das fronteiras. A fronteira onde as diferenças se opõem e se articulam. Então a Amazônia é uma fronteira hoje e, nesse sentido, ela é um centro das resistências ao capitalismo e ao colonialismo verde. E eu acredito que essas forças vão utilizar o evento da COP para promover novas articulações, encontros, confluências e lutas inspiradas no Nêgo Bispo; e sair daí outras propostas, outras práticas políticas.

Então a COP foi definida de cima para baixo, mas eu acho que os “debaixo” podem reverter essa situação na COP. Eu acredito nisso. Eu estou vendo que há muitos interesses e movimentos acontecendo e que se terá uma grande ocupação cabana em Belém na época da COP.

Agora saindo um pouquinho da COP e falando especificamente sobre as lutas ecológicas que você mencionou. No seu documentário Toxic Amazon, você fala um pouco sobre José Cláudio e Maria. Também no seu novo livro, “Luta com a Floresta”, você também traz eles. Pode nos contar um pouquinho deles e de como foi esse processo de construir essas obras?

O livro que vai sair agora pela editora Elefante, Lutar com a Floresta: Uma Ecologia Política do Martírio na Amazônia e o Toxic Amazônia, são trabalhos, para mim pessoalmente, muito importantes porque eles me enriqueceram, me transformaram. Mas eles não são trabalhos individuais, são projetos coletivos.

Esse livro é um livro fundamentalmente coletivo porque, desde o início, ele já é um livro com José Cláudio e Maria; com a memória de José Cláudio e Maria que eu consegui documentar, junto com a família de José Cláudio; com o Instituto José Cláudio e Maria; com a Claudelice, que lidera esse Instituto, que é a irmã de José Cláudio; com a Laísa, que é a irmã de Maria, que para mim é uma grande inspiração de vida; com José Batista Afonso e a Comissão Parcional da Terra (CPT). Eu não teria feito nada nesses anos se não fosse por eles, com eles e com também toda a articulação da comunidade da Universidade Federal do Sul e Suldeste do Pará (Unifesspa), sobretudo o professor Evandro Medeiros, que é à quem a Maria dedica o Trabalho de Conclusão de Curso dela.

Esse livro é uma expressão coletiva do pensamento com o qual José Cláudio e Maria lutaram, com essas ideias, [como eles] construíram essas ideias, construíram essas ideias em práxis, ou seja, era a luta que fazia eles imaginarem essas ideias, ressignificarem pessoas que inspiraram eles, como Paulo Freire, Carlos Walter, Porto Gonçalves. E eu faço uma reflexão das ideias das lutas dos defensores ambientais.

Eu tento mostrar como eu aprendi com eles e como, através do meu aprendizado pessoal, outras pessoas possam ler José Cláudio e Maria, seja através da minha mediação, seja, através das suas próprias palavras, pois, o livro traz a íntegra da entrevista deles. E isso é fundamental para a gente entender, hoje, porque o Brasil é um país historicamente violento contra defensores ambientais, [o porquê] dessa violência crescente.

Quando José Cláudio e Maria foram assassinados, não se utilizava essa expressão de “defensores ambientais”. Eles mesmos se identificavam como ambientalistas populares, que era algo muito bonito, porque me fez reimaginar o ambientalismo, diferente daquele ambientalismo que eu tinha acesso, enquanto um homem branco do Sul, vivendo em São Paulo e tendo algum tipo de ideia de ambientalismo – que era muito reduzido daquele que é praticado nas lutas com a floresta.

E os defensores ambientais, eles são ainda identificados pelo número da violência que são vítimas. É como se fossem pessoas individuais, mas não são pessoas individuais, são sujeitos coletivos. As lutas são as lutas comuns pelas coletividades.

E, além desses números terríveis e trágicos dos assassinatos, é muito importante que a gente conheça o pensamento e a luta dessas pessoas, que o martírio tem o sentido do mártir enquanto testemunho, porque esses defensores ambientais testemunharam em sua vida a destruição do planeta.

Nunca foi uma luta para dizer que Cláudio e Maria defenderam o seu lote, era sobre defender o planeta Terra através da defesa que eles faziam da Amazônia. É uma luta que existe em diálogo com a luta de Mãe Bernadette, na Bahia – que eu não conheci, mas que eu conheço a luta através de outras referências, onde eu atuo. E ela foi assassinada também por lutar contra o lixão, por lutar em defesa da mata, do coletivo, dessa comunidade quilombola.

E é uma luta que vem com muita atenção no mundo, desde o assassinato de Chico Mendes, em 1988. O Chico Mendes dizia que ele não queria morrer. A luta dele era uma luta para viver. Isso é importante a gente ter em mente porque a gente tem que salvar todos os defensores que estão em risco.

Depois, a morte do Chico Mendes teve um impacto internacional muito grande. Ainda que a mídia brasileira ignorasse totalmente os seringueiros, a mídia internacional já prestava atenção nos seringueiros. E foi uma publicação no New York Times, póstuma, que fez com que a mídia brasileira passasse a cobrir [o tema].

E eu destaco também o trabalho do Adrian Cowell na época com o Chico Mendes. Mas foi um efeito bumerangue para o Brasil acordar. E, depois, foram criadas as reservas extrativistas. A minha ideia com o livro é que a gente respeite o pensamento dos defensores ambientais que não estão mais aqui entre a gente, mas que a gente [também] respeite o pensamento e a luta dos defensores ambientais que estão vivos. E que a gente evite novas mortes, que a gente lute ao lado dos defensores ambientais, que se promova o mecanismo de salvar suas vidas individuais, principalmente, [sabendo que] só vamos salvar a vida individual e salvar as vidas coletivas, [quando protegermos] os territórios quilombolas, indígenas, o comum em geral. A luta de Zé Cláudio e Maria nos ensina a ter ousadia e coragem de luta.

Você falou que se inspirou no Zé Cláudio porque ele o ensinou uma ética de lutar pelo mundo todo, pelo geral e não só pelo dele, pelo lote dele. Você acredita que a gente consegue espalhar esse pensamento e esse sentimento com um evento, por exemplo, como a COP?

Eu continuo aprendendo com o Zé Cláudio, aprendo muito. Às vezes, eu me sinto acompanhado do Zé Cláudio. Ontem eu tomei um sorvete de castanha aqui em Belém e eu pensava muito nele. [Certa vez] Eu tinha comido um creme de cupuaçu com castanha que a Maria tinha preparado e tinha sido uma delícia. Eu não consigo ver castanha ou uma castanha, que eu sempre lembro do Zé Cláudio. Eu me lembro de frases que ele me dizia. Às vezes, as frases estão soltas. Às vezes, eu vou reinterpretando, reimaginando as frases dele.

Eu acho que isso nos ajuda a valorizar os “Zé Cláudios” que estão vivos aí. A valorizar como o Zé Cláudio segue vivo através de outras lutas e do imaginário, além da sua força espiritual com a floresta – que é [meu objetivo], meu e do Instituto Zé Cláudio e Maria também.

Maria e Zé Cláudio…eles seguem nos nossos corações, nas nossas ideias.

Quando eu conheci o Zé Cláudio e Maria, eu estava num momento difícil pessoal e profissional. Eu vivia como freelancer e tinha sido demitido da National Geographic por conta de uma crítica à revista Veja. Então o espaço do jornalismo no Brasil, para mim, estava muito difícil. Eu via essas poucas famílias que compraram a mídia já bem articuladas para não dar nenhum espaço para eu poder me expressar. E aí eu senti uma responsabilidade muito grande de estar junto com o Zé Cláudio e a Maria. Eles depositaram uma confiança em mim para contar o que eles estavam sentindo e eu não tinha nenhum espaço. Eu tinha, literalmente, vergonha de desapontá-los.

Mas eu escrevi onde eu pude. Escrevi no “Sete Navais”. Foi muito pouco lido na época. Postumamente, foi lido no Congresso. E isso ajudou. Então eu passei a entender que é importante fazer. É importante a gente colocar no papel essas ideias, no ar, nos ouvidos e a gente torce para que isso seja escutado, seja lido, seja visto. Em algum momento pode ser.

O que eu não aceito – e eu sempre eticamente tentei ter cuidado com isso – é me submeter aos controladores da mídia, por exemplo, para fazer a versão que eles acham que deve ser feita. Eu prefiro publicar num blog, no Twitter, do que ter de vender ou negociar essas ideias para que isso saia na Globo, por exemplo. Ainda que a Globo tenha muitas pessoas bacanas lá.

E, por acaso, essa história mostra que o importante é a gente estar concentrando o nosso trabalho, o que a gente vai fazer. Então, depois que o Toxic circulou, ele ajudou e foi importante também para que a Global Witness passasse a fazer os relatórios.

Então havia a história da Global Witness e a Globo…que é a Globo, mas tem pessoas incríveis lá dentro, como o André Trigueiro, que um dia fez um programa especial da Cidade de Soluções sobre o Zé Cláudio Maria. E, então, aquelas entrevistas que eu fiz com o Zé Cláudio Maria saíram na Globo.

Às vezes eu até esqueço disso…agora que eu estou me lembrando. Eu nem contei isso no livro. Mas aí o André Trigueiro fez um programa especial utilizando as entrevistas que eu autorizei todas do Toxic. E aí as vozes do Zé Cláudio e Maria estavam na Globo. Eu fiquei emocionado. Falei com a Isa, com a Claudelice, com o Batista. Eu não esperava que fosse chegar em uma grande audiência. Era Globo News, na verdade, mas, às vezes, as palavras vão fluindo, as ideias vão fluindo. A gente não tem um controle sobre elas.

Eu acho que é importante a gente acreditar na nossa formação, na luta. Acreditar que essas pessoas que estão em uma posição subalternizada, mas que têm trajetórias e lutas, e são sujeitos coletivos, e que têm voz, e que têm visão. E que, aqui no Brasil, no caso, são principalmente os coletivos organizados, os povos indígenas, quilombolas, negros, ciganos também, que vivem numa situação de marginalidade e que circulam de uma forma linda pelo Brasil, por exemplo.

As populações camponesas, extrativistas. Gente que carrega nas suas concepções de mundo, nas suas visões, muito mais do que poderia se aprender através das peles de papel, trazem pensamentos que chegaram até elas através de sonhos, de relações espirituais, ancestralidade. Elas trazem uma experiência de mundo. E eu acho que é muito importante: a gente ajudar para que essas experiências possam circular e serem compartilhadas, contra a aniquilação dessas experiências.

Eu tinha tido uma experiência pessoal, antes de Zé Cláudio e Maria, de lutar para que outras experiências pudessem ser vistas, que era conhecendo o Trabalho de Sertanistas, da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Eu tinha organizado um evento alguns meses antes de conhecer o Zé Cláudio e a Maria…. ou mais ou menos na mesma época. E eu fiz um trabalho também de um livro que se chama Memórias Sertanistas: 100 anos de indigenismo no Brasil. Ele foi publicado pelo Sesc, em 2015.

Inclusive, eu escrevi em paralelo com a minha tese que era sobre o Zé Cláudio e a Maria. Fiquei meio louco nesse momento, mas eu sentia que eu estava desgastado. Eu sentia que era uma responsabilidade de vida que eu precisava tocar. Então, esse trabalho com Memórias Zé Cláudio e Maria, mas também com os Sertanistas da FUNAI e indígenas.

E esse livro traz uma experiência de agentes do Estado brasileiro, sertanistas e indigenistas, que lutaram ao lado dos povos indígenas contra a violência do Estado brasileiro. Eu sempre achei interessante essa contradição, como ela pode nos inspirar individualmente, nas nossas subjetividades, na história de vida de Afonso e Porfírio de Carvalho, que já não estão mais aqui, por exemplo.

Então a gente documenta essas experiências, a gente circula essas ideias e a gente torçe para que elas possam ser absorvidas, interajam com a vida de outras pessoas e que ajudem a transformar essa vida nas outras pessoas.

No meu caso com o Zé Cláudio e a Maria, eu mudei muito a minha visão de mundo. Eu sou uma outra pessoa depois deles. Claro, coisas muito boas, bonitas, de aprender com a floresta, mas também de lidar com depressão, de lidar com luto, de lidar com a morte. Eu passei a ter uma outra relação com a minha existência, porque eu vi que a vida realmente pode passar muito rápido.

E foi uma experiência muito traumatizante e um luto muito longo. Eu só consegui fazer o livro depois de alguns anos de convívio com esse luto, porque ele nunca passa. E depois de muita conversa com os familiares [deles], que para mim sempre estiveram em primeiro lugar nesses anos. Apoiar a luta dos familiares por justiça: a Claudelice, a Laísa e o Batista, a quem eu dedico esse livro.

Que bom que você acredita que nós temos que compartilhar essas histórias, porque aqui na Amazônia Latitude a gente também acredita nisso e é por isso que a gente te recebe aqui. Muito obrigada, Felipe.

Obrigado. Eu agradeço pelo espaço e também queria parabenizar por essa iniciativa da Amazônia Latitude e o trabalho de vocês estarem cobrindo o Sialat, que tem sido um encontro tão bonito, reunindo tantas vozes que devem seguir ressoando por aí.

Roteiro e locução: Alice Palmeira
Edição sonora: Júlio César Geraldo
Montagem de página e acabamento: Yris Soares e Alice Palmeira
Revisão: Glauce Monteiro
Identidade visual: Fabricio Vinhas
Direção geral: Marcos Colón

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